Milan Kundera, o apátrida que vive na literatura universal

Por Jesús Ruiz Mantilla


Milan Kundera. Foto: Gisèle Freund


Nos romances de Milan Kundera, você raramente lê a palavra Tchecoslováquia. Tampouco algo que venha do lugar. Por outro lado, não há autor vivo que tenha retratado melhor a alma efêmera de um país que mal resistiu ao seu próprio nome por setenta anos.

As figuras que povoam seu mundo pertencem à Boêmia. O que também é algo redutivo para alguém que nasceu na Morávia: especificamente em sua capital, Brno, em 1º de abril de 1929. Convenhamos que, a partir da soma de ambas as terras, junto com a Silésia, existe hoje o que conhecemos como República Tcheca e que Kundera procede dessa convenção territorial, além de ter usado essa língua para criar a maioria de suas obras-primas. É apenas por isso, não porque esteve retido da nacionalidade e do seu passaporte roubados em 1979 e que seus compatriotas, não isentos de vergonha e pedindo perdão, fizeram retornar para as mãos do escritor.

O episódio recente se deu na intimidade de sua casa em Paris, onde apenas estiveram presentes sua companheira Vera, Petr Drulak, o embaixador tcheco na França e o escritor. Kundera aceitou a oferta do primeiro ministro Andrej Babiš alguns meses antes. Simbólico, se diz. E talvez desprovido de valor para quem há muito tempo tem clara qual é sua verdadeira pátria, seu destino mais íntimo. Ele confessa isso numa de suas obras fundamentais, A arte do romance: “Mas, se o futuro não representa um valor a meus olhos, a que estou ligado: a Deus? à pátria? ao povo? ao indivíduo? Minha resposta é tão ridícula quanto sincera: não estou ligado a nada, salvo à herança depreciada de Cervantes.”

A herança depreciada de Cervantes... Não há nada. E tudo para quem durante décadas se observa, se aceita, se confessa apátrida a ponto de ter renunciado em sua última etapa à língua materna e passado a escrever em francês. O que torna parte dessa parcela ignota em que a linguagem e a criação são leis sem fronteiras.

Uma das virtudes que Kundera reivindica em Cervantes é o relativismo. Com esse pressuposto moral, diz, se dá o início do romance moderno. Desde então, não existe outra missão de que a busca pela verdade ilusória – ou melhor, pela pluralidade de verdades – que somos forçados a capturar e que para cada um de nós pode ser diferente.

A faceta visionária do escritor tcheco se mostra a partir dessa aplicação do relativismo. Kundera acertou em não desenvolver seus romances num território chamado Tchecoslováquia, embora não existam identidade melhores para defini-lo do que A brincadeira, A vida está em outro lugar, A insustentável leveza do ser ou A imortalidade. Em sua aplicação da lógica histórica – ele era filho da queda do império austro-húngaro e, portanto, da dinâmica da desintegração, hoje ressuscitada pela miopia do nacionalismo e do populismo – ele sabia que essa convenção artificial do Estado não duraria. Da mesma forma que hoje ainda não podemos apostar na eternidade de qualquer coisa que se assemelhe a uma comunidade instalada atrás de várias linhas que delimitem fronteiras.

Nisso, talvez Kundera tenha sido capaz de adivinhar seu destino nas aventuras de outros que ele admira. Considere, por exemplo, Franz Kafka, Franz Werfel e Jaroslav Hasek, três autores que coabitaram na mesma cidade durante um certo tempo e pertenceram a imaginários de diferentes países, apesar de nascerem no mesmo lugar... Praga, essa maré de cruzamentos que levam sempre em direção ao epicentro de si mesma: as nações desaparecem ao seu redor, mas a cidade persiste em sua essência inextinguível. Daí a validade errante e o alcance das respectivas aventuras tragicômicas desses três autores: absurdas, pelo menos; totalmente paradoxais em sua natureza.

Franz Kafka se tornou um símbolo universal ao adivinhar que a burocratização do mundo se conectava com a alma para chegar a um caráter alienante: o escritório, cuja sede era o castelo. Não haveria maneira melhor de escapar disso que, ao mesmo tempo, através da fantasia e do pesadelo. Ele escreveu em alemão e é por isso que hoje os tchecos não o consideram um autor da sua literatura, mas ninguém pode negar que o autor de A metamorfose construiu Praga como uma metáfora da modernidade em suas sombrias premonições.

Hasek, por sua vez, entra no rol dos autores de seu país. De maneira identitária e baseada no humor, ele constrói seu Dom Quixote tcheco, As aventuras do bom soldado Švejk. Kundera argumenta que a ironia desconcertada no labirinto de sua tragédia se baseia no fato de que ele não sabe por quem ou por que luta.

Werfel é quem ganha o destino mais triste – ou melhor, perde – entre os três. Apesar de sua grande estatura, atualmente, se entramos numa livraria em Praga não conseguimos encontrar seus livros traduzidos para o tcheco. Isto é, ele encarna como ninguém as consequências desse desterro. Ao escrever também em alemão, foi repudiado de seu próprio território e hoje, infelizmente, seus compatriotas desconhecem o brilho de Os quarenta dias da musa Dagh Verdi, o romance da ópera ou A canção de Bernadete. Seu exemplo prova até que ponto, com os anos e um processo de lobotomia cidadã, autores de línguas fora da essência do que afirmam os ultranacionalistas, são enterrados num injusto esquecimento.

Uma frente de bastardos apátridas

Digamos que todos eles, com Kundera no comando do grupo, constituem uma frente de bastardos apátridas que residem em Praga como uma cidade símbolo de uma raça mista. Em suas fileiras, também incluiria vários cúmplices austro-húngaros: Hermann Broch de Os sonâmbulos e A morte de Virgílio, Robert Musil de O homem sem qualidades, Joseph Roth de Marcha Rádetzky ou Hotel Savoy, cavaleiros cujo último grito silencioso foi o suicídio, como Stefan Zweig ou Sándor Marái. Talvez não Max Brod, o amigo íntimo de Kafka, com quem Kundera ajusta contas – com razões mais que discutíveis – em Os testamentos traídos.

Também não se pode negar a presença de poetas como Rainer Maria Rilke, também nascido em Praga ou Vladimir Holan, que se manteve recluso para se expatriar em meio do comunismo no mesmo centro da cidade. Ele fez isso como um monge místico, dedicado a desvendar átomos de luz das trevas extremas de sua própria poesia: o anjo negro, como o chamavam.

Todos surgem de outra convenção, geográfica ou melhor, geocultural. A Europa Central. “Esse laboratório do crepúsculo”, como definido por Kundera. Juntos, em coro, eles formam um espírito que reinventa a modernidade em direção a caminhos infinitos. Dentro dela, exploram um grito errante e desvendam a diversidade e a polifonia como qualidades inalienáveis ​​de seu próprio legado e como prova de sua maior riqueza. Isso se expandiu, de alguma forma, para outras diásporas e que exploram a criatividade de escritores judeus nos Estados Unidos, como Philip Roth. Aliás, por que este, curiosamente, viajava tanto à Praga? Era ciente de que apenas ali ele desvendaria a sua própria pedra filosofal nos rastros do Golem? Algo semelhante também se passa com os autores do Boom latino-americano que buscam sua expatriação em Paris e Barcelona.

Todos eles são algo que ninguém melhor que Kundera conseguiu explorar em seus ensaios, além de passaportes e nacionalidades específicas com data de validade, todos são habitantes do território que Goethe queria conquistar e indicou como um paraíso: literatura universal. 

* Este texto é uma tradução livre de “Kundera, el apátrida que vive en la literatura universal”, publicado aqui, no jornal El País

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