Out-of-Place Artefact


Por Davi Lopes Villaça



“Siga os passos de Aurora, a assassina viking dos tempos modernos”, convida a descrição do primeiro episódio de Out-of-Place Artefact, nova série dirigida por Bruno Decc. Poderia ser também o início da sinopse de algum filme trash, desses cuja graça reside justamente na inconsistência do enredo, na ruptura contínua com quaisquer princípios de verossimilhança. Mas a proposta de Out-of-Place Artefact é bem mais séria: parte de um cenário nonsense para atacar problemas concretos da atualidade.

Por que Vikings? Os guerreiros nórdicos aparecem em trajes típicos, treinando com espadas e machados, como se tivessem preservado suas tradições; ao mesmo tempo, porém, mostram-se plenamente inseridos na sociedade moderna, desempenhando inclusive um papel fundamental dentro dela. Os vikings de antigamente representavam para a Europa cristã um povo bárbaro e uma ameaça à civilização. Os de hoje, integrantes de uma elite econômica global, pertencem ao mundo capitalista desenvolvido – e é em nome deste que continuam a exercer sua violência. De saqueadores e colonizadores transformaram-se numa seita de empresários e assassinos, tendo entre suas vítimas líderes ativistas de países emergentes. Os bárbaros de outrora já não se ocupam de aterrorizar os povos mais ricos, mas de administrar a miséria dos mais pobres, mantendo-os na periferia do mundo dito civilizado, atuando assim como uma peça chave na dinâmica velada do neocolonialismo.

No primeiro episódio, Aurora é encarregada do assassinato de um líder militante no meio da floresta brasileira. Esse outro personagem serve brevemente de porta voz a uma das críticas que a série visa empreender. Ele se dirige à assassina: “Você sabe pelo que lutamos? Acha que é pela floresta? Nós lutamos para que pelo menos possamos ter o direito de viver como consumidores no futuro. Porque talvez nem tenhamos isso.” Não faz tanto tempo que essas palavras – bem como as seguintes, nas quais o personagem faz a descrição de um futuro distópico – talvez soassem paranoicas e deslocadas. Hoje, porém, elas aludem a preocupações bastante urgentes, evocadas pelo desenvolvimento bizarro do neoliberalismo, que ameaça lançar boa parte da população numa completa e permanente irrelevância econômica, cujos resultados seriam provavelmente mais catastróficos do que a pobreza e desigualdade já existentes.

A importância dessa advertência está também em quem a faz: nesse homem enfurnado na selva de um país sul-americano, convicto porém do caráter amplo de sua luta. Com o avanço do globalismo (ou, para ser preciso, da unificação das histórias de diferentes povos numa única história humana), problemas à primeira vista isolados tendem a se mostrar, cada vez mais, consequências regionais de crises e tendências mundiais. O ativista não combate pela floresta, ou pelo menos não somente por ela. Tem consciência de si como um homem do mundo, por isso mesmo sujeito a um sistema muito mais vasto e pernicioso de exploração, contra o qual ele move sua luta desesperada e necessária.

É nesse contexto que se desenrola a saga individual da heroína, dividida entre sua identidade como assassina, seu senso de justiça e seus amores particulares. Aurora permanece em silêncio ao longo de todo o episódio. A ela dirigem-se os olhares e as vozes de outros personagens: do líder do seu clã, do ativista brasileiro, do amante – todos parecem ter algo a lhe ensinar. Qual destes caminhos ela deverá seguir, é o que a série agora promete narrar.


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