Por Saramago, Anabela Mota Ribeiro
Por Pedro
Fernandes
A obra de
José Saramago, como toda grande literatura, não se enquadra confortavelmente
nos conceitos estabelecidos pelas teorias a justificarem o fenômeno da criação.
Assim é que, a literatura saramaguiana se constitui paradigma1. Os
indícios disso não estão demonstrados apenas pelas inovações com a forma
romanesca situada nas linhas limites com a variedade de expressões da prosa de
intelecção – o ensaio de reflexão filosófica, a crônica histórica, o relato de
viagem etc. – e na reaproximação com o modelo original do romance pelos
estreitamentos entre o erudito e o popular. Esses indícios estão em algumas
provocações oferecidas por um escritor que ensaiou algumas proposições
teóricas, como a leitura acerca das implicações entre autor e o narrador;
enquanto a Teoria da Literatura designa-os enquanto instâncias de enunciação
distintas, uma da obra e a outra da narrativa, para o escritor português essas
distinções são, em alguns casos, no seu especificamente, improcedentes. Isto é,
existe tão somente o autor e o narrador seria desdobramento daquele.
Tomemos
essa problemática porque ela se mostra numa das entrevistas realizadas por Anabela
Mota Ribeiro e reunidas em Por Saramago, um título que cabe e se
desdobra em pelo menos dois sentidos finalísticos: trata-se de um livro
marcado por um reencontro do leitor com o escritor, quer dizer, dito por Saramago,
ao mesmo tempo que uma forma muito particular da autora, leitora apaixonada da
literatura do homenageado, agradecer o criador pela inventividade criativa do
seu universo de tinta e papel; ou seja, ser este um livro que existe por
Saramago. Bom, voltemos ao imbróglio autor-narrador. Na entrevista por
ocasião da apresentação de A viagem do elefante, romance publicado em
2008, o escritor volta à questão e é um dos últimos momentos que reflete publicamente
sobre: “O livro d’As Pequenas Memórias [motivo da primeira entrevista de
Anabela Mota Ribeiro recolhida no livro da jornalista] é escrito com linguagem
que uso hoje. No caso d’A Viagem do Elefante é como se houvesse outra
mão que me guiasse. Para que eu aceitasse, recebesse e utilizasse palavras e
expressões. O que caracteriza este livro é o tom narrativo, o modo de narrar. O
narrador é um personagem numa história que não é sua. Sempre defendi a ideia de
que o narrador não existe. Neste livro resolvo a questão – pelo menos resolvo-a
para mim, que é a única coisa que importa. Passando a considerar-me autor sim,
mas autor-narrador, não dissociado.”
A
afirmativa de José Saramago, cuja base se constitui num claro desejo de
ressurreição da figura do autor num momento para ele contemporâneo (Roland
Barthes havia instalado o celeuma com o radical ensaio La Mort de l’Auteur,
em 1968)2, assume uma variedade de compreensões: é a reaproximação
do escritor de uma seara que, embora nela trabalhasse para garantir seu
sustento mais preferia se manter à distância, querendo com e pelo literário
estabelecer um diálogo mais profuso com o entorno social e político; uma vez
retornado ao debate exclusivamente sobre a criação literária é a resposta de um
dilema que nasceu do contato com a teoria e depois foi instaurado pela própria
obra que o conduziu por via de estreitamentos do conteúdo literário e do
conteúdo intelectual; é ainda, se quisermos polemizar com o escritor, uma
alternativa encontrada por um homem profundamente atarraxado às suas convicções
que, impossível de negar um dos pilares fundamentais da literatura, talvez o
mais seguro deles, preferiu estabelecer uma síntese cujo respaldo vigora apenas
no seu universo criativo, ao menos assim o deseja. Nesse debate, estou
inclinado a pensar que um escritor já nos faz muito ao escrever seus livros e
que esse debate, embora possa contribuir como faz, deve se restringir aos que
se deslocam entre a teoria e a crítica visando problematizar e dilucidar as
questões suscitadas pela criação.
Mas, ao
entrar no debate sobre os conceitos entre autor e narrador nessa ocasião não
foi para tratar sobre isso3 e sim ressaltar o lugar onde suas duas
dimensões se confundem. É este o ponto de sustentação do livro de Anabela Mota
Ribeiro. Isto é, sua partida se oferece como aquele gesto inaugural da relação
entre José a Pilar del Río, a jornalista espanhola que quis apenas agradecer o
escritor por O ano da morte de Ricardo Reis e da ida à Lisboa em junho
de 1986 nunca mais se separaram, tal como relata numa entrevista acrescentada
em Por Saramago. E para cumprir esse agradecimento, a jornalista portuguesa
com um pé no Brasil depois de estudar Machado de Assis num Mestrado, elege uma
intersecção indispensável aos domínios ficcionais do escritor.
É o
jornalismo que prevalece na realização da obra, mas a maneira como a conduz vem
de uma sensibilidade raramente permitida aos que lidam com a reflexão crítica
sobre o literário. Isso não justifica apenas o livro de Anabela Mota Ribeiro,
explica também a maneira peculiar como se aproxima do entrevistado. Ela se
apropria do impasse autor-narrador e o transforma num método de trabalho
evidenciado nas entrevistas a José Saramago e a Pilar del Río – uma a ela e duas
a ele que perfazem o fim da carreira literária que se confunde com o fim da
vida do escritor: cada uma das conversas envereda pelos assuntos do pensamento,
mas partem do mesmo ponto que se constitui em tessitura dos diálogos, o
conteúdo literário – As pequenas memórias, A viagem do elefante e
Caim. O método de trabalho conduz, por sua vez, os dois relato jornalísticos
que formam o livro – um sobre a casa de
Lanzarote, onde José e Pilar viveram entre 1993 e 2010 e outro sobre a presença
do escritor português entre os mexicanos medida aquando da visita de Anabela
Mota Ribeiro à Cidade do México para acompanhamento da criação da Carta dos Deveres
aí apresentada à Organização das Nações Unidas a partir da consolidação de um
conjunto de esforços em dar pulso uma reivindicação saramaguiana assumida nos
discursos de Estocolmo.
O olhar
atento da jornalista se mostra sobretudo em “A Casa de Lanzarote”. As
descrições oferecidas são um deleite para leitores que visitaram a ilha e a
casa de Saramago pelo diálogo estreito que estabelecem com a nossa memória; em
2019 passou-se um ano de quando fui a Lanzarote e uma vez em contato com a
crônica de Anabela Mota Ribeiro revivia os mesmos passos da viagem – como a
excursão ao Parque Nacional de Timanfaya, aos lugares de predileção de Saramago
quando ele próprio acompanhava as visitas às excursões, o roteiro do artista
plástico e amigo César Manrique, a casa-museu, os Jameos del Agua, o miradouro
do rio, as esculturas movidas a vento que estão dispersas pela ilha – a mesma
alegria dos encontros, a audição das ricas e longas conversas com Juanjo, as
intimidades de A Casa e o contato com a rotina de trabalho escritor, as
múltiplas sensações que me fizeram não segurar a mesma lágrima que correu tantas
vezes nesse itinerário derradeiro e principal.
Mas a leveza
do texto e a beleza das descrições podem aproximar pela imaginação o leitor
não-visitante. Recuperando uma passagem da conversa com Pilar del Río, para
quem a literatura tem o papel de experienciarmos pelo imaginário lugares e
situações não vividos, o itinerário proposto por Anabela Mota Ribeiro propicia
isso. Quer dizer, ainda que não seja literatura; e bem podemos ampliar a
leitura de Pilar, atribuindo essa dimensão da experiência que nos é alheia aos
desígnios da escrita no geral. Além disso, os textos de Por Saramago
guardam estreito diálogo com as fotografias, as delicadas e ampliadas visões de
Estelle Valente, dialogam muito proximamente e formam uma dimensão sensorial do
escrito.
Alguns
livros existem para isso: reavivar memórias e afetos. É um feito tão valioso
como de experimentar os prazeres só propiciados pela obra literária. Livre de
pretensões que não as de organizar um itinerário que escapou do distanciamento
e sisudez do trabalho para ganhar os braços da amizade, o livro de Anabela Mota
Ribeiro reanima algumas imagens fundamentais, sem as quais resulta impossível
ou incompleto uma compreensão do topos saramaguiano: a literatura, o civismo e
a intervenção. Como um livro-legado, Por Saramago acrescenta uma peça na
eternidade do escritor, essa dimensão que ele mesmo numa das entrevistas reunidas
aqui prefere compreender como uma passagem, “triunfo e olvido”, como bem situa
a jornalista a partir de A viagem do elefante: “Ninguém escreve para o
futuro, ao contrário do que se julga. Somos pessoas do presente que escrevemos
para o presente.” A essa afirmativa acrescenta: “Acabamos por converter-nos em
conceitos. Já não temos existência, mas continuamos a existir – naquilo que
deixamos, nas ideias que as pessoas desse tempo, do futuro, têm sobre aquilo
que deixamos, e podem não coincidir com as nossas.”
Não deixa
de ser eficaz o que alguns podem ler como fatalismo da existência; mas, no
final, o esquecimento não é, para Saramago, o apagamento total tudo, como
quando deixamos de acessar nossos arquivos num desses colapsos que vez por
outra nos assalta sobretudo quando estamos displicentes sem acreditar na
existência deles. O esquecimento é produto de um trabalho de transformação da
memória. Participam nesse trabalho, contínuo, irrepetível, porque nunca uma
situação é revivida com as mesas cores e possibilidades originais, a extensa
rede vozes que envolvem o vivido e quando bem damos conta, este é já outra coisa.
Também o nó dos pontos costurados por Anabela Mota Ribeiro não se
faz sozinho. Fernando Gómez Aguilera escreve um robusto posfácio que estabelece
os nexos entre os materiais reunidos pela jornalista e compõe uma leitura sobre
o escritor e sua obra. Para o curador do arquivo José Saramago, a entrevista,
dos vários resultados possíveis, materializa uma história. E a que é contada
neste livro é a de como o escritor se fez núcleo agregador para o qual foram atraídas
pessoas dos mais diferentes destinos e com maneiras tantas vezes próximas de agir
e pensar. Todos os caminhos levam a Saramago e é por Saramago que todos se
encontram – essa parece ser uma boa síntese sobre Por Saramago e uma variante
do contínuo milagre da literatura, repetido continuamente com leitores e obras diversas.
Notas:
1 A
afirmação está em “Ler para mover-se”, um roteiro que preparei para o projeto
“Encontro com Autores”, realizado no dia 25 de outubro de 2019.
2 Não
esqueçamos que José Saramago se situa numa constelação onde o brilho sozinho de
Fernando Pessoa ainda é um motivo de lusco fusco entre o restante do sistema
literário português.
3
Desenvolvo essa questão num ensaio a ser publicado em 2020.
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