O seminarista, de Bernardo Guimarães
Por Pedro
Fernandes
Nicholas Chistiakov. The Black Pope |
Toda vez que
o nome de Bernardo Guimarães aparece para os leitores mais assíduos de
literatura brasileira, ou mesmo para aqueles que guardem um mínimo conhecimento
sobre os principais escritores e obras literárias do nosso cânone, será sempre
associado ao romance A escrava Isaura. Essa associação não é,
obviamente, gratuita. A história de uma escrava branca envolvida no sem-número
de crueldades de um carrasco obcecado foi não apenas sucesso de vendas aquando
de sua publicação como terá perdurado no nosso imaginário depois das adaptações
para a TV como telenovelas: primeiramente pela Rede Globo, obra vendida para
uma quantidade sem fim de países; e, mais tarde, por puro capricho de copiar
sucessos, pela Rede Record. Mas, não é essa obra mais conhecida o melhor do
escritor mineiro.
Antonio
Candido, em Formação da Literatura Brasileira, caracteriza Bernardo
Guimarães como um contador de casos, uma fusão de Álvares de Azevedo com Manuel
Antônio de Almeida e um apaixonado pela zona de fazendas esparsas, pela gente
rude e primitiva, todavia, compreendida como a de mulheres mais belas e os
melhores homens, honestos e valentes. “O brutalhão de alma boa constitui aliás
parte do senso psicológico de Bernardo, outra parte é ocupada por tipos
igualmente elementares”; e acrescenta que seu universo é de “concepção
essencialmente romântica, redutível a poucas situações e tipos fundamentais,
esquematizados a partir de representações mais correntes de herói, heroína, pai
e vilão.”
Essa
caracterização apresentada pelo crítico responde pela compreensão comumente
atribuída segundo a qual a obra romanesca desse escritor pertence a uma linha
criativa do nosso Romantismo designada como regionalista. Cabe, entretanto,
esclarecer a diferença entre essa designação para um conjunto de obras situadas
no interior das criações românticas e a literatura brasileira gestada na década
de 1930. Embora, essa linha constituída a partir do romantismo seja precursora das
produções literárias subsequentes é preciso sublinhar que sua primeira
designação se caracteriza muito mais por uma condição geográfica, isto é, é
regionalista as obras escritas por escritores que situam suas atmosferas fora
da ambiência da corte, enquanto as obras dos anos trinta, respondam muito por
um conjunto ideológico que ressaltam as afinidades entre o literário e social,
oferendo aquele como uma leitura realista e de denúncia sobre as relações de opressão
num país radicalmente desigual.
O seminarista,
por exemplo, está situado nessa zona rural de Minas Gerais e cidade de Congonhas,
mas nada sabemos sobre a ambiência urbana, uma vez que o olhar do narrador, preso
aos passos do seu protagonista não olha para além dele, e se assim faz, é a partir
do limitado campo de visão da personagem. Enquanto isso, o leitor permanece
muito a par do universo rural. Isto é, reafirma-se aqui o que Antonio Candido
designa como recorrência à impressão de ordem plástica. “Quem leu O
seminarista não pode esquecer a várzea com o riacho, a ponte, a porteira de
varas, as duas paineiras, os dois caminhos que levam à casa do capitão Antunes
e à da tia Umbelina, ao lado da figueira; não poderá sobretudo esquecer a
utilização por assim dizer psicológica que o romancista deles faz, como cenário
qualitativo dos amores de Eugênio e Margarida – transformando-os numa
paisagem subjetiva, variável na consistência e na densidade.” Some-se a isso
certo olhar de cronista para a descrição quase antropológica acerca do
dia-a-dia da gente principal nesse romance: entre elas, podemos sublinhar duas
sempre recorrentes não apenas no interior mineiro como em certos interiores do
sertão nordestino, o mutirão e quatragem.
O olhar de
Bernardo Guimarães é tão atento para com as situações tipicamente regionalistas
que descreve miudezas que constituem / constituíam o imaginário do sertanejo.
Recordo a situação decorrente do interior de uma cena que se tornará emblemática
para todo o andamento da narrativa de O seminarista; ao descrever de
passagem o episódio da infância de Margarida, em que a família flagra a
criança em pacífica convivência com uma cascavel depois de um descuido da ama, o
narrador se concentra em certo rito da senhora Antunes para a captura da cobra:
“Tendo-a enfim descoberto, encarou-a fixamente, e sem deixar despregar dela os
olhos, levou as mãos aos atilhos da cintura da saia, que começou a arrochar
cada vez com mais força, murmurando certas orações e esconjuros cabalísticos.” Dessa
simpatia, que segundo o narrador é utilizada pelas “nossas roceiras para
tornarem as cobras imóveis e pregá-las por assim dizer em um lugar”, pude
participar, meio descrente como sempre fui, quando criança. No sítio onde
morava, depois que descobrimos a existência de uma cobra-de-veado, enorme e ameaçadora
para os poucos rebanhos dos que ali vivam e trabalhavam, minha avó colocou todos
para fazer nós nas roupas com esconjuros. Diferentemente do romance, a cobra fugiu.
A cena de
convívio de Margarida com a serpente recupera o imaginário mítico cristão do
pecado original. O romance de Bernardo Guimarães explorará ao máximo a conotação
maligna da mulher que, por haver cedido aos volteios da serpente, nos levou para
fora da vida de bonança no paraíso divino. Aqui, essa humanidade está, não de
maneira gratuita, incorporada na figura de Eugênio, o rapazola de boa família
que depois de picado pelas tentações do corpo pela estrita convivência com
Margarida não garantirá mais uma presença de ordem no mundo designado por sua família:
o do sacerdócio. A cena aqui mencionada não é apenas reiterada pela memória das
personagens de O seminarista; o narrador recupera esse momento numa
transmutação de Margarida em própria serpente, o que conduzirá a narrativa para
o desfecho trágico pré-anunciado: “Não eram ainda Romeu e Julieta, mas eram
inseparáveis como Paulo e Virginia vagueando pelas sombras dos pitorescos
bosques da Ilha de França”, prediz o narrador ao acompanhar o desenvolvimento desse
amor, primeiro fraternal e inocente e depois carnal e indecente.
Margarida se
situa entre dois limites forjados pela literatura romântica sobre o feminino: é
a de eflúvio angelical e a de implicações demoníacas. Essa dualidade será
recorrente em todo o romance de Bernardo Guimarães e é talvez uma das características
que o colocam em destaque no interior de seu universo criativo. Quer dizer, o
leitor não estará diante de um tipo fixo, mas em trânsito entre a ordem e a
desordem. Acompanha, a narrativa, a transformação de um homem incapaz de
decidir sobre o seu destino pela imposição da família. Já disse que a principal
crítica do romancista com esse romance repousa em certa tradição da qual foi
precursor: sobre os rigores do celibato católico. Basta pensar que O seminarista
antecede a Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano e O crime do
padre Amaro, de Eça de Queirós, talvez o mais lembrado sobre o tema.
Operacionaliza-se aqui uma observação que será de um todo recorrente na
literatura: a imposição é porta para a transgressão. A esta talvez possamos
agregar outra: não possibilidades de controle sobre a força corpo. No romance
em questão e nos livros seguintes, o celibato se mostra como uma farsa que
conduz o homem para um abismo de culpas (ou nem tanto, se pensarmos no Padre
Amaro, quando o celibato é de um todo transformado em farsa ou hipocrisia);
isto é, o que esses romancistas acabam desconstruindo é a balela do chamado
divino para o sacerdócio; esse chamado é uma construção produzida pela
abnegação do corpo e do mundo. A primeira vez que os mentores de Eugênio o
descobrem a rabiscar poemas de amor eivados de saudade pueril de sua Margarida,
o moço é levado ao castigo e à mortificação do corpo, o que finda por se tornar
uma prática contínua nos longos anos de sua formação até o retorno para o
inevitável na Vila do Tatu: o encontro com Margarida.
Há falhas n’O
seminarista, mas nada que o rebaixe. Uma delas, são aquelas situações muito
bem armadas pelo escritor, mas que seu desfecho fica insuficiente. O leitor
recordará a celeuma produzida no mutirão de Umbelina, pelo embate de machos em
torno de sua filha. Leonardo, descrito como um honesto trabalhador, mas grosseiro
ao se oferecer sua imagem ao lado do sonso e efeminado Eugênio, insulta
reiteradas vezes o moço até que tudo se contorna pela tomada impositiva de Umbelina.
A narrativa, fundada na peripécia recorrente nos romances de oitocentos, fica à
espera de um desfecho mais trágico decorrente de uma situação fora da ordem: o
moço dos Antunes estava ali de penetra depois de enganar os pais com a história
de ir visitar um primo no sítio vizinho. Nada acontece a nenhum dos dois, derrubando
certo princípio de verossimilhança, visto saber que raras ou quase nenhuma
disputa de amor resolve-se apenas na mudança radical de atitude da figura
triangular. A resposta para isso não é oferecida apenas pela simpatia desenvolvida
pelo narrador para com Eugênio; respalda-se ainda por aquela compreensão
ingênua do bom homem recorrente em Bernardo Guimarães e sobre a qual este texto
sublinhou a partir de Antonio Candido.
Mas, sabe-se
ainda que Eugênio recupera algum traço simbólico-fonético nascido de seu nome –
o moço ingênuo incapaz de levar adiante qualquer fervor de revolta. Aliás, assim
diz o narrador, depois de observá-lo incapaz de levar adiante o plano de se
tornar o anjo rebelde no seminário: “Tímido, cordato e dócil por natureza,
Eugênio não tinha coragem de praticar o mal, nem era capaz de proceder contra
os ditames de sua consciência.” Seria covardia metê-lo num ringue. E o homem,
para o escritor mineiro, não é, ao menos neste romance, um covarde. Assim, é
suficiente a queda do herói romântico no esbater-se com sua condição imposta e
não com as marcas do mundo bárbaro.
Não é apenas
o mito fundacional sobre nossa condição de desamparo o que se observa nessa
relação de amor impossível; ou mesmo uma revisão do amor enquanto condição materializada
apenas no plano platônico. O seminarista é um romance eivado de
simbologias e de outras questões que certamente foram observadas pela crítica,
considerando sua história secular, mas que em muito nos acrescenta, seja por
nos colocar em contato com um tempo outro de nossa história, seja por nos
reavivar alguns elementos fundamentais à compreensão sobre nosso imaginário e
nossa cultura.
Há um único
fato a se acrescentar sobre a história desse livro: o da triste deturpação do
romance. É que a edição original, a de 1872 pela Garnier, perdeu-se no tempo e
desde há muito os leitores têm contato apenas com uma versão encurtada.
Esta é produto de uma revisão vocabular que incluiu até o apagamento de alguns
parágrafos e que passou a circular a partir de 1951 pela Civilização
Brasileira. Nossos clássicos merecem outro tratamento que não este.
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