Orides Fontela, revisitações
Por Pedro Fernandes
Duas décadas
depois de sua morte, Orides Fontela parece que saiu do esquecimento que dava
sinais de tragá-la. Vivia no limbo. Apesar de muito aceita entre os leitores especializados
como foi desde sua estreia, era pouco vista fora da redoma acadêmica. Pareceu que
mesmo figuras como Hilda Hilst, para citar outro nome de repercussão nas
últimas décadas e poeta acusada de hermetismo, teve maior penetração entre as camadas mais populares de leitores. Essa ressurreição, se pouco serve ao escritor, oferece alguma
reparação à obra pela injustiça do silenciamento.
Se o hermetismo
constitui uma espécie de doença que carcome reconhecimento de obra, num país
como o Brasil, de índices de leitura penosos, a simples caracterização do escritor
por esse epíteto é um tanto paradoxal: primeiro denuncia nossa crise para o imaginativo
e o simbólico, depois, curiosamente, é um elogio de estorvador benéfico com
exclusivismos aos do poder. Sim, nossa intelectualidade sempre girou em falso em
duas direções: subtrair dos que estão fora do meio acadêmico a experiência com
o estético e valer-se disso como alternativa de perpetuação da mesma casta de
pensadores constituída pelo clã sudestino de um país de diversas e amplas
fronteiras. Quando não se empoleiram, preferem o discurso regurgitado para os da
margem – esta última tem sido a moda da vez, contribuição cujas marcas estão
muito visíveis num cenário tomado de idiotas com muitas certezas.
Parece que
Orides, muito embora tenha sido bem-recebida seja pela amizade seja pela curiosidade
em torno de sua figura guache, muito embora tenha convivido com o olho do clã, sabia
bem disso e mesmo assim aí se aventurou e foi vítima dessa violência praticada de maneira aberta por muitos
senhores que fazem do conhecimento instrumento de sustentação do establishment
academicus. Confirmam as
suspeitas duas coisas: a necessidade da poeta de Transposição de se
mudar para a capital paulista, constituir algum terreno na Universidade de São
Paulo, e padecer à míngua na selva de pedra. Sabe-se que, se não fossem os acasos,
um deles favorecido pela obra desconhecida, estaríamos diante da consolidação do
ponto-limite desse crime do esquecimento, a morte indigente. Gustavo
de Castro, um desses da nova geração de pesquisadores meio alheio ao modus academicus,
reconta no que é a primeira biografia de Orides Fontela, O enigma Orides
(Editora Hedra), que a poeta, morta no feriado de Dia de Finados na Fundação
Sanatório São Paulo, teria sido uma indigente não fosse um livro entre
os objetos pessoais dela. E isso não foi
num tempo distante. Foi em 1998.
Os que
conviveram com Orides Fontela (e podemos citar o documentário Orides. A um
passo do pássaro dirigido por Ivan Marques para TV Cultura) reafirmam
sobre o seu comportamento variável e tempestuoso, expressão que pareceu se distanciar
da mera característica do gênio para uma patologia psicossomática. Mas, os
sintomas são, em parte, desencadeados pela condição social imposta, como
demonstra nas várias entrevistas que chegou a conceder. A poeta nasceu no país
cuja realidade para com o intelectual e o criador teve breves estações de
alguma bonança, que ela não viveu, e faz o tempo perene de que os trabalhadores do pensamento são tolos
que se contentam com salões e aplausos.
Orides tinha
um sentido muito racional sobre ser poeta. Se não tinha pela atividade um valor de
profissão, não alimentava um pensamento do ser-poeta como um status. Entende-se
por esse ponto o espírito rebelde e cético – patente na atividade criativa e na
maneira de conceber sua posição no mundo. Não é o caso de que se sentisse,
dentre as criaturas, uma privilegiada que merecesse mais afetos e afagos que as
demais criaturas; todo artista tem uma dose a mais de ego, o que lhe dá um estatuto
quase natural da sua condição, é verdade. Mas, o que a poeta carregava, e é esta uma
leitura possível do seu ceticismo e da sua rebeldia, é uma seriedade para com o
seu exercício com a palavra seguida na mesma proporção do silêncio fora do seu
próprio mundo. Bom, a questão envereda-se por detalhes um tanto delicados: fiquemos
com a imagem de figura pouco à vontade num papel que lhe exigia demais.
Anos depois,
Orides Fontela alcançou o posto entre os mais importantes criadores da cena literária
brasileira posterior ao terremoto de 1922. Ninguém duvidará que ela contribuiu
de forma significativa para o progressivo afastamento da nossa poesia do sopro
das vanguardas e do frenesi instaurado pelo modernismo, ao mesmo tempo que amplia
as fronteiras do espírito revolucionário que se inaugurou com tais movimentos.
Isso não é pouco. Sua geração representou, sobretudo, o fortalecimento de nossas
criações enquanto força autêntica na imensa correnteza constituída das
literaturas mais consolidadas, a subversão radical da poesia enquanto
desbragamento sentimental herdada desde o Romantismo.
Luis Dolhinkoff,
no prefácio à Poesia completa, antologia que reuniu além dos livros
conhecidos da poeta, uma variedade de poemas inéditos, diz que a poesia de
Orides não era “abstratizante”. “A poesia ‘abstratizante’ é aquela que busca,
conscientemente ou inconscientemente, restringir a condição referente da palavra”
– esclarece. “Há vários mecanismos para isso, como o uso cifrado, idiossincrático,
para ‘iniciados’, o vocabulário esdrúxulo, os neologismos injustificados, as apropriações
extraculturais, os estrangeirismos ‘de butique’ (ou da moda) etc. Orides
Fontela chama esse tipo de linguagem poética, já muito difundida em sua época (e
hoje dominante na poesia brasileira) de ‘barroquista’.” Isso leva o crítico a
compreender que, se a poesia oridiana não é abstratizante e nem visualista, “reforça-se
a percepção de ter sido uma renovadora do modernismo.”
A poética de
Orides constitui sua autonomia do mundo enquanto símbolo. Sua inclinação
reflexiva, produto de uma intelecção original dada à poesia, não a leva ao
poema longo. É sempre a tentativa de contenção, como se quisesse chegar ao ponto-limite,
uma síntese, que ora se confunde como princípio e fim do pensamento. Por isso,
estamos diante de uma poeta filiada a uma tradição que compreende a poesia como
instante entre o ser e o mundo. E o poema, objeto autônomo, é, na sua poética,
um enigma. Talvez justifique isso a predileção da poeta para o espontâneo, o
que a aproxima, contraditoriamente, de um modo de criação cujas diretrizes se
mostram pelos estatutos da inspiração, um comportamento de inegáveis
raízes românticas.
Entramos
numa seara mantida pelo dilema entre uma concepção artesanal e uma concepção
expressiva da poesia. Assim, ao tratar o poema enquanto produto de um acurado
trabalho de lapidação pensamos no poeta como um manufatureiro da linguagem, o
que, à primeira vista se opõe à feitura literária de Orides Fontela, uma vez
que, a inspiração a aproxima de um ideal místico em que o poema é manifestação
ou revelação. Sabe-se, entretanto, que essa espontaneidade é puramente recurso
expressivo da persona do poeta; as escolhas que determinam uma unidade
de sentido da obra, notadamente nos contidos universos forjados na obra que
escreveu, ou quaisquer outras intervenções introduzidas no objeto em
constituição é, sim, produto que atesta para uma negação do dom mediúnico ou divinatório
do fazer poético. Quer dizer, é possível compreender que sua espontaneidade
reside não no feitio do poema, mas na vivência com o mundo e as coisas, na
maneira como se mostram no poema, sem intervenções por sobreposição.
Esse universo
poético foi construído pela poeta em cinco livros. O primeiro deles, citado
acima, foi Transposição. Saiu dois anos depois de se mudar de São João
da Boa Vista, sua terra natal, para São Paulo. Orides nasceu a 24 de abril de 1940. Na época da antologia de 1969 era aluna do curso
de Filosofia da USP. Constituído de uma dorsal bem definida, este livro que foi
editado pelo Instituto de Espanhol da universidade onde estudava e coorganizado pelo amigo Davi
Arrigucci Jr. é uma excelente porta de acesso à literatura da poeta, uma vez
que, nele se contém os elementos fundamentais da sua poesia – estes que são
revelados pelo próprio Arrigucci Jr. numa entrevista como as “características mais
poderosas da poesia”; são eles: “a penetração, a lucidez cortante, a capacidade
de alta condensação, o caráter destrutivo estão representados de forma contundente,
limpa, seca”.
Na leitura
que faz do poema “Ludismo”, de Transposição, Alexandre de Melo Andrade,
em texto publicado na revista eletrônica Darandina, sublinha que: “A
possibilidade de recriação das coisas, para Orides, ganha a dimensão da própria
reinvenção do ser; o exercício do jogo propicia a multiplicação da consciência,
pois buscam-se infinitamente o esgotamento e a totalidade do ser. Esse livre
jogo é, assim, contra a limitação das coisas, e a poesia que daí deriva é a da
constante ruptura com a teoria e com o saber absoluto.”
Esse gesto
poético se reafirma no livro seguinte, Helianto, de 1973, mas agora, com
uma variável que se tornará uma obsessão de sua criação poética: o verso curto,
bruscamente cortado. A poeta passa a explorar outras dimensões do poema, como a
relação da palavra com a forma e o espaço em branco do papel; a dispersão, o
fragmento, a ordem desfeita, cobra do leitor novas habilidades para com o conteúdo
textual, tal como destaca Antonio Candido no texto publicado na orelha de Trevo,
a primeira vez que seu reuniu sua obra completa, sem o último livro – Teia só
saiu em 1996 e antologia é de 1988: “Orides Fontela tem um dos dons essenciais
da modernidade: dizer densamente muita coisa por meio de poucas, quase nenhumas
palavras, organizadas numa sintaxe que parece fechar a comunicação, mas na
verdade multiplica as suas possibilidades. Denso, breve, fulgurante, o seu
verso é rico e quase inesgotável, convidando o leitor a voltar diversas vezes,
a procurar novas dimensões e várias possibilidades de sentido. Estes poemas
podem parecer às vezes malabarismo, mas é fácil ver que o jogo das palavras ou
o aparente truque sintático correspondem, pelo contrário, a uma mensagem
atuante. O que pode parecer acessório é de fato essencial. O leitor tem várias
entradas possíveis para este fascinante universo.”
Márcio de Lima
Dantas, autor de Imaginário em Orides Fontela (EdUFRN) e tradutor da
obra da poeta para o francês, observa em “Ritmo visual e sentido na poesia de
Orides Fontela”, publicado na revista 7faces, acrescenta que a poesia da
poeta “demanda um leitor com uma redobrada atenção no ato de leitura, pois a
semiose poética só ocorrerá a partir do uso de vários códigos simultaneamente,
estendendo-se através de um vergado arco contemplador de um repertório que
inclua o conhecimento dos diversos níveis da língua, passando pelo desenho e
pela pintura, incluindo a religião budista e chegando ao continente da Filosofia
e da sua história.”
Bom, depois de
Helianto, cada vez mais sua poesia ganhou os contornos do im-preciso.
Notava-se aqui claramente uma poética perfeitamente marcada pelos ventos do
modernismo a Ferreira Gullar, embora ela sempre tenha se assumido “drummondiana”.
O poeta mineiro é mesmo o que mais aparece nas dedicatórias: Ivan Francisco
Marques no texto “A um passo do anti-pássaro. A poesia de Orides Fontela” publicado
na revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, conta sete homenagens:
“três poemas curtos, sempre com uma única estrofe, e um composto por quatro
partes numeradas”. Para ele, o excesso de citações aponta uma “gênese ou
filiação da autora num dos temas que compõem sua teia de recorrências”. E destaca
que, do poeta mineiro, ela terá herdado a ironia; afirmativa que se confirma de
uma entrevista de Orides a Augusto Massi na Folha de São Paulo, de 9 de
agosto de 1986: “Gosto do Drummond tiro e queda, aquele dos pequenos poemas que
não sobra nada: destrutivos e impressionantes”.
Depois de Helianto,
veio Alba, livro com o qual recebeu o prêmio Jabuti em 1983. O livro
reafirma certa guinada para o hermético, o que leva Antonio Candido, no
prefácio que aí se publicou a dizer que: “Um poema de Orides tem o apelo das
palavras mágicas que o pós-simbolismo destacou, tem o rigor construtivo dos poetas
engenheiros e tem um impacto por assim dizer material da vanguarda recente. Mas
não é nenhuma dessas coisas na sua integridade requintada e sobranceira; e sim
a solução pessoal que ela encontrou.” Ainda na linha da incógnita, o crítico
Acildes Villaça em “Símbolo e acontecimento na poesia de Orides”, editado pela Novos
Estudos Cebrap, prefere se perguntar: “Sem bairrismo, sem regionalismo, sem
nacionalismo; à margem de ‘vanguardas’; imune à parodização como sistema, sem
biografismo, sem confessionalismo, sem psicologismo; sem expansão retórica, mas
sem obsessão minimalista; fora do anedótico, do panfleto, da provocação, sem
bandeira política, estética ou ecológica, sem escatologia agressiva, dramatismo
ou ressentimento — em que águas, afinal, lança âncora a poesia sem rótulos de
Orides?”
As leituras
da crítica e o acompanhamento da obra de Orides demonstram que ela era uma
aluna disciplinada; educou seu trabalho ao ritmo das observações tecidas pelos
leitores. O texto de Villaça data de 1992, logo não terá influência nesse trabalho
de variação, mas o de Antonio Candido certamente. Depois de publicar Rosácea,
publicado em 1986, disse em entrevista a Leia Livros que: “Até Alba meus
versos viviam pairando lá em cima, sublimes demais”; e acrescenta: “Agora faço
uma poesia mais vivida, mais encarnada”, o que, para ela foi uma contrariedade:
“comecei no abstrato e terminei no concreto”.
O último
livro publicado foi Teia, prefaciado por Marilena Chauí. O livro recebeu
críticas muito frias; o amigo Davi Arrigucci Jr. aponta uma falta de novidade.
O livro, como repara Roberta Andressa Villa Gonçalves na tese Entre a potência
e impossibilidade, destaca que, embora o trabalho poético de Orides
esteja mais firme, “o livro circunda os mesmos símbolos e mantém procedimentos
próprios da autora”: irrompe uma poética do microcosmo e certo abandono de uma
totalidade etérea.
A publicação
da antologia Poesia reunida (1969-1996) numa obra refinada da coleção “Ás
de colete” pela 7Letras e a Cosac Naify em 2006 já apontava uma revisita à
poesia de Orides Fontela. Desde então, os estudos acadêmicos se multiplicaram e
as edições de livros realimentando o papel de sua presença na cena da poesia
brasileira ou nos seus arredores acompanham o mesmo ritmo. Só para sublinhar essa observação vale citar
alguns livros circunscritos entre 2018 e 2019, quando se cumpriram vinte anos da
morte da poeta e cinquenta anos da publicação de Transposição, respectivamente: sua
poesia completa foi traduzida para o espanhol; publicou-se O nervo do poema
(Relicário Edições), uma antologia que reúne vários nomes da novíssima geração
de poetas em homenagem a Orides; Orides Fontela. Toda palavra é crueldade
(Editora Moinhos), ensaios organizados por Nathan Matos, especialista na obra da
poeta; Poesia e Filosofia. Homenagem a Orides Fontela (Relicário Edições),
obra que compila um conjunto de textos oriundos de um simpósio acerca da obra de
Orides realizado na USP de nomes como Paulo Henriques Britto, Ivan Marques e Alberto
Pucheu. Nesse mesmo tempo, sua poesia começa a se distanciar do famigerado epíteto
de hermética e ganha popularidade tal como foram conseguindo outras escritoras
da nossa literatura. E ainda estamos no começo de tudo.
* Parte das informações neste texto são do editorial para a edição 18 da revista 7faces em homenagem a Orides Fontela.
Comentários