Os melhores de 2019: poesia



Melancolia, de Carlos Cardoso.
Aqui encontramos um poeta interessado em constituir um diálogo mais perto dos ventos ainda vivos (porque perenes) do nosso modernismo – não apenas pelas recorrências espirituais desse tempo patentes nessa dialética entre o passado e presente, mas pelas referências ricamente construídas, algumas reveladas, outras nem tanto, e pelo interesse de transformação do lugar da memória e do lugar natal em universalismos do eu-poético. Alguém poderá dizer que existe nisso certo saudosismo. Mas não é. É a direção certa de um poeta cuja maturidade permite aproximar-se dos nossos melhores lugares e, da maneira sempre esperada, alargá-los no intuito de contribuir para o andamento da nossa literatura. Leia mais aqui

Onde estão as bombas, de Tatiana Pequeno.
O poeta não é uma voz deslocada no tempo. Talvez nunca tenha sido e, na contemporaneidade, menos ainda. O poeta é uma voz entretecida pela aguda observação do seu tempo e por isso deve possibilitá-lo aos que não o observam e aos que nunca irão observá-lo, que nenhum tempo é fixo. Dentre os elementos que participam dessa tessitura estão os convívios de ordem diversa: com outras vozes, poéticas ou não, do seu interior e dos seus afetos, do seu exterior e dos seus desafetos, da vida, enfim, em toda pulsão, o lado de dentro e fora do eu. Dificilmente encontraremos uma voz tão radical e ao mesmo tempo vivaz na poesia brasileira em curso como a de Tatiana Pequeno; não somente pela forma mas pela linguagem febril que conjuga o estético como ato de inscrição política. Este livro é a plena prova da maturidade de nossa poesia e é por isso um feito dos indispensáveis para nosso e outro tempo.

Volante verde, de António Ramos Rosa.
Este é o segundo título editado pela Moinhos, que trabalha para trazer a nós a obra desse importante poeta português – o primeiro foi Ciclo do cavalo. Os dois livros apareceram em recomendações de leitura das publicadas a cada sábado no Boletim Letras 360º. Este título está entre os mais significativos da vastíssima obra de Ramos Rosa. Nele, o poeta reuniu uma centena de textos; são poemas organizados entre uma quinzena ou duas dezenas de versos, o que revela um desejo de unidade formal em sua concepção, sendo, portanto, fundamental seu entendimento como conjunto, fruto de uma mesma janela da extensa da sua experiência poética. Numa recensão crítica de Cristina Almeida Ribeiro para a prestigiada revista Colóquio / Letras aquando da publicação do livro em Portugal, se lê que esta é uma obra que “retoma o acto fundador, mas sempre provisório, que tem marcado toda a obra do poeta: partir do nada, deixando-se trabalhar pelo silêncio; dizer o princípio, para o instaurar; rodear-se dos elementos primordiais, construindo um espaço habitável; identificar-se com ele e descobrir em seguida o corpo feminino – tal é, em síntese, o caminho que leva à harmonia e ao conhecimento”.

Odes a Maximin, de Ricardo Domeneck.
Este trabalho do poeta brasileiro se constitui de uma riqueza criativa não apenas pela renovação da dissimulatio na nossa lírica; as Odes oferecem ao leitor um convívio com o lado sensual da nossa língua. No mais, Maximin é já uma figura da qual não conseguimos nos separar depois de encontrá-lo nessas Odes, uma vez que reaviva no nosso imaginário as artimanhas de Eros. Não tardará integrar totalmente um imaginário simbólico constituído por outros eromenoi. Por mais que poeta assuma fora da poesia que este é uma criatura real que atiçou os desejos de muitos homens num verão berlinense de 2011 e depois o arrastou a um caso tórrido, passado à literatura e à poesia, Maximin é puramente símbolo: encarnação e celebração do desejo e das suas forças autênticas e improváveis mas realizadas ou guardadas nas vontades sub-reptícias do corpo. Leia mais aqui

O amor curvo, de Daniel Gil.
Parece que tudo já foi dito e feito na lírica amorosa, embora ainda continuem cantando, a torto e a direito o amor (ultimamente mais pela primeira linha). Assim, a tarefa de cantar o amor, apesar de parecer das mais simples, não o é. Há uma longa tradição literária que remonta aos gregos e assume-se entre poetas do nosso tempo e da nossa literatura; são vozes que conseguiram dizer, por um tom, por uma linha, algo ainda fundamental de acrescentar ao mais celebrado dos sentidos e sentimentos poéticos. Bem sabemos sobre a estreita relação assumida por Daniel Gil com o maior dos nossos líricos românticos – termo colocado aqui não como designação para a estética literária e sim como veio poético; acertou quem, ainda não conhecendo o trabalho crítico de Gil mais a fundo, logo pensou em Vinicius de Morais. Daí que essa aproximação se torne ainda mais complexa pelo risco de o poeta só conseguir uma emulação do poeta de predileção e também porque a lírica do autor do “Soneto de fidelidade” ainda está profundamente marcada na nossa memória sobretudo pela conjugação primordial entre o poema e a música. Mas, curiosamente, Daniel Gil, consegue encontrar um fio interessante para a composição de seu livro. Como se quisesse dizer todas as letras do amor, reafirmando um dos tons básicos desse tema, o exagero, o poeta oferece um conjunto de poemas criteriosamente organizado (formal e estruturalmente) e realimenta uma certeza quase-vã no nosso tempo: a chama do amor abranda, curva, mas não está apagada. A possibilidade de não ser óbvio com essa constatação, nem piegas com um tema capaz de arrastar o melhor dos poetas para o caudaloso, são provas muito contundentes do zelo do autor para com a palavra e para com a poesia. Além, é claro, da virtude de seu livro.

Céu noturno crivado de balas, de Ocean Vuong.
A obra do poeta nascido no Vietña foi reconhecida por um dos galardões literários para a poesia mais importantes, o Prêmio T. S. Eliot. Autor de textos que circulam em várias mídias há muito reconhecidas como The New Yorker, este livro foi publicado pela primeira vez em 2016. Através dele encontramos um eu-poético fortemente marcado pelos episódios mais dramáticos da história do seu país, estado que contamina por conseguinte noutras paisagens como a cidade que escolheu para viver, Nova York, igualmente ferida pela violência e pela intolerância dos tempos de vil endurecimento das relações no curso do capitalismo. O livro reúne trinta e cinco poemas cujo ponto de intercurso são as experiências individuais tornadas universais pelo rico diálogo com essas são tecidas com o mito, o místico; esse universo criado por Vuong é mantido pela variedade de experimentações estéticas como se buscasse (e consegue) nova vitalidade para o verso livre e as relações entre a lírica e outras expressões criativas. Mais: como foi ressaltado pelo The Guardian, neste livro a poesia é o canal para o diálogo mais improvável, quando se fundem violência e delicadeza.

Os fantasmas inquilinos, de Daniel Jonas (antologia).
O poeta português possui uma carreira incomum, grandiosa mesmo numa terra tão fértil em poetas como Portugal. Esta seleção, feita pelo poeta e músico Mariano Marovatto, cobre sua carreira, apresentando poemas publicados desde 2005, e serve como a melhor introdução à sua poesia. Lírica, meditativa e intensa na apreciação dos afetos, da vida nas cidades e da própria atividade poética, a obra tem um quê de clássico – embora contemporânea na visão de mundo aguda e algo desencantada. Se, por um lado, parece continuar com voz bastante distinta a poesia de Fernando Pessoa e outros grandes líricos, por outro traz uma nova tonalidade à poesia de língua portuguesa.

Garopaba monstro tubarão, de Paulo Scott.
Num conjunto de notas publicadas no jornal Rascunho sobre este livro, Leandro Reis afirma que existe aqui “uma sintaxe infinita na qual se manifesta essa consciência elementar do acesso da poesia à pluralidade do real. Dito de outra forma, recria nossa experiência original de estar no mundo ao materializar as ambiguidades da percepção, contrariando o sentido único do mero representar.” Ainda que base natural da poesia lírica não seja a mimesis – sabemos disso desde a leitura da República, de Platão – a observação do crítico é aqui retomada para redizer também sobre a inovação criativa do poeta gaúcho. É todo o seu mundo que se manifesta neste livro, desde a primeira palavra com a qual nomeia a antologia, referência sobre sua terra natal. Mas, ainda detendo-se no título – estes são sempre chaves de acesso ao cerrado mundo proposto pelo poema – o substantivo próprio é integralmente afetado pelos termos posteriores que, apresentados sem a vírgula, sinal de individuação dos termos, findam por ser transformados de substantivos comuns para adjetivos, integrando Garopaba a um universo outro, monstruoso e animal. Esses sentidos funcionam como a força motriz desse universo proposto pela poesia de Scott e que é determinação de toda poesia, des/criar com palavras um mundo cuja força se justifica sempre nele próprio.

Xeque-mate, de Maria Azenha.
O movimento extremo de jogo de xadrez em que o tabuleiro não difere em nada de nossa vida e as jogadas os dilemas que dizem dela – assim podemos designar este livro da poeta portuguesa. Com esses dilemas ela compõe uma obra que situa no limiar. A voz que dá vida a estes poemas tem o fôlego de um grito contra o pior de nós: é a voz não-alheada a esse tempo de limites, de vícios, de desumanização desbragada. Uma voz, aliás, que renova um dos valores difíceis de localizar nas poéticas contemporâneas quase sempre mais fechadas sobre e alheias de uma condição ética da qual a literatura, como objeto de intervenção nas ideologias de domínio, não pode jamais se apartar. É que num mundo composto por dois tipos de circo, o do poeta é o “outro / com / palhaços // a / sério”. Leia mais aqui

O azul e o mar, de Paul Valéry (antologia).
Para as gerações mais vividas na leitura de poesia, o nome do poeta francês dispensa apresentações. Muito embora esses e outros leitores careçam de uma valiosa edição com sua obra poética completa, a apresentação de antologias como essas servem para a presença perene de sua obra; tal perenidade é favorável a que novas gerações entrem em contato com a poesia de um criador plural. Há uma década havia se publicado a tradução de Tomaz Tadeu para Alfabeto. Agora, Eduardo de Campos Valadares selecionou e traduziu os poemas reunidos em Azul e o mar. O curso da obra segue três fases do itinerário poético de Valéry – Charmes, Clássicos e o longo poema “A jovem Parca”. Além do poema de 1917, o livro reúne mais de duas dezenas de textos e é uma das mais amplas antologias já organizadas no Brasil com a poesia do mestre do simbolismo francês.

Mil sóis, de Primo Levi (antologia).
Pouca gente sabe, mas o primeiro texto que o escritor italiano publicou foi um poema que apareceu em junho de 1946 num semanário comunista editado pelo amigo Silvio Ortona. Sua lírica errática o acompanhou por toda vida – entre 1950 e 1970 alguns de seus poemas chegaram a ser publicados em revistas literárias de prestígio – e atravessou fases distintas e em todas elas, temas como a sobrevivência em meio às catástrofes e a desumanização se unem a um registro delicado que parece buscar a claridade, a comunhão e o amor por todos os seres vivos. No final da década de setenta chegou a publicar numa tiragem limitadíssima, apenas trezentos exemplares, parte desse material; o livro anônimo trazia 23 poemas, mais da metade inéditos. Só nos anos oitenta é que se publica uma edição bem cuidada dessa obra que trazia mais de seis dezenas de textos e uma dezena de traduções. A antologia preparada por Maurício Santana Dias nos leva a conhecer pela primeira vez na nossa língua o trabalho de um escritor que transformou o compromisso moral em alta literatura, e a força da memória, num verdadeiro ofício.

Multiverso, de Douglas Siqueira.
Com este livro, inaugura-se o universo poético de Douglas Siqueira, só conhecido em esparsas aparições em revistas literárias como a 7faces e a Subversa. Todo novo mundo que se inaugura pela poesia devia ser motivo de satisfação, sobretudo, quando se mostra fundado numa dicção segura de aluno dileto em pleno esforço de encontrar no amplo universo de vozes anteriores e de sua geração uma possibilidade nova de dizer as coisas. Ao dizer isso, ressalta-se o vibrato de uma voz lírica que se escuta em movimento – mas sem se perder – ao longo da quase meia centena de poemas reunidos nesse livro. Douglas Siqueira parece se filiar ao grupo dos poetas que lidam com o sintetismo e a objetividade da linguagem expressando, dessa maneira, de fora para dentro do poema sua sustentação lírica que encontra (e por vezes fabula pela retomada anarrativa) as vozes de sua formação. O resultado é uma poesia feita de pequenas delicadezas que funcionam como cintilações num mundo cada vez mais alheio ao simples. Multiverso se dispõe ao trabalho poético de readaptação das existências para fora dos excessos, lugar só alcançável pela sensibilidade da poesia.

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