Coringa e o olhar sobre o que não queremos ver

Por Rafael Kafka


Coringa é daqueles filmes necessários de se chegar ao mainstream que esperemos não seja esquecido em suas provocações centrais. Como obra de arte, não devemos cobrar do longa de Todd Phillips uma mensagem pronta, acabada e muito menos otimista para ser entregue ao público, por mais que seja isso o esperado de boa parte da indústria hollywoodiana. Coringa é uma interessante reflexão fílmica de nossos tempos e por isso merece demais nossos olhares e nossos pensamentos.

Mais do que um nascimento de uma personagem específica, o vilão do universo DC, o que o filme transmite para o telespectador é como a convulsão social que são nossos tempos pode deixar qualquer um louco a ponto de surtar. Quando o surto ocorre, vem outro dilema bastante ambíguo: seria o surto uma reação anormal ou uma forma de agir racional diante de um universo perturbador? Arthur Fleck em dado momento decide fazer de sua loucura trágica uma comédia e fazer da existência um universo surrealista no qual o importante é o prazer, mesmo que este venha na forma de dor dos outros.

Mas qual foi a mensagem recebida por Fleck ao longo de toda sua vida nesse mundo? O começo do filme com ele sendo surrado por um grupo de garotos os quais roubam sua placa de publicidade, que mais à frente será cobrada de seu patrão como se não importasse toda a dor sentida pelo trabalhador, é bem simbólica de uma violência que parece alastrar todos os setores de nossa sociedade. Não sabemos mais onde e quando ela começa, apenas vemos cada elemento de nossa realidade como um catalisador o qual retroalimenta seus motores até uma explosão fatal.

Seguimos Fleck em sua constante possibilidade de explosão e a atuação de Joachim Phoenix torna o processo de adoecimento psíquico mais realista diante de nós. O Coringa não é um psicopata que mata pelo simples prazer de matar, com um gene em seu interior a dizer que ele é uma ameaça ao cidadão de bem. O Coringa é fruto de uma sociedade adoecida que mais parece um organismo com câncer, cujas células atacam umas às outras. Pela falta de diferenciação entre o que é benigno e o que não é, o organismo aos poucos se deteriora e por mais que finja-se não ter nada demais ali aos poucos os sintomas de uma doença mais severa se revelam.

Em Coringa vemos tanto o processo de adoecimento psíquico quanto o adoecimento social se alimentando, se intensificando a cada minuto. Fleck não é exatamente o produto do meio no qual está inserido, mas é um ser cuja liberdade é limitada a todo instante pela realidade de Gotham. Esse meio age como mais um fator dentre diversos outros que aos poucos o filme revela ao espectador. A loucura de Fleck parece guiar todo o enredo do filme e quando o vemos pela segunda vez ela se evidencia mais em certas linhas do roteiro, em especial nas falas de alguns personagens.

O caos social é visto de forma enviesada e todo o processo de dor de Coringa é colocado em cena. Quando este se revela completamente, dominando completamente a mente de Arthur, os conflitos sociais que assolam Gotham vêm à tona percebemos a estranha sintonia existente entre eles e a mentalidade perturbada do protagonista. O Coringa se torna em um ato de revolta uma espécie de catarse para aqueles que gostariam de expressar sua dor e inconformismo de alguma forma com a realidade a qual os circunda. Desse modo, temos o surgimento de um improvável herói que revela todas as contradições sociais de seu meio, canalizando a fúria de uma população em pauperismo voltada para todos os locais e para nenhum ao mesmo tempo.

O filme de Todd Phillips se revela então como um ensaio sobre a mente a humana e como o meio social colabora para o adoecimento desta. Há uma passagem dos diários de Arthur Fleck em que ele afirma que o pior de se ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você aja como se não tivesse uma. Isso fica evidente quando o programa de assistência social que garantia a Fleck o seu atendimento psiquiátrico é cortado e o tratamento tido até o momento deve ser interrompido. A assistente social que lidava com seu caso lhe diz que o governo não se importa com gente como ela e com ele, deixando ainda mais desassistido um ser humano nascido de uma moça com distúrbios mentais, que sofria surras severas de um namorado e provavelmente teve uma relação abusiva com o ex-chefe.

A densidade do filme está em não ser maniqueísta, em querer explorar as dimensões da condição humana e diante dos fatos políticos recentes, com convulsões sociais em países variados, ele se torna ainda mais dialógico diante do contexto em que vivemos. No sombrio universo do longa, as fronteiras entre saudável e louco, entre bem e mal parecem não existir e aos poucos Coringa se torna um sujeito cujo maior prazer é se sentir um demiurgo da loucura, expondo tudo aquilo que está mal acobertado pelo verniz racionalista de nosso mundo.

Houve críticas de que o filme inspira o comportamento incel, mas tais críticas esquecem que uma obra de arte não existe em tese para inspirar essa ou aquela atitude. Ela existe para tocar o senso de beleza do outro, seu senso de sentir a realidade. Vivemos tempos em que coisas terríveis mostradas em Coringa causam prazer estético em nós, mas sempre há o receio de um olhar que se acalme diante da visão tida e não reflita sobre o assistido. O caos exposto em Coringa precisa ser discutido por todos e uma obra do mainstream mostrar isso de forma tão realista e densa é um belo sinal.

Chegamos a um tempo que falar das coisas belas não basta para se ter audiência. A arte, mesmo a mais pop, revela a necessidade humana de se encarar e de se entender mais, pois o câncer em que vivemos cada vez mais ganha corpo. Há dois momentos provocativos no filme que revelam isso de forma bem interessante: quando os poderosos estão se divertindo vendo Tempos Modernos e quando rimos de um anão não querendo ser morto por Fleck. Nesses momentos, vemos esse olhar consolado ao qual me referi acima, um olhar que se comove com a visão triste sem refletir concretamente sobre o visto e um olhar que se pega rindo de algo condenável no plano discursivo. Phillips usa muito bem a metalinguagem para de alguma forma dizer que nosso olhar tem alguns desníveis e por mais tocante que seja a história de Fleck ao final muitos esqueceremos do que se passou e seguiremos tratando doenças mentais como algo desimportante.

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