O arado, de Zila Mamede
Por Pedro
Fernandes
Zila Mamede e João Cabral de Melo Neto |
A obra de
Zila Mamede começa a atravessar períodos fundamentais de sagração, ou melhor,
se visitarmos sua biografia logo poderemos estender essa observação à própria
poeta que, em 2018, alcançou o primeiro centenário. Ela nasceu em 1928 em Nova
Palmeira, na Paraíba, e desde muito cedo foi viver no Rio Grande do Norte;
tinha cinco anos quando chegou a Currais Novos, onde o pai trabalharia numa
beneficiadora de algodão. Essa proximidade da família com o núcleo paterno está
na base de seu périplo, mas este não findaria antes da crise na cultura
algodoeira com a mudança do pai para Natal. Ele esteve envolvido com a
organização estadunidense de uma base de suporte para os Aliados; a nova
mudança se deveu a isso. Atravessávamos o difícil tempo da Segunda Guerra Mundial.
Mas, Zila,
porque sempre envolvida pela sua independência, ainda viveu em João Pessoa e no
Recife e só se fixa em definitivo em Natal aos vinte anos, depois de uma
tentativa frustrada de ser freira. O estabelecimento na provinciana cidade
potiguar permitiu a aproximação da jovem com a quase inexistente cena literária
e seu engajamento no universo das letras começou com pequenas e esporádicas
contribuições para os jornais; mas, sempre estabeleceu relações com importantes
nomes fora de seu Estado – sobretudo depois da publicação de seus principais
livros, quando dialoga mais de perto com nomes como Manuel Bandeira, Geir de
Campos, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, estes dois
últimos incluídos entre os preferências e referências criativas.
Em 2018,
além do centenário de Zila Mamede, passou-se seis décadas da primeira edição de
Salinas, que foi o segundo livro da poeta – publicado, portanto, antes
de Rosa de pedra, livro considerado por Manuel Bandeira como o dos
melhores versos então publicados no Brasil. A observação do poeta de Pasárgada
não foi gratuita; a potiguar é mencionada por ele no seu Apresentação
da poesia brasileira ao lado de Lucy Teixeira e Marly de Oliveira como
poetas de força superior à da maioria dos poetas do outro sexo e integra
esses nomes entre os mais significativos da geração de João Cabral de Melo
Neto.
Nesse mesmo
ano, passou-se quarenta anos da publicação de Corpo a corpo, um
livro-zênite, uma vez que nele se espreita parte fundamental das questões
suscitadas pela poesia mamediana e das influências pontuadas acima. A própria
poeta define essa obra como “uma volta sem mágoa” aos lugares de seu itinerário
poético. É por isso um conjunto de linhas irregulares ainda que muito afeito à
contenção e ao contato com o mundo pelos objetos que o povoam e dão
significação.
O arado
está entre os recentes trabalhos da poeta que alcançam sua efeméride redonda; a
obra chegou à mesma idade de Rosa de pedra. O livro de estreia e este
são, talvez, os seus trabalhos mais lembrados. A razão se deve a uma boa
recepção entre crítica desde sua aparição e certa perenidade das leituras ao
longo de trajetória. No mesmo ano de publicação pela Livraria São José, do Rio
Janeiro, a obra que já trazia um elogioso prefácio de Câmara Cascudo foi lida
por Osman Lins, no ano seguinte é noticiada nos jornais por Carlos Drummond,
José Condé e resenhado para o Correio da manhã por Brito Broca; a essas observações e leituras outras intervenções se seguiram.
O próprio
poeta de Claro enigma acompanhou a feitura de O arado. Numa carta
de 20 de maio de 1958 ressaltava a beleza dos poemas aí reunidos – o que
demonstra que Zila, na maturidade, fazia chegar seus livros antes aos olhares
mais agudos; e na composição da obra aqui em questão, a poeta seguiu várias
lições do poeta mineiro; no ano seguinte, por exemplo, ainda antes da
publicação do poemário – o livro sairia finalmente em
setembro desse ano –, em 27 de março de 1959, Drummond dizia: “Noto o seguinte: certa repetição de
palavras-chave, como pasto, lírio, trigal, pão, que torna monótono o livro”.
Zila não deixou então de rever muitos dos poemas. O arado chegaria na
versão definitiva às mãos do poeta mineiro em fevereiro de 1960.
Os dezenove
poemas desse livro mantêm uma complexa ordem criativa e assinalam uma força
telúrica manifestada pela memória. Esta não é determinada por um princípio em
que os sentidos da rememoração são oferecidos pelo contato do eu-poético com os
objetos e por sua vez com situações guardadas no passado, como a princípio
poderá parecer ao leitor. Muito embora seja isso o que se manifesta à
superfície, evocação, por exemplo, que abre o próprio livro (a meu avô Caçote
// a Nova Palmeira, / terra mãe, fonte raiz, / chão do meu chão), pessoas,
lugares, coisas e acontecimentos não se refazem pelo poema porque este é um
objeto autêntico em relação ao seu mundo exterior.
Isso
significa dizer que a poeta se utiliza das sensações e cria à maneira do poema
as reminiscências que, embora se confundam com as do vivido, ganham uma força
própria e natural visível dentro e fora do texto. Mais apegados ao material
físico, é comum ficarmos somente na primeira camada da leitura ou mesmo nos
determos nas possíveis relações entre o avistado no poema e o seu exterior.
Uma leitura
por transferência se impõe muitas vezes pela estreita relação entre a obra, o
leitor e as evocações, ainda que devêssemos sempre obedecer ao princípio usual
da poiesis. Assim é que, a passagem do tempo tende a melhorar a leitura
do poema. É quando o sentimos descolados do tempo da criação e dos motivos de
sua existência que podemos melhor compreendê-lo enquanto força e pulsão.
No caso de O
arado, embora o registro histórico se interponha entre o leitor e o texto
desde a entrada no livro, faz bem pensar porque a poeta não adota o nome do avô
Francisco Bezerra de Medeiros e sim um designativo informal – é que Caçote não
é apenas seu avô, assim como Nova Palmeira não é só a terra natal. Aliás, não é
isso o que a poeta nos propõe quando opta por dessingularizar o avô pelo seu
apelido e a universalizar seu lugar como terra mãe? Quer dizer, ficarmos presos
entre as determinantes do factual só restringe o tratamento poético oferecido
pela criatividade da poeta.
O passeio
que Zila Mamede nos sugere, a começar pelo arado, o objeto que nomeia seu livro
e o primeiro poema dele, passando por sua morada adotada, as figuras dos avós e
chegando aos objetos, lugares e situações é por um tempo simultaneamente do
eu-poético e nosso, um tempo perdido, tornado resíduo na grande bateia dos
signos que constituem nosso imaginário coletivo. Bem situada nas lições
poéticas do nosso Modernismo, aprendidas na prática e no convívio com os poetas
seus contemporâneos, esse tempo imemorial não se oferece apenas pela tensão assumida
entre a tradição e a modernidade, no bom estilo drummondiano.
Quer dizer,
como é preciso se desvincular de uma memória proustiana, calcada na
reminiscência, para uma memória da evocação, calcada na sugestão sensível do
mundo, é preciso se desapegar da leitura de O arado apenas como um sopro tardio
do modernismo brasileiro. Este livro performa o universal a partir do
reencontro do eu-poético com as sensações de um tempo algures; tudo o que é
tocado pela palavra poética vira síntese, imagem, sugestão e símbolo.
Dos vários
exemplos possíveis de catar na leitura por essa lente – e poderíamos chamar
aqui de linha constituinte da poesia de Zila Mamede na vã ilusão crítica de
encontrar sua chave – dois poemas parecem fundamentais para justificar o
qualquer-coisa de novo que se inaugura na poesia brasileira com este livro. São
eles: “O prato” e “O rio”. Apesar de aparecem em sequência e estarem logo no
início de O arado, a escolha é aleatória e representativa, afinal, do
conjunto de poemas aí reunidos a grande maioria tem como título objetos e
lugares com estreita relação com a terra e com o rural, o que, só por isso,
coloca em questão uma visão da tensão tradição e modernidade como quererá os
leitores com lentes modernistas; isso é possível se formos para o um exercício
que considere as determinações entre o tempo da escrita e o da memória, mas
pela sugestão poética, isto é, numa leitura cerrada do texto, para se ter uma ideia, se cataloga apenas o poema “Rua
(Trairi)”. Mas, voltemos aos poemas escolhidos.
No primeiro
deles, o objeto sugerido no título, de “barro inerte branco”, transmuta-se ora
na campina da terra (sugestão advinda do prato-lâmina da capinadeira) ora em
“branca rosa” que é já “desarvorada lua” para logo se tornar o próprio mundo
entrevisto pela imaginação reinventiva da criança. Isto é, à primeira vista, o
prato seria apenas um elemento a partir do qual a poeta se vê num reencontro
com sua infância, de quando, revivia um mundo de coisas pelas linhas
fronteiriças desse objeto. Mas é uma imagem polivalente, expressão rediviva e
símbolo que nos integra com nossas forças mais primordiais, o cultivo do
alimento.
No segundo
texto citado, a poeta revisita a máxima de Heráclito e não o repete por
compreender que o rio não está à parte do homem; o lugar é transformado no
próprio ser. O rio-memória. E se somos a memória que temos e é rio esta, que
corre indefinidamente, logo somos também rio, tal como sugere a imagem brutal
na força material que sugere embora se transmute em viragem surrealista e assim
conclui o poema, fazendo-o perder-se nas próprias águas. Novamente: e tudo
poderia resultar apenas numa revisitação do rio da infância da poeta ou dos
vários rios que povoaram suas vivências.
Pela leitura
de O arado se entende por que Manuel Bandeira estreita aproximações
entre a poesia de Zila Mamede com a geração de João Cabral de Melo Neto. E aqui
se revela o que se mostra como novidade à poesia brasileira. Os versos nítidos,
objetivos e construídos com um rigor plástico convergem à formação de objetos
não-descarnados porque intermediados pelas significações humanas. Bela maneira de captar a poesia, essa
habitante entre o homem e o mundo acessível pela palavra. Este texto se conclui
com a exposição dos poemas referidos.
O PRATO
Na casa
escura, o prato campinava
dimensão
magra de conviva e pasto.
Se lume de
candeia refletia,
naquela
toalha, o barro inerte branco
uma dor de
menino sacudia
as miragens
de pão que o habitavam.
Liberta de
função a branca rosa
desarvorada
lua se fazia
nas cercas,
no curral espantamento
em que o
menino reinventava reino
onde
aboiavam prados. Infiltrava-se
na mesa
neutra e vã o medo infante:
os dedos
cavalgados por fantasmas
serenamente
despedaçam luas.
O RIO
a Mauro
Mota
Um rio
adormecido em cada infância,
rio seco ou
de enchente, intempestivo
rio que não cresceu
– riacho riba.
Mas o que
conta de nós é mesmo o rio
correndo na
memória com seu jeito
de rio, sua
boca chã de rio,
a força de
ser rio e ser caminho
de rio,
noite assombração de rio,
chamado ser
em oculto chão de rio,
ter os
remorsos fluviais de rio
que afogou
nas areias dois meninos
e de seu
pranto fez nascer cacimbas.
Ligações a esta post:
>>> No Tumblr do Letras podem encontrar além dos registros de imagem desta post, um poema de O arado com intervenções da própria Zila Mamede.
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