Kholstomer – história de um cavalo
Por Davi Lopes Villaça
Lendo
Tolstói parecemos escutar duas vozes que se contradizem sem jamais atentar à
existência uma da outra. Pois esse autor, que tão severamente investe contra os
vícios humanos, é também o maior admirador da vida desregrada, guiada apenas
pelos ímpetos do corpo e dos instintos. Ele nos fala às vezes como um velho
cristão, sinceramente arrependido dos pecados da juventude; mas eis que, no
momento seguinte, parece esquecer-se de sua conversão para recordar aqueles dias
felizes de entrega, quando a consciência do pecado não havia e, por isso,
tampouco o próprio pecado. Thomas Mann o descreveu como um “filho da natureza”,
marcado por “tentativas imensamente desajeitadas e jamais bem-sucedidas de
espiritualização moral de sua corporalidade pagã”. É tentador imaginá-lo assim
como um símbolo da própria Rússia do século XIX, esse país, como o viam muitos
russos, ainda mal civilizado pela cultura europeia e que vivia na nostalgia de
sua antiga barbárie.
Um bom
exemplo dessa contradição em Tolstói é o conto “Kholstomier” – uma narrativa
muito rica e detalhada, da qual me limito a comentar apenas um aspecto. O
subtítulo antecipa: trata-se da história de um cavalo, mas a forma como ela é
contada não deixa de surpreender o leitor. Temos de início a descrição, sob uma
perspectiva bastante realista, de um dia comum da vida de uma manada de cavalos
de um rico proprietário rural, todos eles jovens e fortes, descendentes da
mesma nobre estirpe, contrastando com a triste figura do velho castrado
Kholstomier, sempre importunado pelos outros, mas tudo suportando com admirável
estoicismo. A impressão é de que o autor se limitará a acompanhar os tristes
passos do pangaré – o que não parece nada mau, pois Tolstói como poucos sabe
explorar o ponto de vista do seus bichos, o pensamento particular deles, com
que se mostram não menos complexos nem menos espertos do que suas personagens
humanas – isto quando não lhe parecem mesmo superiores. Veja-se, por exemplo,
esta breve cena entre Kholstomier e o cavalariço Niéster:
“Niéster
tirou o bridão do castrado malhado, coçou embaixo do pescoço do cavalo e, em
resposta, o castrado fechou os olhos, num sinal de gratidão e contentamento.
‘Gosta, não é, cachorro velho!’, exclamou Niéster. O castrado não gostava nem
um pouco daquela coçadinha, só por delicadeza fingia que lhe agradava, e
balançou a cabeça como quem concorda.”
Mas a certa
altura o conto muda subitamente de direção. Esta não será apenas a história de
um animal vista da sua perspectiva (como o famoso caso do conto “Kashtanka”, de
Tchékhov), mas narrada por ele, com a súbita introdução do narrador em primeira
pessoa. Kholstomier é alvo constante das pirraças e agressões dos outros
cavalos, para quem só a presença do velho castrado na manada já constitui uma
afronta. Mas numa noite, quando a perseguição passa do limite, o cavalo
inesperadamente toma a palavra e põe-se a falar aos outros exatamente como um
ser humano, subvertendo a verossimilhança inicial da história. Os outros
cavalos, sem nada dizer mas tudo compreendendo, põem-se a escutá-lo
atentamente. Kholstomier evoca primeiro o nome de seus pais, confirmando sua
origem aristocrática. “Pelo nascimento, pelo sangue”, diz ele, “não existe no
mundo cavalo superior a mim”. Prossegue então narrando os muitos infortúnios com
os quais ele, o maior de todos os cavalos – amaldiçoado, porém, por sua pelagem
malhada, que o fizera ser sempre discriminado pelos outros – se defrontou antes
de adquirir aquele aspecto lamentável.
Esse é um
conto que nos fala indiretamente sobre a importância da linguagem na formulação
de nossas identidades. No início, a narrativa se limita ao plano da ação
presente das personagens. O velho Kholstomier, os membros da manada, o próprio Niéster,
todos vivem exclusivamente para o aqui e agora. Mas quando o herói toma a
palavra, o faz justamente para assenhorar-se do passado, para dizer que quem
ele se mostra agora não corresponde em nada a quem foi e de algum modo pretende
ainda ser. Contar sua história é fazer da própria memória um traço identitário,
construir para si uma essência que tem como base o vínculo entre o passado e o
presente. Isso vem desde Homero: dez anos após Guerra de Troia e tantos outros
navegando pelo mar, Ulisses está irreconhecível. Quem seria ele sem o dom da fala?
Apenas um pobre marujo esquecido pelos deuses, que nem a própria família
saberia reconhecer. O herói só possui uma identidade porque pode lembrar e contar
sua história, confirmar a todo instante sua origem nobre e divina: “sou
Odisseu, rei de Ítaca, filho de Laertes, progênie de Zeus”. Usamos de linguagem
para dar nome ao que vemos, mas também para o que deixamos de ver e mesmo para
o que nunca vimos. Para o bem ou para o mal, a palavra tem o poder de instaurar
em nosso tempo o domínio do que é ausente.
O relato de
Kholstomier lhe garante o respeito dos outros cavalos, que cessam de
incomodá-lo. Mas, coisa curiosa, o cavalo falante faz em seu relato uma crítica
à própria linguagem – ou, ao menos, a algumas de suas possibilidades. O conto
tornou-se famoso no meio acadêmico ao ser usado por Viktor Chklóvski, um dos
fundadores do Formalismo Russo, para exemplificar o conceito de Ostranenie
(geralmente traduzido como “Estranhamento”), cunhado em seu artigo “A arte como
procedimento”. Para o crítico, o artista tem a função de desautomatizar nossa
percepção do mundo, obrigar-nos a vê-lo ao invés de simplesmente reconhecê-lo.
Palavras, imagens e ideias com que nos habituamos banalizam-se, perdem sua
força expressiva: deixamos de percebê-las da mesma forma como os habitantes do
litoral deixam de escutar o ruído do mar. A literatura, na medida em que nos
faz “estranhar” o mundo, apresentando-o sob uma perspectiva nova, faz-nos
senti-lo novamente, como se o víssemos pela primeira vez, em seu frescor
original. Mas não só isso: ela expõe muito do que tomamos por natural em seu
artificialismo, acusando o caráter arbitrário de certas convenções. É o caso da
famosa passagem do conto de Tolstói, citada por Chklóvski, em que se estranha a
noção de propriedade. Diz Kholstomier:
“Os homens
não dirigem a vida com fatos, mas com palavras. Não os preocupa tanto a
possibilidade de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, como a de falar de
objetos diferentes mediante palavras convencionais. Essas palavras, que
consideram muito importantes, são, sobretudo, meu ou minha, teu ou tua.
Aplicam-nas a todas as espécies de coisas e de seres, inclusive à terra, aos
seus semelhantes e aos cavalos.
Além disto,
convencionaram que uma pessoa só pode dizer meu a respeito de uma coisa
determinada. E aquele que puder aplicar a palavra “meu” a um número maior de
coisas, segundo a convenção feita, considera-se a pessoa mais feliz. Não sei
por que as coisas são desse modo, mas sei que são assim. Durante muito tempo
procurei compreender isso, supondo que daí viria algum proveito direto; mas
verifiquei que isso não era exato.
Muitas
pessoas das que me chamavam seu cavalo nem mesmo me montavam; mas outras o
faziam. Não eram elas as que me davam de comer, mas outros estranhos. Também
não eram as pessoas que me faziam bem, mas os cocheiros, os veterinários e, em
geral, pessoas desconhecidas. Posteriormente, quando ampliei o círculo de
minhas observações, convenci-me de que o conceito de meu – e não só com relação
a nós, cavalos – não tem qualquer outro fundamento além de um baixo instinto
animal, que os homens chamam sentimento ou direito de propriedade. [...]. As
pessoas não procuram, em sua vida, fazer o que consideram o bem, e sim a
maneira de poder dizer do maior número possível de coisas: é meu. Agora estou
persuadido de que nisso reside a diferença essencial entre nós e os homens.
Portanto, sem falar de outras prerrogativas nossas, só por este fato podemos
dizer, com segurança, que entre os seres vivos, nos encontramos em nível mais
alto que o dos homens. A atividade dos homens, pelo menos a dos homens com os
quais tenho tratado, se traduz em palavras, ao passo que a nossa se manifesta
em fatos.”
É evidente
que Tolstói não quis apenas mostrar o mundo pelos olhos de um animal, mas
sobretudo valer-se desse ponto de vista para criticar o que ele via de mais
depravado e arbitrário em sua sociedade. Disso mesmo, no entanto, originam-se
duas interessantes ironias na passagem. A primeira refere-se à crítica que se
faz a uma vida dirigida com palavras. Afinal, o próprio Kholstomier teve de
recorrer a elas para evocar uma identidade que os meros fatos jamais
permitiriam constatar. A outra é a que diz respeito ao trecho que define a
noção de direito de propriedade como um “baixo instinto animal”. Não é estranho
que justamente um cavalo atribua a palavras como “instinto” e “animal” um
sentido negativo? Tanto mais se considerarmos que nas linhas seguintes ele
afirmará a superioridade dos animais sobre os humanos. É verdade que Kholstomier
não se dirige aos instintos em geral, mas aos “baixos”. Mas acaso pode haver
para um cavalo esse tipo de distinção? Ela parece pertencer exclusivamente ao
mundo humano, que na medida mesma em que se afastou da natureza concebeu para
si noções estranhas como bem e mal, certo e errado, baixo e elevado.
Poderíamos ver Kholstomier simplesmente como
uma figura retórica do autor, da qual ele se vale para mostrar como
antinaturais as noções e a sociedade que ele desejava criticar. Mas mais do que
isso, a meu ver, a personagem representa, como criação, uma tentativa de
conciliar visões de mundo de todo inconciliáveis: uma, natural, em que
prevalece a espontaneidade do animal – a vida dirigida pelos fatos –, e outra,
moral, inteiramente dependente da razão, da vida dirigida por palavras. A bem
dizer, Tolstói teria desejado que essas duas coisas, moral e natureza (ou mesmo
Deus e natureza, dadas as suas inclinações religiosas) fossem uma só. Talvez
Kholstomier seja a realização plena, possibilitada apenas pelo nonsense da
fábula, daquilo que o autor mesmo desejou ser, um bicho moral – como se ser
moral fosse apenas a consequência inevitável de ser bicho. Sob uma perspectiva
realista, no entanto, sua personagem é inverossímil não só por tratar-se de um
animal que fala, mas por, sendo dotada dessa capacidade, não ter comprometida
sua tranquila animalidade. As críticas de Tolstói aos vícios da sociedade são,
de modo mais amplo, investidas contra a própria civilização, contra o
artificialismo com que esta, regida por normas e instituições, inevitavelmente
impõe às relações humanas. Por trás das tentativas do autor de aperfeiçoamento
moral parece ecoar, muitas vezes, um desejo mais profundo, de dissolução mesma
de toda moralidade, de toda consciência, talvez da própria linguagem. Um desejo
de retorno à mais simples naturalidade.
Segundo
Orlando Figes em Uma história cultural da Rússia, alguns dos que conheceram de
perto Tolstói afirmaram que seu interesse pela filosofia e pela religião tinham
como base o medo da morte. Daí também, em parte, a grande admiração do autor
pelos mujiques: em sua vida extremamente dura, os camponeses russos estavam
habituados à presença da morte e a encaravam com relativa tranquilidade.
Tolstói desejava ser como eles, que não a temiam. Talvez desejasse também ser
como os bichos, que não pensavam nela. Seja como for, sua vida caracterizou-se,
antes de mais nada, pela inquietude. Já me ocorreu a imagem de Tolstói como um
velho cheio de receios e com saudades da juventude, mas essa é uma visão no
mínimo simplista: suas angústias o acompanharam desde cedo, da mesma forma como,
mesmo no apogeu da velhice, ele impressionava ainda a todos por sua
inquebrantável vitalidade. Hoje, penso mais frequentemente no autor como a
versão possível de seu cavalo Kholstomier: essa criatura arrastada para a
civilização e para a consciência, refém das palavras, com saudades do bicho que
ela no fundo jamais deixou de ser.
Textos
citados:
TOLSTÓI, L.
N. “Kholstomier”, In: Contos Completos. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
MANN,
Thomas. “Dostoiévski, com moderação”, In: O escritor e sua missão. Rio de
Janeiro: Zahar, 2012.
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