Os melhores de 2019: cinema



― Dor e glória, de Pedro Almodóvar
Encontramos aqui o tema do vazio criativo e o seu preenchimento com aquilo que de melhor pode fazer um artista: multiplicar-se para ser a si e um outro, sendo este aqueles que em toda parte padecem da impossibilidade dessa condição. Volta à estrutura da metaficção e uma diversidade de outros matizes que qualificam seu universo criativo, como o desejo, e compõe, certamente o mais introspectivo dos seus trabalhos. Junta-se à maturidade criativa, há muito alcançada, a experiência do vivido como jogo entre a exposição e a revelação. Equilibrando-se em contradições finda por oferecer uma lição sobre o poder do amor nas transformações individuais, para bem e para mal, ou se isso parecer muito piegas em se tratando do modus pensante do cineasta, como as vidas alheias interferem no curso de nossas existências, outra vez para bem e para mal. Leia mais aqui

Roma, de Alfonso Cuarón
O filme que se apresenta como um retrato autobiográfico de certo período da vida de Cuarón deve figurar sempre, se não como o primeiro, entre os seus melhores trabalhos. As razões para esta conclusão são diversas. Para esta ocasião, basta citar: a desenvoltura da narrativa; a belíssima fotografia; e maneira como a narrativa abriga questões que transitam entre o plano individual e coletivo, sem se distanciar do primeiro, o principal, podemos assim dizer, da narração. O que a câmera capta é a crônica de uma vida cujo cenário é o de uma família abastada da Cidade do México entre os anos 1970 e 1971. A abertura desse olho que primeiro capta a minúscula cena espelhada numa poça d’água de um avião que cruza os céus da cidade e depois volteia pela casa – sempre considerando o ponto de vista não da família e sim dos que dela cuidam – é o suficiente para nos colocar diante de uma forma inovadora de ver. É a crônica de uma família, mas que não é vista pelo olhar oficial ou imparcial. Cuarón não se descuida num só instante em dizer que a história contada não respeita o ponto de vista comum, mas aquele que quase sempre é condenado a silenciar ou a ser mero objeto entre os elementos de composição cenográfica. Leia mais aqui



― Selvagem, de Camille Vidal-Naquet
O primeiro filme de Camille Vidal-Naquet é uma releitura sobre a liberdade. E a situação escolhida para a afirmação sobre o que chamaríamos de sua tese – isso porque o espectador não demora a visualizar uma ideia central e o desenvolvimento de múltiplas situações no seu entorno no intuito de refutar e corroborar com o que se quer defender –, compõe praticamente um ensaio sobre o indivíduo. O trabalho do diretor francês nada tem de pioneiro, mas se apresenta tão profundamente impregnado das marcas que conduziram o pensamento e a criação de seu país que não deixa de chamar atenção pela maneira como reaviva alguns dos seus lugares mais interessantes. A principal questão é a constatação sobre a liberdade como uma utopia cujas fronteiras uma vez ultrapassadas não oferecem quaisquer oportunidades de sobrevivência ao sujeito. Isto é, o que à primeira vista parece coincidir com certo fatalismo proposital do homem (e não podemos deixar de lado tal hipótese) prefigura como uma maneira de compreender que se a liberdade é algo que nos impulsiona para a existência é também algo que pode significar nosso fim. Leia mais aqui

Dois papas, de Fernando Meirelles
A partir do episódio inusitado da renúncia de Bento XVI, excessivamente tradicional, talvez o mais ranzinza, o menos político e logo mais incapaz de conduzir os rumos complicados da Igreja Católica, e a eleição de Francisco I, evento que deu outra cor e abriu alguma clareira no mundo cristão, Fernando Meirelles imagina aquilo que não chegou até nós e constrói uma narrativa cuidadosamente bem elaborada. No seu andamento, o espectador forma uma imagem sobre a personalidade dessas duas figuras e tem acesso ao que a imaginação criativa sempre pode supor das situações não reveladas. Mas, o fim não é apenas isso: é ainda escrever um denso ensaio sobre os rumos do catolicismo no mundo atual. Um filme dos mais bonitos de 2019.

Ausente, de Marco Berger
Aos olhos mais sensíveis, uma revelação: podem ver Ausente de olhos bem abertos porque não encontrará nenhuma situação capaz de fazê-los não avançar na história. Daí, fica-nos sempre a interrogação sobre as razões que levaram à crítica a ler o filme como uma narrativa sobre violência sexual. A resposta está bem diante de nosso próprio nariz e foi dada aqui mesmo: só interpretamos as movências do corpo desejante presos a padrões e determinações ético-morais. Este filme argentino lida especialmente com a corrosão de modelos. Sua narrativa, à medida que avança numa investigação quase detetivesca sobre o destino das duas personagens, mais se mostra como possibilidade e suspeição. Leia mais aqui

Um homem fiel, de Louis Garrel
A beleza desse filme está na variedade de questões suscitadas pelas situações construídas pela narrativa. A atmosfera da nouvelle vague é um charme a mais e oferece ao espectador, pela maneira como se distancia dos entornos para se centrar apenas na questão crucial da narrativa, uma história que se pretende uma parábola sobre o amor. A brevidade da história requer outro movimento, o de aprofundamento nas situações e sua variedade, como se estivéssemos diante de um conto revestido de caminhos variados que confluem para uma moral: o amor é a força capaz de colocar todos em profunda relação, mas não combina com eternidade, tampouco com a fidelidade que a cultura romântica quis impor. Aí reside a toada da infelicidade das famílias, como prenunciava Liev Tolstói, cada uma à sua maneira. Leia mais aqui

Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
O que não se pode negar é o lugar paradigmático e alcançado por este filme. Paradigmático pela destreza dialética em combinar o local e o universal numa mesma ordem. Quer dizer, a violência e suas relações com o abandono do Estado é, nos moldes como é apresentada, uma especificidade brasileira, mas numa maior amplitude encontra ecos na formação desse mesma condição em qualquer sociedade; as nossas questões coloniais, para recorrer ao tropo narrativo que colocamos em destaque, também é muito nossa, mas não deixam de servir à leitura sobre outros processos coloniais tão ou mais violentos que o brasileiro; e, se ainda for necessário mais um exemplo, a alternativa encontrada pela gente de Bacurau contra o regime de sequestro que lhe é imposto é uma possibilidade para qualquer sociedade marcada por essa condição: a história guarda provas diversas sobre isso. Leia mais aqui



O anjo, de Luis Ortega
O cineasta argentino possibilita reavivar o sentimento coletivo que anima o espírito universal da comunidade humana por todas aquelas criaturas que parecem picadas pelo destino com altas doses de indiferença aos padrões convencionados. Esses sujeitos com forte inspiração mítica não nos oferecem escolhas; sempre despertará entre os demais um duplo interesse: pela maneira como se portam e pelas ações que desempenham. Essas, aliás, se expandem e tomam proporções para a invenção, alimentando ora o imaginário ora o anedotário que circula em seu entorno. A condição perturbadora que a narrativa de Ortega oferece ao espectador, capaz de nos fazer atravessar dias e dias interessados em saber melhor sobre a figura retratada, é exatamente o sentimento correspondente aos sentidos que acompanham a biografia desses sujeitos excepcionais. Leia mais aqui

Rocketman, de Dexter Fletcher
Sem dúvidas, uma das melhores cinebiografias desenhadas pelo cinema, embora quem afirma isso seja alguém que guarda altas reservas com o gênero e, por isso pouco se dedica a ver filmes do tipo. Este trabalho de Fletcher está ao lado de algumas das criações mais singulares do gênero, que são Piaf. Um hino ao amor, de Olivier Dahan e Gainsbourg. O homem que amava as mulheres, de Joann Sfar. O que motiva a beleza do filme de Fletcher é a precisão do recorte para a construção de sua narrativa; desinteressado de oferecer uma imagem total do biografado, seja porque ciente dessa impossibilidade (o que parece nem sempre vigora nos demais criadores), seja porque seu trânsito está em torno de compreender como se gestou um dos maiores fenômenos da música pop, Rocketman honra por ser comedido ou dispor tudo na certa medida, sem ser caricato, piegas, simplista ou engessado por um modelo ideológico. Finda por nos apresentar não apenas como Elton John se tornou Elton John, produz uma obra que investiga os dramas universais da criação; escolhe a matriz do gênio, para pensar sobre sua condição criativa e alheia ao seu mundo imediato e como a ausência de afeto interfere na vida e no trabalho artístico.


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Comentários

Acho muito bacana quando fomentam a sétima arte

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