Franklin Távora
Em Formação
da literatura brasileira, livro indispensável a todo leitor interessado em
compreender a organização do nosso sistema literário, não deixa de ficar
visível a predileção de Antonio Candido pela literatura do cearense José
Alencar como singular no interior das primeiras formas genuinamente brasileiras,
começadas segundo muitos a partir do romantismo. Essa consideração o faz ver o
autor de Iracema a influência essencial e superior às criações
literárias de oitocentos, incluindo aquelas que participam do período formativo
de Machado de Assis.
Mas que esse
tratamento do grande crítico brasileiro não escapa de alguma objeção. É bem
verdade que Alencar foi perspicaz ao se apropriar das questões suscitadas pelo
grupo de intelectuais do eixo sul-sudeste do país na necessidade de uma literatura
interessada em situações e questões descritas como genuinamente brasileiras –
ventos de um nacionalismo romântico que não deixaram de chegar aqui e ganhar
algum termo pela coincidente travessia entre o fim da colônia e o aparecimento
de uma nação. A ambição desse escritor é mais audaciosa se repararmos na
maneira como construiu seu projeto literário, circunscrevendo-o em cada um dos
modelos possíveis do romance alguma obra. Caso do romance indianista, do
romance urbano, do romance regionalista.
Nesse último
modelo, sabe-se, nossa literatura foi deveras prolífica. As produções situadas
nos arrabaldes dos chamados núcleos culturais brasileiros, sobretudo aqueles
que começaram a se constituir aquando de uma crise do latifúndio nordestino
pelo comércio ou a expansão de outras culturas rurais, provam, que os campos de
formação de nossa cultura literária foram das mais ricas. Mesmo José de Alencar
que se imiscui entre o clã sudestino com o discurso questionável de uma
literatura nacional é filho natural das forças criativas de um desses
arrabaldes – o Nordeste. Foi aqui que, no final de oitocentos, se constituiu a
gênese de um movimento criativo na literatura que ganhará melhor fôlego a
partir das criações do chamado regionalismo de 1930. E, dos vários nomes esquecidos,
alguns certamente menores, um não pode ser tragado em definitivo pelo silêncio:
Franklin Távora.
No sistema
comparativo de Antonio Candido, a obra de Távora se perde por uma pequena falta
de compreensão sobre um dos motores da criação ficcional: a verossimilhança. No
amplo debate que este escritor estabeleceu contra o modelo criativo de Alencar,
o conceito foi sempre recorrente. Para o autor de O Cabeleira, o
escritor cearense pecava ao falar do que não havia vivido; isso o faz autor de
uma obra repleta de incongruências e figuras em falso, visto que muitos dos
seus elementos compositivos não encontram relações com o ambiente e as
situações retratadas. Não é preciso ir muito longe para observar que Távora tem
sua razão: a leitura da trilogia indianista de Alencar é prova muito suficiente
se repararmos que o índio forjado na sua ficção é uma forma rude e
grosseira; suas personagens respondem mais por uma condição e imaginário
europeus e católicos.
A
mobilização encabeçada por Franklin Távora contra modelos criativos como os
propostos por José de Alencar pode ser denominada como regionalista. Obviamente
que ainda alheio à ideologia formativa dos escritores de 30, mas produto
do mesmo traço nacionalista; o que Antonio Candido registra como o senso da
terra e da paisagem, o patriotismo pelo regional e a preeminência do Norte
sobre o Sul pela autenticidade nas representações. Mas, desses elementos muito
visíveis em todas as obras do escritor, o que parece constituir sua obra é uma relação
muito estreita entre o imaginativo e o histórico – outro traço fundamental do romantismo.
Essa comunhão pretendia oferecer uma visão ideal da realidade, o que coloca a
obra de Távora entre as precursoras do naturalismo e do realismo.
Em O
Cabeleira, publicado em 1876, Franklin Távora ficcionaliza a trajetória do
cangaceiro José Gomes. A história, entretanto, não é uma recriação biográfica
da personagem; é sim uma narrativa a partir da qual o escritor encontra os
elementos para a defesa de sua tese, revelada ao final do romance: o banditismo
não é apenas produto da formação perversa, mas modelada pelo fosso social
vigente em sociedades como a brasileira e que a pena de morte, utilizada ou
pensada como estratégia de fim da violência, não é a solução definitiva para o problema.
Tem razão
Antonio Candido ao dizer sobre certo desvio da compreensão sobre o lugar da verossimilhança
no sistema de criação; ao contrário de ser produto da relação entre o escritor
e a realidade, ela é constituída pelo tratamento entre personagem e meio. Mas,
a ausência da experiência – que não se reduz ao experimentado pessoalmente – é
indispensável para esse tratamento. E, se Távora terá, ao contrário, de Alencar,
não se utilizado corretamente do mecanismo criativo da ficção, a este terá
faltado o que sobrou naquele, a experiência.
Para
Franklin Távora o romanesco é resultado de um sério trabalho de conhecimento e
apropriação dos elementos que dão forma ao mundo fora da ficção: além da
história, a geografia e a natureza. “Ele, ao contrário [de José de Alencar],
não abandona uma área relativamente pequena, que conhece bem. Um casamento
no arrabalde e O sacrifício se desenrolam nas cercanias do Recife ou
na zona rural imediata. O cabeleira, O matuto e Lourenço,
alargam o âmbito para o norte, até atingirem a Paraíba. Esta velha área
canavieira é o seu mundo, cujos rios e acidentes registra com amor topográfico
– demorando-se nas matas, baixadas, trilhos, descrevendo as enchentes e as
secas. Vê-se que ama profundamente a cana-de-açúcar, como planta e realidade econômica.
N’O matuto, dedica-lhe verdadeiro hino, nostálgico da sua gloriosa
história, abespinhado de geografia econômica, a passagem da hegemonia cultural
e política do Norte para o Sul” – sublinha Antonio Candido.
Mesmo assim,
o crítico considera, diante a obra do seu preterido, menor a obra do outro – o que
pelas poucas considerações aqui apresentadas não o colocam em relação de sobreposição.
Franklin Távora e José de Alencar, guardam, como é possível se notar em
quaisquer outras rivalidades criativas, suas contribuições para a cena cultural
do seu tempo. A obra do outro cearense só é menor em extensão pela vida breve
que teve e pelo senso crítico aguçado que o levou a destruir alguma parcela de
suas criações.
Franklin
Távora nasceu a 13 de janeiro de 1842 em Baturité, no Ceará. Foi viver no
Pernambuco desde pequeno; fez seus estudos em Goiana e no Recife, onde se
formou em Direito em 1863. Uma década depois viveu alguns meses no Pará como
secretário de governo e depois foi para o Rio de Janeiro como funcionário da
Secretaria do Império. Sua obra começa a ser publicada em 1861 com a antologia de
contos – forma literária da qual foi um precursor no Brasil – Trindade
maldita. A esta, seguiram os romances Os índios do Jaguaribe (1862),
A casa de palha (1866), Um casamento no arrabalde (1869), O
Cabeleira (1876), O matuto (1878), Lourenço (1878) e O
sacrifício (1879).
No Rio de
Janeiro, onde viveu até sua morte a 18 de agosto de 1888, fundou a Revista
Brasileira, fundamental para a apresentação ao país das ideias do período,
e escreveu importantes tratados sobre a cultura e o folclore do Nordeste, ainda
produtos do seu ambicioso projeto nacionalista das criações imaginativas do
país, e crítica; do primeiro, podemos citar Lendas e tradições do Norte
(1878); e do segundo, Cartas de Semprônio a Cincinato (1871), reunião de
textos nos quais expõe seu embate com José de Alencar e sobre suas compreensões
sobre a arte literária.
É possível
que o leitor de hoje encontre mais pontos em baixa da/ na obra do escritor,
mas, na relação que podemos estabelecer sensivelmente com os criadores seus
contemporâneos, não podemos deixar de reparar que sua insubmissão ao processo
de miscigenação intelectual com os projetos criativos forjados pelos do Sul do
país fizeram autor em relevo. Mais que isso: dessa liberdade, conseguiu construir
uma obra original e precursora cujas marcas foram essenciais para o projeto do
ponto alto da nossa literatura: o romance de 1930. Isso não foi mérito, bem sabemos,
muito embora ele próprio tenha figura com alguns romances nessa fase romântica
erguida por Távora, de José de Alencar que há muito precisa ser revisto da
posição beatificada de pai da literatura brasileira.
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