O sujeito preso no absurdo do cotidiano: “A velha” e uma tradução do conto “Sonho”, de Daniil Kharms
Por Joaquim Serra
Daniil
Kharms (1905 – 1942) foi um escritor soviético da primeira metade do século XX,
sendo o responsável por introduzir novas facetas do absurdo na literatura russa.
Fez parte do grupo de poetas que se autodenominavam Oberiúty (de OBERIUT: Obediniénie
Reálnovo Iskústva — Sociedade da Arte Real). Mais tarde a crítica o compararia
com Franz Kafka e Eugène Ionesco. Poucos anos depois de escrever A velha, de
1939, foi preso e acabou morrendo de fome na prisão em 1942.
A epígrafe
da novela A velha traz uma lacuna que acompanhará o texto todo. As palavras
retirada do romance Mistérios, de 1892, escrito por Knut Hamsun – norueguês conhecido
por seu Fome (1890) –, dizem: “... e entre eles trava-se o seguinte diálogo”
(p. 19). A citação é o chamariz para a primeira cena de A velha e a entrada
também do primeiro elemento que servirá de base para toda a narrativa. Ao pedir
informação sobre as horas para uma velha, o narrador percebe que seu relógio
não tem ponteiros, mas, ao contrário dele, a velha sabe como ler o tempo no
objeto codificado. Isso irá impor uma característica ao cotidiano do narrador,
tornando-o repetitivo durante a narrativa, o que o faz não seguir uma ordem
cronológica convencional. O narrador desautomatiza a forma comum do tempo e
reordena a fábula conforme seu desejo enquanto narra os acontecimentos
supostamente reais. Por isso, os eventos não só são repetitivos, como
desordenados a depender da ordem que o narrador lhes impõe.
O narrador é
um escritor que vive de maneira humilde em um quarto à la Raskólnikov. Por
vezes enfezado, tem como amigo o também escritor Sakerdon Mikháilovitch com
quem se encontra regularmente. Quando volta de um encontro com o escritor,
incomoda-se com o barulho alto das crianças, e o qualifica como uma “gritaria
insuportável”, com isso, já se tem o perfil psicológico do narrador. O narrador
é um rapaz solitário, metido a escritor, pobre, e com poucos amigos. É fácil
para ele ficcionalizar a morte cruel das crianças barulhentas por tétano,
criando assim, a primeira abertura inventiva de um narrador que mistura fatos
do cotidiano com sua ficção.
Depois da
primeira abertura literária em que o narrador imaginou a morte para as
crianças, ele começa a imaginar a história de um milagreiro para aqueles tempos
que, mesmo diante do despejo, da miséria, “e que pode fazer qualquer milagre,
mas não o faz” (p. 21). Mas a história inventada pelo narrador ganha dimensão
de realidade; o simples ato de escrever parece refletir a impossibilidade do
milagreiro diante da tragédia de sua vida. O escritor, assim como o milagreiro,
nada faz, “devia pegar pena e papel, mas pegava todos os objetos, menos aqueles
que devia” (p. 21), e, com isso, recua diante da ação imaginativa da escrita.
É então que
a tal velha aparece e entra no quarto do narrador e, assim como na história do
milagreiro que é dominado pelas forças externas, a velha o domina. O narrador
que não quer “ficar de joelhos de jeito nenhum”, acaba por obedecer e depois se
deitar de bruços para completar a dominação. Assim como entrou, a velha morre
ali mesmo, incógnita e para a perturbação do narrador. E, como tudo em A velha parece
sugerir mais um plano interpretativo, o da realidade e o do fantástico, o
comentário do narrador não deve ser lido ipsis litteris: “eu não me arrisco a
cobrir a velha com um jornal, pois sabe-se lá o que pode acontecer por baixo do
jornal”.
Ao se
deparar com a velha, instaura-se também um motivo psicológico da perseguição.
Os verbos, que continuam no presente, agora criam uma atmosfera da narrativa
policial já que, se fosse pego com a velha morta dentro de casa, o narrador
teria sérios problemas. Mas o gênero policial está diluído pela própria
proposta da narrativa: nada é estável, tanto a velha como a moça que o narrador
encontra na fila de uma padaria, quanto os gêneros narrativos e os personagens
sem nome mostram a instabilidade – e a falta de unidade – daquele período
expressos na forma artística. Dessa forma, sua prosa não está presa apenas nos
métodos comuns de representação, mas numa miscelânea de formas que levam a
realidade e o absurdo para o sujeito que sofre essas tensões.
A velha
ainda é um incômodo que poderia trazer problemas para o narrador. Mas isso não
o impede de dormir e sonhar que tem nas mãos os ponteiros – um garfo e uma faca
– de um relógio que vira no brechó. No sonho seria fácil livrar-se da velha,
mas ele abdicaria da escrita para isso, já que não teria mais mãos para
escrever. Seu amigo escritor, Sakerdor Mikháilovitch, no sonho, fora
substituído por um de barro, também, desse modo, incapaz de escrever.
Da mesma
forma que aparece, a história da velha então fica em suspenso. A materialidade
da vida cotidiana parece se impor à narrativa: a falta de dinheiro, a
necessidade, a fome. O narrador tem problemas financeiros, diz ele: “retiro a
carteira e conto o dinheiro. Onze rublos. Portanto, posso comprar apresuntado e
pão, e ainda sobra para o tabaco” (p. 27).
A velha
acaba por atrapalhar o cotidiano dos personagens. Invade sem permissão a vida
doméstica, os afazeres do cidadão que, submisso a ela, segue suas ordens diante
da impossibilidade de reação. Assim como: tão rápido ele conhece a moça, tão
rápido a deixa porque se lembra da velha. Pega o bonde ao acaso, sem saber o
destino, e vai parar na rua de seu amigo escritor. “Assim, a velha morre e
ressuscita, aparece e desaparece; a adorável mocinha ressurge; o inválido e as
crianças intoleráveis reaparecem, aparentemente ao acaso, em meio a um caos
temporal, o que reflete a situação vivida em São Petersburgo naquela época.”
(p. 77)
Kharms rompe
as fronteiras do gênero e cria um mosaico de formas e estilos em A velha, texto
que pode facilmente ser lido no século XXI – que tem suas preocupações nos
limites dos gêneros narrativos – sem sentir a passagem do tempo. Seus
personagens estão submetidos à força do tempo, do espaço exíguo e da condição de
miséria que perseguiria o escritor até sua morte.
O tema do
sonho, da escassez de comida e do absurdo, que fazem parte da poética de
Kharms, também aparecem no conto “Sonho” (“Сон”) em que, Kalugin dorme por dias
e tem um destino um tanto diferente. Segue aqui a tradução do conto.
Sonho
Kaluguin
adormeceu e sonhou, como se estivesse sentado em arbustos e, na frente deles,
passasse um policial.
Kaluguin
acordou, esfregou a boca e novamente adormeceu, e de novo sonhou, como se
estivesse passando em frente aos arbustos, e nos arbustos estivesse sentado um
sorrateiro policial.
Kaluguin
acordou, colocou um jornal sob a cabeça para que não molhasse com saliva o
travesseiro, e adormeceu novamente, e de novo teve um sonho, como se estivesse
sentado nos arbustos e, na frente deles, passasse um policial.
Kaluguin
acordou, trocou o jornal, e adormeceu novamente. Adormeceu e teve de novo um
sonho, como se ele andasse em frente aos arbustos, e neles estivesse sentado um
policial.
Então
Kaluguin acordou e decidiu que não ia mais dormir, mas imediatamente caiu no
sono e teve um sonho, como se estivesse sentado em um policial e, em frente,
passassem arbustos.
Kaluguin
começou a gritar e agitar-se na cama, mas já não podia acordar.
Kaluguin
dormiu por quatro dias e quatro noites e, no quinto dia, acordou tão magro que
suas botas tiveram que ser amarradas aos pés com uma corda para que não
saíssem. Na padaria, onde Kaluguin sempre comprava pão branco, ninguém o
reconheceu, por isso lhe deram pão de centeio. A comissão sanitária, andando
pelos apartamentos e vendo Kaluguin, achou-o inadequado e inútil para qualquer
coisa, e ordenou que o jogassem fora junto com o lixo.
Kaluguin foi
dobrado ao meio e jogado fora como lixo.
22 de agosto
de 1936
Notas:
Para este
texto usamos a tradução de Sheila Oliveira Lima, presente na dissertação, A
velha: uma representação intertextual do absurdo, mas há também a tradução
(edição bilíngue) de Moissei Mountian e Daniela Mountian publicada pela Kalinka
em 2018.
A tradução
de “Sonho” partiu do original russo: Daniil Kharms, Vsestononnee issledovanie: sobranie
proizvedenii. Moskva, 2007.
Comentários