Salinger ou a adolescência
Por
Christopher Domínguez Michael
Talvez fosse
necessário proceder como o próprio Jerome David Salinger (1919-2010), quando
ordenou que as quartas capas de seus livros não carregassem qualquer informação
fornecida sua nem pelo editor, e voltássemos a lê-lo ou relê-lo, porque O
apanhador no campo de centeio (1951) é um dos romances mais bonitos dos já
escritos no século passado e, significando quase tudo, permite dispensar
qualquer comentário.
Durante
anos, fiquei mais interessado na lenda Salinger do que em seus livros,
porque o chamado – por Étiemble ou por Gracq – de “escândalo Rimbaud” é um bom tema.
Por que a modernidade e seus adiamentos se surpreendem com o silêncio repentino
ou a reclusão de autores como Rimbaud ou o próprio Juan Rulfo, quando antes do
romantismo o ofício artístico era simplesmente abandonado por razões quaisquer?
Não tendo ocorrido a morte retórica do autor tal como interpretou Barthes, o
desaparecimento do artista de cena numa era de hipermídia continua parecendo uma
provocação invejável. Não suportamos que o Gênio nos vire as costas.
Na reclusão, na não exposição de Salinger ao público – como no caso de Blanchot, acrescento
por mania bibliográfica – pode-se ver o pano de fundo da Segunda Guerra, seus
antecedentes e marcas. Os franceses se envergonhavam de terem sido propagandistas
do fascismo em sua juventude? O nova-iorquino nunca superou seus duzentos dias
no front ocidental, a inspeção dos campos de concentração como oficial de
inteligência, de origem judaica e irlandesa, a serviço dos Estados Unidos ou
seu emprego subsequente em desnazificação? Seu breve casamento com a alemã
Sylvia Welter, considerada agente da Gestapo, foi uma expiação? Tudo isso é uma
questão de biografia, mas a tentação de não dizer nada sobre Salinger ou sua
breve obra, um romance sublime e um punhado de contos memoráveis, não é maior que a de o ler.
O apanhador
no campo de centeio é o romance sobre a adolescência que nos legou o século
passado e é aquele em que os adolescentes do século XXI podem se ver, sem
grandes problemas, pois sabemos pela maneira como vimos lidando com eles. O terno, o
misericordioso Salinger, foi libertador, graças à franqueza de uma linguagem
que é a do adolescente falando consigo mesmo. Embora estranho ao procaz, isso não
impediu que, junto com os milhares e milhares de cópias vendidas, se agregassem
um número de institutos e bibliotecas que baniam a saga de Holden Caulfield,
pois assustava à nação do general Eisenhower.
Sem essas
liberdades – a crítica liberal acabará por concordar – James Dean, Elvis
Presley e os Beatles não são totalmente explicados, tampouco Jack Kerouac e
Allen Ginsberg, José Agustín, ou mesmo 68, pelo menos em Berkeley, ou itinerário dos homicidas fracassados ou bem-sucedidos identificados com o herói
salingeriano. A grandeza e a miséria da juventude dos anos sessenta – sua arrogância
e inocência – cabem inteiramente no romance de Salinger.
Em seu
repúdio ao estadunidense e ao seu mercado espiritual, Salinger é muito
idiossincrático. Somente nos Estados Unidos um romance como O apanhador no
campo de centeio pode existir, ao mesmo tempo, na mesinha de cabeceira de
JFK e na do assassino de John Lennon. O horror de Salinger a Hollywood é
hollywoodense; sua figura, a do herói embevecido que depois de fazer justiça a
uma pessoa desamparada se perde no horizonte, estrela a mais estadunidense das
aventuras.
Beckett
achou adorável O apanhador no campo de centeio e não há escritor estadunidense
– de William Faulkner a Gore Vidal – que não tenha no bolso o livro portátil
por definição que Salinger escreveu, “o bem-amado”, como batizou Alfred Kazin.
Não é O complexo de Portnoy, de Philip Roth, uma variação de Salinger?
O
apanhador no campo de centeio foi examinado como uma metáfora da guerra e
Holden Caulfield como o duplo do soldado Salinger, filho do século, que desembarcou
atarantado no Dia D e chegou a Nuremberg, onde foi internado, depois da inspeção a Dachau, num hospital por estresse pós-traumático. A paralisia de Holden
Caulfield entre o álcool, a esperança da iniciação erótica, a dor pelo irmão
morto, os cigarros, a presença do abuso sexual, o retorno furtivo à casa da
família em busca de sua infância através – em sua ternura – de sua irmã Phoebe,
as primeiras bebedeiras e o sonhar acordado na Quinta Avenida como um sintoma
de falsa insanidade, o frio e a má alimentação como autoflagelações, sua puritana
ansiedade de reparação, seu desejo ignóbil de vingança que não passa da manifesta
hostilidade, o roubo sofrido num motel, a cidade inóspita como a palma de uma
mão alheia... Sim, a enumeração caótica é justificada; tudo isso, sem dúvida,
pode ser interpretado como um capítulo de qualquer guerra mundial.
No entanto,
prefiro escrever sobre O apanhador no campo de centeio como conclusão de
um estudo sobre e adolescência na literatura feita anos atrás, quando,
incrivelmente, eu não havia lido Salinger. Em Hermann Hesse, que deve o modelo
a Goethe, o adolescente é um prisioneiro da beleza, foi encerrado numa redoma
de cristal para a ser amado e admirado por seu criador. Ele não deve crescer,
como fica claro em Debaixo das rodas (1906), quando Hesse o condena a
morrer afogado. A água como a sepultura perfeita onde jaz, contido e
imperdível, o cadáver do eterno adolescente embelezado pelo fracasso, vítima dos
outros. Esse pietismo um tanto doentio não é, claro está, o de Salinger ou
Dostoiévski, autor de O adolescente (1875), o menos conhecido e o menos
realizado de seus romances, nos quais o adolescente é um malandro, um retrato
invertido de Jesus Cristo. Tanto é assim que o romance termina com um epílogo
onde somos advertidos de que a adolescência terminará, com sua provação de
dúvidas e sofrimentos, graças à chegada do terceiro reino, com o Ressuscitado
alçado entre os mortos.
O
adolescente de Salinger, perdido em Nova York, é um baudelairiano, como já foi
dito. Perdido na multidão, precisa se distinguir dela, mas não a qualquer
custo. Ele tem muitos problemas a resolver para se tornar um rebelde, aquela
caricatura do adolescente que Witold Gombrowicz viu no Jovem. Holden Caulfield, um
verdadeiro adolescente, não pode com o mundo, seu sofrimento é elevado, suas
alternativas são escassas enquanto é e fatalmente deixará de ser. Nenhuma das
especulações biográficas sobre o silêncio de Salinger, do horror da guerra ao
zen-budismo, passando por toda a loucura do próprio recluso em si mesmo, outro
único e sua propriedade, me convencem.
Prefiro o
comum. Sabendo que a adolescência de Holden Caulfield terminaria, como a todos,
Salinger decidiu silenciar. Imaginá-lo, finalmente derrotado ou vitorioso, o
que um adulto se torna, era inconcebível para ele, que o deixa falando antes
daquele substituto do pietismo alemão (Hesse) ou da ortodoxia russa (Dostoiévski),
que é a cura psicanalítica. Ante a vida consumada, o desenvolvimento, esse sim,
monstruoso, da crisálida, finalmente realizado no adulto no mundo e para o
mundo, interrompeu a vertigem do crescimento na ordem moral, J. D. Salinger,
como alguns outros escritores de sua estirpe, disse Não, recusando-se a
sacrificar seu adolescente para que todos nós nos tornássemos adultos.
* Este
texto é uma tradução de “Salinger o la adolescencia” publicado aqui em Letras
Libres.
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