João Cabral de Melo Neto e os campos tristes de Málaga
Por Lucas
Martín
O vento
soprava com uma marcha ruidosa, esmorecida, sobre o canavial comum. Havia ao
fundo um verão com lagartixa. O sol insuportável golpeando rudemente, com esse
ritmo de umidade decadente que deixa a natureza em Málaga com a síndrome matojo
peleón, embutida como uma ilhota. O poeta João Cabral de Melo Neto, em seu
traje diplomático, metade sábio crioulo, metade coquetel de penas
amarelas, deveria parecer, pisando nos campos, uma espécie de perversão
colonial olhando a trama do novo mundo que no fundo era o velho, sobrepondo aos
tons do Brasil seu português feito de pensamentos da Europa e das águas dos
rios. Despertado pela paixão cigana, com uma lança de flamenco ainda ardendo no
estômago, o escritor viu a paisagem da Costa del Sol e teceu um mapa impossível
de associações e contrastes com o seu Pernambuco natal, onde, para crescer, até
os esgotos estão dispostos a se deixar mimar pela chuva e um dia se tornar
orangotangos.
De sua
visita a Málaga, a partir da visão do canavial, ele, nascido em campos desfronteiriços,
deixou um poema que, como quase toda a sua obra, se tornou imediatamente um
clássico da literatura de língua portuguesa. Meio século depois, o texto “Pernambucano
e Málaga” pode ser ouvido até nas playlist virtuais mais populares,
testemunhando uma relação geográfica espiritual sem antecedentes na história.
Ninguém fez tanta coisa por Andaluzia no Brasil e talvez até na língua de Luís
de Camões e Carlos Drummond de Andrade. Quando no final de sua vida as
autoridades turísticas de Sevilha foram vê-lo para lhe reder homenagens, o
poeta ainda estava se emocionava ao pensar naquele outro sul que ele tão bem
soube sintetizar e que acabaria se infiltrando para sempre em sua obra, com
toda a sua cascata de impressões ferozes e sua peregrinação pelo uso dos batuques
e guitarras.
O poeta João
Cabral de Melo Neto se apaixonou por Andaluzia, com muito mais força, não apenas
por desgarramento, que por Barcelona, onde foi sua primeira missão
diplomática na Espanha e, onde longe de viver encurralado, entre diligências
burocráticas e saudade, havia se tornado um artista emergente na Europa. Na
época em que recebeu a missão do Brasil de viajar para Sevilha e estudar o
Arquivo das Índias, o eterno candidato ao Nobel já era uma personalidade na
Catalunha. Sua maneira de entender a literatura, que Saramago compararia em
termos de grau de inovação e criação própria com Fernando Pessoa, abriu as
portas do então emergente grupo Dau al Set. João Cabral de Melo Neto não era
mais simplesmente um cônsul de ascendência literária; colaborava com Joan Miró,
com Joan Brossa. E seu nome soava forte entre os de maior valor e mais
interessante trajetória na poesia latino-americana.
Três décadas
antes de conquistar o prêmio Rainha Sofia, no final dos anos cinquenta, o
escritor passeava por Sevilha, dizia que mais do que civilizar a terra era a
sevilhizá-la, colhia anotações sobre o ambiente, cheirava o mundo de terras
das touradas e até da Semana Santa – chamava-lhe atenção que cada bairro
andaluz tivesse uma virgem e isso para seu próprio grupo de fanáticos, ao que
comparava com as torcidas do futebol brasileiro. O sul nunca saiu da cabeça de João
Cabral de Melo Soto ou de seus poemas, por onde circulavam nomes como Belmonte
ou Manolete. Além disso, é claro, de Málaga, uma cidade que ele conheceu em uma
daquelas rotas frequentes que vasculhavam com a luz do mar a estampa de bandoleiros
e as aventuras com as quais se construíam as lendas locais.
Na Costa del
Sol, eram culturas de cana. Mas também a pobreza, rodopiando entre as arcadas,
com seu barulho de sandálias e facas soltas. “A cana doce de Málaga / dá
escorrida e cabisbaixa: / naquele porte enfezado / de crianças abandonadas, diz
o famoso poema. O grande poeta pernambucano, com sua aguda sensibilidade para
com os quem têm menos; o mesmo olhar, naqueles dias na província, que percorria
a região mais pobre do Brasil compondo a famosa canção dos deserdados, o poema “Morte
e a vida severina”, mais tarde musicalizado por Chico Buarque. “A música me
entorpece, o flamenco me arrebata”, diria. João Cabral de Melo Neto, o
diplomata, o brasileiro, o apaixonado andaluz, morreu em 1999, logo depois da
homenagem realizada em Andaluzia. Cego, saudoso e uma memória ainda fresca o fez
perguntar ao amigo, o teólogo Leonardo Boff, se era possível continuar vivendo
depois da morte como contavam na infância. “Não se preocupe, os poetas não vão
para o inferno”, respondeu ele. Málaga e Andaluzia ainda podem estar esperando
por você.
PERNAMBUCANO
EM MÁLAGA
§
A cana doce de Málaga
dá domada, em cão ou gata:
deixam-na perto, sem medo,
quase vai dentro das casas.
É cana que nunca morde,
nem quando vê-se atacada:
não leva pulgas no pelo
nem, entre folhas, navalha.
§
A cana doce de Málaga
dá escorrida e cabisbaixa:
naquele porte enfezado
de crianças abandonadas.
As folhas dela já nascem
murchas de cor, como a palha:
ou a farda murcha dos órfãos,
desde novas, desbotadas.
§
A cana doce de Málaga
não é mar, embora em praias:
dá sempre em pequenas poças,
restos de uma onda recuada.
Em poças, não tem do mar
a pulsação dele, nata:
sim, o torpor surdo e lasso
que se vê na água estagnada.
§
A cana doce de Málaga
dá dócil, disciplinada:
dá em fundos de quintal
e podia dar em jarras.
Falta-lhe é a força da nossa,
criada solta em ruas, praças:
solta, à vontade do corpo,
nas praças das grandes várzeas.
* Este texto é a tradução livre de “João Cabral de Melo Neto y los campos
tristes de Málaga”, publicado aqui em La Opinión de Málaga.
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