Destaques em projetos editoriais de 2019
A polêmica
por um livro a peso de ouro
O ano de
2019 marcou o início da reedição da obra de João Guimarães Rosa depois da saída
dos domínios da Editora Nova Fronteira – mesmo com uma vasta quantidade de
títulos disponíveis então recém-editados por esta casa editorial. Grande parte desse
projeto tem sido conduzido pela Global Editora, mas nas negociações fechadas no
ano anterior, o romance Grande sertão: veredas ficou com o Grupo
Companhia das Letras. O anúncio de uma edição de luxo ao custo de quase dois
mil reais foi motivo de acalorada discussão entre leitores em vários canais;
enquanto todas se digladiavam, os 63 exemplares do livro – número que se
referiu à quantidade de edições da obra já editada no Brasil – se esgotava. Não
durou nem mesmo um dia entre a abertura e o fim das vendas. As polêmicas,
embora essenciais para reabrir o debate sobre a democratização de acesso ao
livro num país profundamente marcado por índices penosos de leitura, ganharam
caminhos duvidosos: não foi a primeira vez que se realizou uma edição de luxo
para o romance em questão, tampouco a existência do produto inibia o acesso à
obra dada a variedade de valores e de formas de acesso. O caso é que este foi o
projeto editorial mais ambicioso do ano. A obra integralmente revista pela
segunda edição publicada pela Livraria José Olympio, de agosto de 1958, uma das
edições mais próximas da idealizada pelo autor, contou com acabamento especial
em capa dura com baixo relevo e costura aparente. A sobrecapa concebida por
Alceu Chiesorin Nunes bordada uma a uma por um grupo de bordadeiras do interior
de Minas Gerais seguiu o padrão que refez o avesso do Manto da Apresentação do
artista Arthur Bispo do Rosário com os nomes das personagens do romance. O
projeto gráfico reproduziu os originais desenhos de Poty Lazzarotto utilizados
nas primeiras edições do Grande sertão. Além desses detalhes particulares,
o livro trouxe um conjunto de textos de nomes como Roberto Schwarz, Walnice
Nogueira Galvão, Benedito Nunes, Davi Arrigucci Jr. Silviano Santiago, excertos
da correspondência entre Clarice Lispector e Fernando Sabino e cronologia do
autor ilustrada (material incluído na edição comum). Os 63 exemplares numerados
– número alusivo à mesma quantidade de edições da obra no Brasil – foram
entregues numa caixa feita de buriti por uma rede de artesãos do sertão
mineiro. Projeto, além de cuidadoso, invejável, que ressalta a valor de uma das
obras mais importantes das literaturas de língua portuguesa.
O precoce
e fundamental trabalho de organização da biblioteca de poesia de Eunice Arruda
A escritora
paulista de Santa Rita do Passo Quatro morreu em 2017. Sua estreia se dá em
1960 ainda pelas mãos de Massao Ohno. Durante sua trajetória poética recebeu
importantes prêmios com o Mérito Cultural pela União Brasileira de Escritores
do Rio de Janeiro e publicou quase duas dezenas de títulos só no gênero que
mais cultivou, a poesia, além de figurar em publicações das mais variadas entre
1960 e 2010, incluindo textos em prosa. Visível ao destino compila toda
sua poesia; são livros como É tempo de noite (o título de estreia), O
chão batido, Mudança de lua, Invenções do desespero, Risco,
Debaixo do sol e mais 34 textos inéditos. O trabalho de organização da
rica antologia publicada pela Editora Patuá foi do filho de Eunice, André
Arruda M. César.
Outra maneira
de colonização holandesa
Em 2019, o
Selo Demônio Negro, reconhecido pela apresentação no Brasil de alguns dos nomes
mais significativos da poesia de dentro e fora da língua portuguesa, apresentou
a antologia Poesia Holandesa. Do século XIX à atualidade. O leitor mais
acadêmico não encontrará grande fôlego quanto as informações aqui reunidas; por
outro lado, este e o leitor comum conseguirão obter um panorama bastante
significativo de nomes da literatura feita na Holanda. De modo que, por ser a
primeira, é a mais ampla obra com o propósito de nos colocar em contato com
vozes quando não praticamente desconhecidas. O trabalho que culminou na apresentação
de três dezenas de criadores situados entre os anos de 1852 e 2009 foi
organizado por Daniel Dago, quem também traduziu ao lado de Rubens Chinali. De
cada poeta encontramos uma sinopse biográfica e um poema acompanhado de sua
versão original.
Os dias
exemplares de Walt Whitman
Em 2019 cumpriu-se
o bicentenário do grande poeta precursor do modernismo na literatura
estadunidense. Em parte devido a essa efeméride, a Editora Carambaia publicou
uma reunião de textos curtos que funcionam como uma autobiografia involuntária
do poeta; são trechos de poemas em prosa, listas, pequenos ensaios, notas sobre
política, esboço para retratos de personagens ilustres e comuns, cartas,
citações. Se Folhas de relva, seu livro mais importante e mais conhecido
foi produto de uma vida, este trabalho semelhante ao de um longo itinerário de
catalogação não foi diferente. Os projetos editoriais dessa editora já
dispensam apresentações, pelo capricho e tratamento diferenciado dos livros –
embora não tenham durante 2019 se aventurado em criações mais ousadas – Dias
exemplares aparece nessa lista por tripla razão: a efeméride sobre o seu
autor, a importância dessa obra finalmente em português pelas mãos de Bruno
Gambarotto, autor também do posfácio incluído no livro, e a delicadeza da
Thiago Lacaz em, seguindo o rito do poeta que costumava coletar folhas para
depois prensá-las entre os livros, coletar mil folhas e depois transportá-las
nas mil silhuetas que compõem individualmente os mil exemplares da tiragem dessa
edição.
Edições
especiais não especiais
Com a Editora
Carambaia, a Editora Ubu é, no mercado editorial brasileiro, a casa que mais se
envolve em projetos ousados de livros-objetos. Mas, em 2019, conseguiu a
façanha de tornar as edições comuns mais interessantes que as especiais. Na
lista de obras ditas especiais apresentadas por esta casa editorial, deslumbraria
o leitor as edições de O coração das trevas, de Joseph Conrad e Hamlet,
de William Shakespeare. Mas, pelo conteúdo, as assim denominadas edições comuns
conseguem ser mais interessantes, seja pela forma, seja pelo conteúdo. Vejamos:
no caso do primeiro título, apesar de o livro trazer as ilustrações de
Rosângela Rennó, os mesmos textos – o posfácio do escritor Bernardo Carvalho, os
ensaios críticos de Walnice Nogueira Galvão, Paulo Mendes Campos e um texto in
memoriam de Virginia Woolf sobre o autor, o formato, um livro por se fazer
(impresso, dobrado e costurado, mas sem refile e sem acabamento) num envelope
de cartão lacrado deixa de nos convencer diante da edição comum em capa dura.
No caso de Hamlet, o projeto do artista plástico, escritor e cenógrafo
Nuno Ramos consistiu de organizar a obra em dois volumes acomodados numa luva
com capas em tecido e serigrafia. Até aqui tudo bem. Mas, quando vamos ao
conteúdo, encontramos no primeiro volume o texto integral da peça acompanhado
das 21 xilogravuras que Edward Gordon Craig criou para a edição clássica de
1930 publicada pela Cranach Press e no segundo volume, um livro praticamente em
branco – todas as falas e ilustrações foram apagadas e restam apenas as rubricas.
E se isso ainda não for inusitado, um livro e um não-livro, todo o material
complementar que amplia a dimensão experimental da obra ficou de fora e só
aparece na edição chamada comum: seis textos, em sua grande maiora inéditos em
português, como os de Coleridge, Turguêniev, Bradley, Northrop Frye, Lacan e
Barbara Heliodora. Por isso, as edições especiais dos dois livros que melhor
condizem com a lista – pela reunião indispensável entre o estético e o
conteúdo, são as edições comuns.
Robusta
como uma baleia
Livro a livro,
se refaz o catálogo da extinta Cosac Naify. Das edições reapresentadas por outras
casas editoriais em 2019, chama a atenção o romance de Herman Melville, Moby
Dick, reeditado pela Editora 34. A tradução de Irene Hirsch e Alexandre
Barbosa de Souza para o clássico da literatura estadunidense ganhou novos materiais
de apoio; além dos textos apresentados na edição anterior, os ensaios de Evert
Duychinck, D. H. Lawrence e F. O. Matthiessen, traduziu-se o prefácio de Albert
Camus, inédito por aqui, e acrescentou-se um ensaio de Bruno Gambarotto, um dos
mais importantes leitores brasileiros da obra de Melville. A nova edição foi uma
maneira de sublinhar o bicentenário de nascimento do autor, celebrado neste ano
de 2019.
Bertolt
Brecht renovado e ampliado
A obra do
criador alemão tem reputada presença entre os leitores brasileiros. Em 2012, a
antologia então mais completa da sua poesia, por exemplo, ganhava a 7ª edição há
uma década da primeira. A indicada nesta lista, Bertolt Brecht. Poesia foi
organizada e traduzida por André Vallias. Integra a reconhecida Coleção Signos
da Editora Perspectiva. Essa nova antologia ultrapassa a da Editora 34 em mais
de quatro dezenas de novos textos: são 300 poemas, excertos de diários,
anotações autobiográficas, vinte textos de Brecht que formam uma teoria da
poesia, notas e uma introdução, além de rico material iconográfico o que aqui
se apresenta. O feito coloca o trabalho do criador de Heine, hein? entre
os mais significativos no mercado editorial brasileiro de 2019 além de seguir
com a perenidade da presença de Brecht entre seus leitores daqui.
Ficção
científica vestida a rigor
1984, de George
Orwell alcança em 2019 sete décadas desde sua primeira edição. E para abrir as
comemorações do feito (a ideia é também apresentar um projeto semelhante para A
revolução dos bichos), a Companhia das Letras preparou uma edição especial
com novo projeto gráfico – capa em tecido, lombada impressa e uma série de
obras da artista brasileira Regina Silveira. Uma das mais importantes obras da
ficção científica recebeu um aparto crítico invejável: uma apresentação de
Marcelo Pen e textos de Golo Mann, Irving Howe, Raymond Williams, Thomas
Pynchon, Homi K. Bhabha, Martha C. Nussbaum, Bernard Crick e George Packer.
Este conjunto de textos assinalam a história da recepção crítica do romance
desde o ano de sua publicação até os dias dos setenta anos.
Colhido
dos jardins
Alguns dos
projetos editoriais mais bonitos estão escondidos nas pequenas casas editoriais.
Este, entretanto, não ficou tão desconhecido dada a boa repercussão nas redes
sociais. Pensado e executado por Sílvia Nastari, a edição preparada por Bruno
Zeni e saída pela Editora Quelônio é um pequeno relicário da poesia de Ana
Cristina Marques. São 21 poemas em torno do tema das plantas e dos jardins,
exercício que deu a inspiração para o seguinte projeto: um livro em duas cores
(verde e vermelho), feito em tipografia: capa em tipos móveis, com capitulares
ornamentadas; textos dos poemas composto em linotipia, uma técnica tipográfica
que produz linhas de chumbo que servem de matriz para a impressão; e papel
utilizado na capa feito artesanalmente com resíduos vegetais e aparas
industriais de papel; costurado à mão com tiragem limitada a 400 exemplares
numerados.
Uma barra
de goma de mascar
A definição
apresentada acima é de um leitor que comentou a postagem de divulgação sobre a
publicação dessa obra em nossa página no Facebook. Segundo ele, o projeto era de
mau-gosto e se parecia mais um chiclete e não um livro. Não sabemos como seria
mascar um chiclete de 10,5 x 30 cm. Mas, substituindo o tom reprovador
pelo incômodo trazido pela imagem para o leitor, logo compreendemos que o
trabalho de Pedro Monfort atingiu o objetivo proposto para um livro ousado e
situado numa zona fronteiriça como é recorrente a obra de Gertrude Stein –
aquando da publicação, o New York Times chegou a classificar como
“romance curto, poema longo ou conto de fadas modernos; ou, ainda, uma pintura
com palavras que lembra mais Dalí do que Picasso”. Ida um romance narra
a história de uma personalidade pública que se tornou tão pública que perdeu a
personalidade. Foi publicada pela primeira vez em 1941 e trazida ao Brasil
agora pela nova casa editorial Ponto Edita através da tradução de Luís
Protásio. O livro, além do formato original, traz textos de apresentação da
cantora Badi Assad, do ator e dramaturgo Luiz Päetow, uma reunião inédita de
nove composições de Stein, um texto de Sherwood Anderson apresentando a
escritora, além de um posfácio do tradutor. Os textos de abertura (Assad e Päetow)
são impressos em uma lâmina que só os revela à medida que é desdobrada,
oferecendo uma experiência concreta que prepara o leitor para a aventura no
labirinto poético do texto de Stein. O formato, estreito e alto, remete a
uma coluna de jornal por onde os acontecimentos da vida de Ida desfilam como um
cortejo de notícias, fofocas e lembranças. O alinhamento à esquerda remete à
sinuosidade do texto poético e traduz de forma gráfica o fraseio de Stein. A
edição inclui também fotografias de Carl Van Vechten e desenhos de Pedro
Monfort, que assina a capa do volume: uma versão totêmica de Basket, o icônico
poodle de Stein e Alice B. Toklas.
Duas
décadas de poesia de Maria Teresa Horta
Apesar da
estreita relação da poeta portuguesa com o Brasil, faltava ainda um
trabalho de fôlego capaz de oferecer uma visão integral do universo poético de
Maria Teresa Horta; ao menos já não podemos continuar a repetir sobre o
ineditismo de sua poesia no Brasil. A Editora LiberArs publicou em dois volumes
duas décadas de criação da poeta portuguesa. No primeiro se contempla os livros
da década de 1960: Espelho inicial (1960), Tatuagem (In Poesia
de 61, 1961), Cidadelas submersas (1961), Verão coincidente
(1962), Amor habitado (1963), Candelabro (1964), Jardim de inverno
(1966) e Cronista não é recado (1967); no segundo, a poesia da década seguinte:
Minha senhora de mim (1971), Educação sentimental (1975) e Mulheres
de abril (1977). O primeiro reúne os estudos de Ana Maria Domingues de
Oliveira e de Luis Maffei; o segundo, textos de Tatiana Pequeno e Michelle
Vasconcelos, quem organiza esse trabalho com Marlise Vaz Bridi.
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