O caminho da cidade, de Natalia Ginzburg
Por Pedro
Fernandes
Este é o
primeiro romance de Natalia Ginzburg. La strada che va in città foi
publicado em 1942 e depois dele, a escritora italiana só apresentará outro
título cinco anos à frente. A distância entre este livro e o próximo não é de um
todo significativa, mas, além da informação a título de curiosidade, resulta ao
menos pensar em certo rigor da escrita, algo que se confirma com os intervalos
sempre maiores no correr da formação de sua bibliografia. Sua obra quando vista
do alto e em comparação com outros escritores é breve, embora não guarde uma coesão
formal e estrutural. Isso permite ao leitor, a cada novo título, redescobrir
uma senda desse universo literário que é, e aqui reside um dos poucos traços
que constitui uma unidade estrutural de seu projeto de escrita, fortemente marcado
pela cor local, pelas movências da história pessoal e social e italiana ou
ainda um interesse pela universalização dos dramas familiares com epicentro
muitas vezes em figuras femininas sufocadas em sua própria condição.
O romance aqui
apresentado, por exemplo dialoga muito de perto com a atmosfera da Turim de seu
tempo. Natalia Ginzburg veio de uma família grande, situada no que no então se
formara como centro industrial da Itália; é nessa cidade que está a sede da
indústria automobilística do país e das máquinas comerciais Olivetti. A escrita
forma-se ainda no ambiente de elevado valor intelectual e burguês: o pai era
professor na Universidade de Turim; a irmã mais velha casou-se com um jovem que
foi mais tarde presidente da Olivetti; e o restante dos irmãos constitui
carreira em meios diversos – jornalismo, administração, medicina. De todos
eles, ela foi a mais de formação mais tímida, o que viria atravessar momentos
ainda mais complexos dado o levante do fascismo a perseguição sofrida pela
família, de formação judaica. Para se ter uma ideia disso, basta dizer, sem
muito estender os pormenores biográficos, que o pai perdeu o emprego e preciso
se exilar na Bélgica, três dos irmãos foram presos pelo regime de Mussolini e O
caminho da cidade só pode ser publicado porque saiu com um pseudônimo; das
muitas imposições das leis raciais uma era que judeus não podiam publicar
livros.
Essas informações
são interessantes para que o leitor perceba a riqueza criativa de Natalia para
com a narrativa. A família que retrata aqui é também composta por cinco irmãos
e um agregado, mas não se confirma os ares de classe média da escritora, uma
vez que esse núcleo se situa entre as gentes simples de trabalhadores comuns de
duas aldeias onde se dividem as ações da narrativa. Não é o caso de se
verificar um total avesso entre a condição pessoal e ficcional, porque as gentes
desse núcleo dos simples está em contínua tentativa de ascensão social através
do imbróglio amoroso; não é que a escritora explore um mercado de interesses do
casamento, porque não prevalece em absoluto nada de um tratamento a Jane Austen.
O que
prevalece é uma revisitação do tema da usura patriarcal e machista, uma vez que
os dramas recorrentes na breve narrativa decorrem do poder que homem mantém sobre
a mulher. O caso principal é contado pela própria narradora, sobre seu envolvimento
sexual induzido com o filho do médico do vilarejo – situação que
previsivelmente resulta numa gravidez e
numa imposição do casamento em nome da honra e ordem entre as famílias.
Enquanto isso, a narradora não deixa de perscrutar a vida das mulheres com quem
convive, do seu círculo familiar e fora dele: é a irmã Azalea, a quem primeiro
nutre certa simpatia por ter saído dos mandos e feitios da mãe ainda aos
dezessete anos e leva uma vida de meia-rica na cidade, e depois percebe a
condição melancólica que leva, entre não fazer nada, nem mesmo cuidar do filho,
sempre sob responsabilidade de outra adolescente e alcoviteira, Dalia, de
catorze anos, a sofrer as violências e traições do marido e levar uma vida de
amantes, ora um militar que é substituído depois de grande drama por um espevitado
estudante. É por através de Azalea que Dália percebe melhor as complexidades do
seu próprio universo familiar, sobretudo do casamento, ao ponto de afirmar:
“Diz-se que uma casa com muitos filhos é alegre, mas eu não via nada de alegre
na nossa casa.”
O casamento
como pena imposta é um dos temas centrais do romance; não somente porque a situação
principal denota isso. Em vários momentos é esse um ponto de investigação das
personagens. Quando a relação entre Santa e Vicenzo é solapada porque os pais
deste esperam vê-lo casado com melhor partido, a mãe dela assim se refere:
“Quando uma mulher se casa começa os aborrecimentos. São os filhos a gritar, é
o marido que tem de ser servido, e os sogros que tornam a vida difícil.”
Grávida de
Giulio, Dália é levada pela mãe para a casa da cunhada a fim de esconder a
situação até ao nascimento da criança e a realização do casamento. Na nova casa,
convive com a tia e a prima, Santa, a única de família de nove irmãos, que
ainda espera casar-se com o filho de um senhor de terras de quem está noiva há
oito anos. A gravidez, o distanciamento da vida que levava antes, de liberdade
seja no convívio com a irmã casada e com o meio-irmão Nino se mostra marcada
por uma variedade de sentidos: a incerteza de que Giulio cumprirá com a palavra,
a descoberta do amor por Nino, os medos sobre o futuro e a maternidade como um
trauma capaz de modificar a vida da mulher para o pior são algumas das questões
investigadas por Natalia Ginzburg através dessa personagem.
Ora, por
tudo até agora apresentado, é possível compreender que, esses espaços de
interdição, mando e lei são reflexos não gratuitos do próprio contexto histórico
que sombreia e penetra os interiores da narração. O caso é que, qualquer leitor
se contentará por reconhecer o drama feminino ou mesmo a inadequação da mulher
quando tende a fugir das determinações a ela impostas. Mas, isso constitui uma
perspicácia da escritora: distrair com um drama enquanto sorrateiramente
denuncia não somente sua história como uma ordem primordialmente arcaica. E, se
isso ainda é pouco, oferece-nos uma ressonância sobre as primeiras tentativas
femininas de reivindicação de seus próprios lugares e suas liberdades. Assim, este
título com o qual nomeia o romance é singular: estamos a meio caminho entre uma
cultura arcaica, centrada no macho e circunscrita numa tradição, aqui representada
pelo espaço rural e outra, em nascimento, que questiona a primeira, desfaz laços
impostos para continuidade do tradicional e representada pela cidade. Isso se
confirma pela própria natureza dos habitantes dos três espaços em questão: os
do vilarejo de Dália mais afeitos à cidade, sobretudo os da sua geração, já que
sua mãe é mostrada como uma mulher que adotou os traços da mulher agarrada à
terra e ao lar; os da cidade, permissivos; e os do vilarejo que se se torna seu
refúgio imposto – a prima Santa não carrega esse nome por acaso, é a que está
subjugada aos mandos da mãe e impossibilitada de qualquer aventura das vividas
por Dália. Noutro momento, a variedade dos dois espaços é sublinhada pela
própria narrativa – é a prima de Dália quem diz ao perceber a fragilidade dela
ante o pulso dos da família: “Nem todos são fortes como nós. Porque vivemos no
meio dos camponeses, e ela, pelo contrário, cresceu mais perto da cidade.”
O caminho
da cidade, entretanto, não coloca esses dois ambientes, o rural e o urbano,
como puras dicotomias, tal como enxergam algumas de suas personagens, ou ainda
este como superior àquele. Natalia Ginzburg explora como os dois
estabelecem uma força dialética que é como ela própria percebia as lentas
transformações da história e da sociedade. Quer dizer, a condição feminina, por
exemplo, uma das questões centrais nesse romance, é regido por parâmetros
praticamente idênticos; a liberdade de Azalea para ter um amante é puramente figurada,
visto que, de maneira velada a violação masculina se mostra, como a própria
narradora não deixa de perceber en passant o perfil da irmã: “Às vezes
encontrava Azalea, com o nariz vermelho por baixo do chapéu, que não me
cumprimentava porque não usava chapéu.” Parece vigorar, portanto, que ambiente
civilizado a hipocrisia reina mais absoluta, visto que a violência é silenciada
e não pública como naqueles regidos pelo tom da barbárie, que permite a um
homem esbofetear ao escarcéu a mulher, como faz o pai de Dália quando descobre
que a filha andava de convívio com Giulio.
Mas, nesse rico
território de investigação sobre a mulher e o casamento, Natalia Ginzburg não
deixa de registrar as forças mais sutis do modelo patriarcal, justificadas na
maneira como mães e filhas se relacionam: ora pelo puro interesse de encontrar
uma saída para vida atribulada que levam usando como investimento a filha, que
parece ser o sucedido com o empenho da mãe de Dália quando descobre a gravidez
dela e toma à frente de tudo, colocando em crise a sua relação de subserviência
ao marido; ora pela imposição de modelo de usura em tudo semelhante ao patriarcalismo,
como o que almeja a tia de Dália com Santa. Se aquele discurso pregado à filha
tem sua verdade, carrega, quando visto por outro ângulo, o interesse escuso da
expropriação: “que pressa é essa de casar?” – pergunta, e acrescenta – “Cá em
casa tens tudo o que precisas.” Discurso que evidencia as suspeitas de Santa de
que seu casório não se realiza, em parte, por uma razão da própria mãe que se
vale do medo da extrema solidão.
Resta
observamos que o tema principal de O caminho da cidade são as
relações pessoais, com suas idas e vindas, os mal-entendidos e a incapacidade de
enfrentar seus sentimentos e logo os alheios. Sua grande tarefa aqui é a de
investigar os lugares interiores e exteriores de um modelo social cujas marcas
são de ordem variada nos indivíduos. Não faz isso transformando suas
personagens em vítimas com as quais o leitor para se identificar precisa se compadecer
de suas tragédias. Mas, nos propõe pensá-las como resultadas de impulso individual
e determinação histórica-social; no caso das mulheres esta se impõe sobre
aquela.
Natalia
Ginzburg disse que começou a escrever este livro em setembro de 1941, durante
sua estadia em Abruzo. Quis ser, recordando uma opinião de sua mãe sobre
romances demasiado longos, o mais objetiva possível e trabalho na reescrita
muitas vezes do texto até determiná-lo à ordem como o conhecemos. Esse feito reafirma
o que dizíamos no começo deste texto, mas acrescenta ainda outra leitura: a
concisão resultou numa narrativa profunda, de múltiplas camadas e simbologias
que carecem ser descobertas com melhor parcimônia na leitura. O que aqui se mostrou
foi apenas a superfície desse universo pequeno mas virtuoso.
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