Maya Angelou: a arte de ter razão na autoficção negra
Por Wagner Silva Gomes
Maya Angelou, nos anos 1990. |
A poeta
estadunidense Maya Angelou, conhecida também por sua luta junto à negritude
daquele país para obter os direitos civis num mesmo intuito básico, ou seja,
que os negros tivessem os mesmos direitos que os brancos, desconstruindo o
racismo, atuando em atividades de resistência, ligadas a nomes como Malcolm X,
Martin Luther King Jr., Angela Davis, James Baldwin, dentre tantos outros
conhecidos e anônimos, em 1969 lançou sua aclamada autobiografia Eu sei por que
o pássaro canta na gaiola. O livro tem requintes de autoficção, que é quando se
trata fatos da vida real com uma visão imaginativa livre, sem a obrigação de se
prender ao acontecido. Com esse título, entre os mais significativos, aliás, ela
não poderia ficar presa mesmo, tendo testemunhado e sofrido tantas coisas
danosamente inexplicáveis, que traduziu em forma de resistência. Sobre isso ela diz:
“O que
diferencia uma cidade sulista de outra, ou de uma cidade ou povoado do norte,
ou de uma cidade com prédios? A resposta deve ser a experiência compartilhada
entre a maioria desconhecida (ela) e a minoria conhecida (você). Todas as
perguntas não respondidas da infância precisam finalmente ser passadas para a
cidade e respondidas lá. Heróis e bichos-papões, valores e desgostos são
primeiro encontrados e rotulados nesse
ambiente inicial. Em anos posteriores eles mudam de face, lugar e talvez raça,
tática, intensidade e objetivo, mas por baixo dessas máscaras penetráveis eles
usam para sempre os rostos com capuz da infância” (p. 35).
Sobre as
cidades que morou, entre norte e sul, ora com a mãe, ora com a avó, ora
com o pai, ora com a mãe de novo, a autora diz:
“Stamps,
Arkansas, era Fim do Mundo, Geórgia; Enforquem Todos, Alabama; Não Esteja Aqui
ao Pôr do Sol, Negro, Mississipi; ou qualquer outro nome tão descritivo quanto
esses. As pessoas de Stamps diziam que os brancos da nossa cidade tinham tanto
preconceito que um Negro não podia comprar sorvete de baunilha. Exceto no
Quatro de Julho. Nos outros dias, nós tínhamos que nos satisfazer com chocolate”
(p. 67).
A qualidade
ficcional é visível pela descrição criativa e por recursos metafóricos em
várias passagens, como, por exemplo, quando Maya descreve como era o trabalho
de sua avó, rara comerciante negra no sul dos Estados Unidos, região predominantemente
de fazendeiros brancos: “O som
dos sacos vazios de algodão arrastados no chão e o murmúrio das pessoas
recém-acordadas eram cortados pela caixa registradora conforme registrávamos as
vendas de cinco centavos” (p. 22).
Os sons dos
sacos emitidos pela aliteração em S (de “dos”, “sacos”, “vazios” + o impacto do falso aumentativo ÃO, em “algodão”,
com a volta da aliteração em S na palavra “arrastados” e de novo o
impacto tátil do falso aumentativo em “chão”), tudo isso sob a
metáfora do corte sonoro da caixa registradora, seja pelo pouco que se vendia,
seja pelo contexto suscitar uma negra senhora que era vista por olhares
racistas, situação doída, cortante, como quando Maya relata que nunca tinha
visto até então uma criança olhar para um adulto de forma intimidante, como
quem manda e pode causar problemas caso não seja satisfeita sua vontade, como
ela viu no sul, região do Arkansas, onde foi morar com sua avó.
Passagem
tocante quando se pensa: as crianças negras também pegaram essa mania, e os adolescentes
de hoje então, nem se fala. Com que visão crítica estão sendo criados esses
menores de idade? Se se pensar que essa intimidação formativa do exemplo das
atitudes adultas vem de um contexto racista, isso explica tanto retrocesso
trabalhista e de direitos civis em época de Trump, nos Estados Unidos, e
Bolsonaro, no Brasil, país da autora estudada, o primeiro, e o segundo, país
onde nasci e vivo, responsável por meu olhar histórico-contemporâneo.
Durante a
campanha eleitoral de 2018 vi em uma escola crianças cantando uma música
pró-Bolsonaro com letra e tom intimidante, algo violento. Elas enalteciam a
vitória do mesmo presidente que não quer psicólogos nas escolas e defende o
projeto de lei conhecido como Escola Sem Partido. O mesmo presidente que objetiva
formalizar um projeto de país excludente e racista.
Outra
passagem, esta de autoria declaradamente autoficcional é a em que a
autora narra como sua avó Momma, que não quis tratar sua dor de dente levando-a
para arrancar, como era comum, e sim levando-a a um dentista conhecido e que
lhe devia um favor; mesmo sabendo que ele era branco e dentistas brancos não
atendiam pessoas negras, foi ao consultório e após esperar por horas do
lado de fora e o dentista reafirmar que nunca iria colocar a mão na boca de
uma pessoa negra, sendo humilhada, ela entra e chama o dentista de verme, ser indigno de ser humano, já que não tinha a decência de retribuir o
favor, reconhecendo que foi da boca de uma negra que ele conseguiu se
reerguer com o empréstimo que lhe foi concedido quando estava sem dinheiro e
cheio de dívidas durante a conhecida grande depressão (crise de 1929) daquele
país. Ela então entra esculhambando a secretária e o dentista e lhe cobra os
juros do atraso que ele nunca pagou. Ele faz um recibo e paga. Lincoln
era o nome do dentista, talvez ela tinha simpatizado com ele pelo nome do
presidente que acabara com a escravidão nos Estados Unidos, mas pra seu engano,
este, só não foi racista porque precisava dela. A passagem é das mais
engraçadas do livro. A autora conta sua versão , cheia de detalhes,
principalmente com foco na persuasão discursiva, e relata como foi a versão
próxima do real e encerra dizendo: “Momma e o
filho riram e riram da maldade do homem branco e do pecado de retribuição dela. Eu preferia
a minha versão.” (p. 226).
A autora usa
o recurso da autoficção como uma forma de fazer surgir à tona um discurso não
hegemônico, mas periférico, negro. Ao dizer que lia muita literatura e se
apaixonou por Shakespeare durante a infância:
“(...) foi
Shakespeare quem disse: 'Quando em desgraça, sem fortuna e afastado dos
homens'. Era um estado com o qual eu me sentia muito familiarizada. Eu me
tranquilizei quanto à sua brancura dizendo que, afinal, ele estava morto havia
tanto tempo que não poderia ter mais importância para ninguém.
Bailey (*seu
irmão) e eu decidimos decorar uma cena de o Mercador de Veneza, mas percebemos que Momma nos questionaria sobre o
autor e que teríamos que contar que Shakespeare era branco, e não importaria
para ela se ele estava morto ou não. Então, escolhemos A criação, de James
Weldon Johnson.” (p. 29)
Afinal a
mercadora que eles tinham que admirar era ela, a avó, que não era branca, era
negra, e única na região – quer literalidade mais intensa. Pois, como diz a famosa frase de Tolstói, de Anna Keriênina: “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes
são infelizes cada uma à sua maneira”. Ora, as famílias felizes, de acordo com
a visão hegemônica, eram sempre as brancas, para quê afirmar ainda mais isso,
encenando uma peça que lembra o comerciante branco quando uma comerciante real
negra poderia ser digna da mais grandiosa ficção? A visão da criação vista por
um autor negro remeteria mais à vida de uma senhora negra mercadora que cria os
netos contabilizando todo o peso do racismo.
Nesse lidar
com a dialética contra-hegemônica, Maya Angelou narra sua autobiografia se
aproximando mais de conceitos de A arte de ter razão, de Arthur Schopenhauer, um livro que mostra a praticidade do discurso não presa ao caráter
formal dado por Aristóteles em Tópicos; visão que basicamente, diz que:
“o conteúdo do conceito A deve-se
relacionar com o do conceito B, para que esse estabelecimento seja reconhecido
como seu genus ou seu proprium (marco) ou seu accidens ou sua definição, ou
segundo as rubricas secundárias de oposição, causa e efeito, ter e faltar e
assim por diante – toda disputa deve girar em torno de tal relação.” (p.
26).
Como exemplo, Schopenhauer descreve: “é citada como particularidade de uma superfície
o fato de ela ter sido primeiro pintada. Isso é uma característica sensorial,
mas de um tipo perceptível o tempo todo, e portanto correta”. (p. 28). Ao contrário
de, citando as palavras do próprio Aristóteles no locus 215: “Em primeiro
lugar, para refutar: quando o oponente cita algo como particularidade
comprovável só pelos sentidos, então a citação foi malfeita: tudo o que for
sensorial será considerado incerto por pertencer unicamente ao âmbito dos
sentidos. Quando se dizia, por exemplo, como particularidade do Sol o fato de
ele ser a estrela mais brilhante que ilumina a Terra, isso está incorreto. Com
o pôr do Sol, não sabíamos se ainda era quem mais iluminava a Terra, pois ele
estava fora do alcance dos sentidos.” (p. 27).
Como foi
comprovado depois, que a lua reflete a luz do sol, a afirmativa advinda do
sentido estava correta mas ainda não comprovada.
Schopenhauer
destrincha as possibilidades dos sentidos de acordo com as fragilidades,
ambições, ética e antiética, que a vida na prática possibilita. Maya Angelou
usou as possibilidades dos sentidos da dialética de acordo com a resistência
negra, em manter sua cultura, em sua construção, na diáspora, ao conquistar os
direitos no espaço civil. Um exemplo, é
quando morando com sua mãe (novamente), ela relata que o seu novo pai, chamado,
Clidell, a ensinava como jogar bem jogos de azar para não ser enganada, e como
um dia presenciou uma conversa entre os maiores golpistas da região, que
contavam histórias de estratégias para sobreviver como negros nos negócios. Uma
delas, a que Maya narrou, falava sobre um racista que vivia enganando negros
com golpes baratos, quando dois deles, comparsas, decidiram dar uma lição no
rapaz.
Antes de
continuar é importante observar que a visão do racismo não sobrevive à
estratégia 30, de Schopenhauer, que fala sobre O Argumento ad verecundiam
(sobre o respeito ao argumento utilizado). Diz ele:
“A
universalidade de uma ideia, para falar a verdade, não prova nada, nem mesmo é
motivo de probabilidade de sua validade. (...) O que se chama de pensamento
universal, visto à luz, é o pensamento de duas ou três pessoas; e seríamos convencidos disso se pudéssemos
ver como realmente surgem esses pensamentos. Descobriríamos então que existem
duas ou três pessoas que a princípio os aceitaram, promoveram ou defenderam; e
que foram tão boas a ponto de se confiar que os testaram muito bem. Então,
convencidas de antemão de que estas tinham capacidade, algumas outras pessoas
também aceitaram a opinião. Estas, por sua vez, receberam a confiança de muitos
outros, cuja preguiça lhes sugeriu que era melhor acreditar de uma vez do que
ter o trabalho de testar a questão por si mesmas.” (p. 94-95).
Tudo isso,
em época de fake news, faz ainda mais sentido.
O fato é que
os comparsas golpistas viram que o racista que dava golpes baratos em negros
tinha algum trauma, segundo Maya: “A mãe dele devia ter passado maus pedaços em
um massacre índio na África. Ele odiava Negros só um pouco mais do que odiava
índios. E era ganancioso”. (p. 256-257). Em seguida, ela relata o que fizeram os
comparsas:
“Black e eu o estudamos e decidimos que valia a pena dar uma lição
nele. Isso queria dizer que estávamos dispostos a investir alguns milhares de
dólares em preparação. Chamamos um garoto branco de Nova York, um golpista dos
bons, e fizemos com que ele abrisse um escritório em Tulsa. Em teoria, ele era
agente imobiliário do norte tentando comprar um terreno valioso em Oklahoma.
Nós investigamos um terreno perto de Tulsa que tinha um pedágio no meio. Era
parte de uma reserva indígena, mas tinha sido tomado pelo estado”. (p. 256).
Os amigos
então criaram uma verdade universal de que o terreno valia muito dinheiro,
pagando para fazer panfletos e contratando o garoto para falar algo valioso por
camaradagem. Esse algo era que os donos eram negros e só venderiam para um
branco se ele fosse muito respeitoso com os negros e, assim, confiável. Ele
então encontrou os supostamente donos, que disseram já terem recebido uma
boa proposta e não iriam vender para um branco racista pela quantia alta
oferecida, pois só queriam uma quantia básica tal que os satisfizessem. Ele
disse que pagava e que inclusive ele tinha amigos de cor, a
mulher que o criou era de cor, e que não era racista, tinha respeito pelos
negros.
Aí entra
outra estratégia de Schopenhauer, a 35, que diz: “Eis uma estratégia que se for
possível pôr em prática tornará todas as outras desnecessárias. (...) se
conseguíssemos que o oponente percebesse que a opinião dele, se comprovada,
arruinaria seus interesses, então ele abriria mão dela tão rápido como se
estivesse segurando ferro quente sem querer.” (p. 105).
Enfim, o
branco foi enganado, comprou um terreno que era parte de uma reserva indígena,
justo uma das etnias que ele tanto odiava, que foi protegida em sua dignidade
pelo estado, e contra o racismo pelos golpistas negros, que venceram o branco
com o uso de estratégia.
Sobre a
conclusão da história diz Maya Angelou:
“Quando ele
terminou, mais histórias triunfantes choveram pela sala, fazendo os ombros das
pessoas pularem de tanto que riam. Por tudo que foi contado, aqueles contadores
de histórias, nascidos Negros e homens antes da virada do século XX, deviam ter
sido massacrados pela sociedade. Mas eles usaram a inteligência para abrir a
porta da rejeição, e não só se tornaram prósperos, mas também conseguiram se
vingar no caminho.
Não era
possível eu vê-los como criminosos nem sentir qualquer coisa além de orgulho de
seus feitos.
As
necessidades de uma sociedade determinam sua ética, e nos guetos Negros
americanos o herói é o homem que só recebe migalhas da mesa do país, mas que
com engenhosidade e coragem consegue fazer um banquete digno dos deuses. Assim,
o zelador que mora em um quartinho, mas anda em um Cadillac azul, não é motivo
de riso, e sim admirado, e a doméstica que compra sapatos de quarenta dólares
não é criticada, e sim apreciada. Nós sabemos que eles botaram em prática os
poderes mentais e psicológicos que têm. Cada ganho individual aumenta os ganhos
coletivos.
As histórias
de violações da lei são pesadas em balanças diferentes na mente Negra e na
branca. Crimes pequenos constrangem a comunidade, e muitas pessoas se perguntam
com tristeza por que os Negros não roubam mais bancos, não desviam mais fundos
e não fazem mais uso de suborno nos sindicatos. 'Nós somos as vítimas do roubo
mais extenso da história. A vida exige equilíbrio. Não tem problema se
cometermos pequenos roubos agora'. Essa crença tem apelo particular para quem
não consegue competir legalmente com os outros cidadãos.
A minha
educação e a dos meus companheiros Negros era bem diferente da educação dos
nossos colegas de escola brancos. Na sala de aula, aprendíamos o particípio dos
verbos, mas nas ruas e em casa os Negros aprendiam a não usar o S no plural e a
não flexionar os verbos. Estávamos alertas para o vão que separava a palavra
escrita da coloquial. Aprendemos a passar de uma linguagem a outra sem estarmos
conscientes disso. Na escola, em uma dada situação, poderíamos responder com 'Isso não é incomum'. Mas, nas ruas, ao enfrentar uma mesma situação, dizíamos
facilmente: 'As coisas é assim às vezes'.” (p. 260-261).
Se as
reservas indígenas no Brasil forem palco de tamanha façanha de negros aliados
dos indígenas, como foram os negros estadunidenses, e racistas forem ensinados
a respeitar as etnias índia e negra com o que lhe dói mais, o dinheiro e o
poder do discurso, seria uma resistência e tanto contra as atrocidades de
Bolsonaro, que disse que a terra indígena deve servir ao garimpo para que
índios as explorem e enriqueçam.
Comentários