Anotações sobre Sinais de fogo, de Jorge de Sena
Por Pedro
Fernandes
Uma visita à produção criativa de Jorge de Sena é o suficiente para compreender
que o designativo múltiplo costumeiramente empregado sobre ele não é
gratuito. Sua obra alcança, no âmbito da literatura portuguesa do século XX, os
melhores lugares nos três gêneros literários que praticou: é o exímio poeta de quase
três dezenas de títulos de poesia; é o autor de quatro peças de teatro; e o
exímio prosador de quatro vezes mais obras que as da poesia, divididas essas
entre contos, novelas, crítica cultural ou literária e um romance, nascido só aparentemente,
falhado.
Sinais de
fogo é um romance só aparentemente falhado porque, ao que conta Mécia de
Sena na longa e esclarecedora introdução escrita entre 1983 e 1984 e acrescentada
à terceira edição da obra, era o segundo dos quatro títulos planejados para
formar o ciclo ficcional Monte Cativo. Durante a concepção, o escritor relatou
aos amigos muito de perto o processo de geração até chegar a um consenso de que
o romance semiconcluído era a “primeira parte de um vasto ciclo que não sei se
chegarei a escrever”. Sua companheira recorda o quanto Sinais de fogo se processa
como a entrada a Monte Cativo porque espelha “o ponto de viragem do panorama político
e social europeu”.
Jorge de
Sena anuncia em carta a José-Augusto França de março de 1965, que Monte
cativo seria o retrato de sua geração e, portanto, daria conta da vida
portuguesa no que se refere aos costumes e o ambiente político e moral desde
1936 a 1959. O que se processa em Sinais de fogo é tão somente os
primeiros meses do primeiro ano desse ciclo e os episódios então recobrados são
o estopim da Guerra Civil em Espanha, o golpe militar de 18 de julho de 1936, e
a Revolta dos Barcos, ocorrida em Lisboa a 8 de setembro de 1936, um dos
primeiros sinais mais evidentes da ditadura em Portugal. Assim é que o título
do romance abriga uma variedade de sentidos que vão da pulsão interior para a
criação poética ao estopim de uma barbárie de marcas indeléveis para a sociedade
portuguesa. Mas, se repararmos que o modelo político aí vigente até 1974 foi
reproduzido em rigorosa proporção nas demais sociedades e se repararmos na destituição
de fronteiras da obra literária, logo percebemos que as situações evocadas por
esse romance extrapolam o valor original designado pelo
escritor: deixa de ser apenas um panorama sobre a vida portuguesa para ser um
panorama sobre a comunidade humana, sobretudo porque tais experiências
históricas são oferecidas por através do ponto de vista de um indivíduo às
voltas com suas próprias transformações e estas, bem sabemos, são universais.
Os
episódios históricos, apesar de bordearem as situações narrativas ao
ponto-limite do que afirma Mécia de Sena – “Sem tudo isto, não poderia
entender-se o clima opressivo de Monte Cativo” –, não se constituem na sua
dorsal; essa constatação pode ser evidente, mas sua aqui tem o
intuito de evidenciar a complexidade do romance. A ausência interior do
desenvolvimento do imbróglio histórico não faz da História um pano de fundo
para as ações. Isto é, se por um lado essa presença não-literal nega o epíteto
de romance histórico a Sinais de fogo, por outro, lhe atribui a função de uma
testemunhal sobre um tempo em degeneração. É isso ainda o que garante a força
universal do romance e os vários planos de leitura possíveis. Seu tempo é uma recriação
memorial em que vigoram, em modo de interseção, a vida pessoal do narrador, a
História, as observações críticas sobre si, o outro e seu entorno, além, da
constituição de um certo tratado acerca da volição criativa.
Os episódios
recordados pela personagem Jorge são organizados na narrativa da seguinte forma:
os anos finais do Liceu e a entrada como estudante universitário na Faculdade
de Ciências; o veraneio na Figueira da Foz, curto período mas narrado pormenorizadamente,
ressaltando, assim, não apenas a efervescência das situações bem como o seu
papel marcante nas transformações pessoais operadas desde então; e o regresso à
Lisboa onde pode se reconhecer eu-outro. Esses três momentos, organizados de
forma sucessiva, perfazem uma circular desenvolvida à distância pelo narrador
autodiegético “cujos acontecimentos exteriores e vitalidade interior ‘viveu’
enquanto participante e testemunha privilegiada, como se não fosse um sujeito
ficcional”, para usar as palavras de Jorge Vaz de Carvalho no fundamental
estudo sobre o romance em questão, Sinais de fogo como romance de formação.
Esse trabalho de recriação por uma memória autobiográfica (do narrador, não do
autor) que propicia ao leitor uma vivência íntima dos acontecimentos, parte
fundamental no processo de convencimento ficcional, se realiza de maneira pendular:
ora é o relato de corte realista, ora o monólogo interior.
Esse
tratamento constitui a riqueza polifônica do romance, o que nos oferece a
possibilidade de acesso aos impasses entre pensamento e atitude: do próprio
Jorge, que em nome de seu envolvimento sexual-amoroso com Mercedes, engalfinha as
amizades mais verdadeiras numa complexa trama que mais tarde reconhecerá como
puro capricho individual que visava sacrificar o primeiro-amor da amante, o
Almeida; de José Ramos, o irmão de Mercedes que seduzido pelo estopim do
conflito armado em Espanha, para onde partirá em fuga e nem o alcançará, despreza
os valores conservadores da família; a constante preocupação de Carlos Macedo
com as minorias menos favorecida e a ojeriza pelos gays; a devassidão sexual de
Rodrigues, fiel exibicionista e adorador do que traz entre as pernas, liberal
nos costumes e conservador no pensamento, à espera em suprir o seu sentimento
de esvaziado existencialmente; ou os impasses ideológicos assumidos por figuras
como Ramiro, conservador e pró-regime, e Macedo, seduzido pelo doutrinamento
comunista; entre outros impasses que só enriquece o que podemos designar como
microcosmo da comunidade humana.
Essa atitude
polifônica se encontra ainda na linguagem do romance: não apenas, o escritor
constitui campos linguísticos que propiciam o narrador à individualização das suas
personagens, como este narrador assume-se entre a fala coloquial e a fala elaborada
que operam o contraste entre o jovem Jorge e o adulto que rememora e organiza as
circunstâncias do relato. O que se observa muito claramente por esse narrador de
dupla lente são as acentuadas transformações do jovem Jorge que ganham forma
desde quando na chegada à Figueira da Foz para o que não será apenas mais um
veraneio: aí descobre-se implicado no seu lugar com a história e a sociedade, a
partir dos episódios da guerra civil em Espanha e o levantamento de um governo
que colocaria Portugal nas sombras por longas décadas. O imperativo das transformações
impelidas pela revolução ao cotidiano e à vida de todos se mostra quando, na
azáfama da polícia portuguesa em patrulhar a estadia em território português de
espanhóis partidários da república, numa clara simpatia da política do país
para as forças retrógradas que tomavam corpo na fronteira próxima, o tio Justino,
para onde o protagonista se hospeda no seu veraneio, alberga às escondidas em
casa dois fugitivos.
A casa do tio
transformada em microcosmo da Guerra Civil de Espanha, leva o narrador a observar
mais de perto a influência mais perene do conflito no cotidiano das pessoas ao ponto
de se envolver integralmente no projeto de fuga dos clandestinos, atesta os
dois instantes de inflexão de Jorge para os sistemas que regem a sociedade. É a partir disso que se nota a ampliação da reflexão da personagem acerca das
degradações do homem e da dilapidação das relações coletivas e de uma ética do
convívio – incluindo-se ele próprio nessa condição, o que o arrasta por / para uma espécie
de náusea existencial.
Outro dos
principais temas de Sinais de fogo é a constituição da liberdade
individual: para uns, esta reside na luta pela liberdade do outro (Zé Ramos);
pela independência do seio familiar (Luís); pelo direito de exercício da
sexualidade livre (Rodrigues, Rufinho, Mercedes); para o tio de Jorge, está nas
pândegas, na política, nos jogos de azar, na posse e uso da fêmea. Na conversa
com Macedo, aquela que nos permitiu uma visita à pequena parte do universo
actancial de Jorge, o protagonista se compreende, muito antes da permissividade
doméstica do homem como quer Justino ou pelas demais forças ansiadas pelos
demais, que a liberdade passa por uma consciência sobre o mundo. Assim é que
indagação e ação se tornam operações inseparáveis à sua formação, o que, em Sinais
de fogo, se conjuga na dinâmica entre a realidade exterior e interior das
personagens.
Por fim, não é possível deixar de sublinhar a constituição de
uma descoberta – a principal dentre as descobertas nesse romance – de uma atitude
poética. É esta que permite a Jorge – e por conseguinte ao seu leitor – que uma
leitura coerente do mundo não passa pela refutação das superfícies atuantes e
sim pela renovação profunda das dinâmicas do pensamento sem desconsiderar o uni
e o diverso que nos define enquanto comunidade humana. Se a poesia é a criação
de um mundo diferente, como reflete certa personagem misteriosa que salva a
Jorge e o amigo Luís das garras dos agitadores da ditadura este mundo não é o melhor,
nem o perfeito, tampouco o que substituirá o mundo nosso. É o mundo através do
qual podemos observar o que deixamos de observar com os olhos comuns. Quer
dizer, o poético é uma alternativa de saber porque nos amplia a capacidade de
conhecer, o que não é, paradoxalmente, uma salvação. Se algo nos conforta,
também não é nossa danação. Do contrário, podemos ao menos encontrar nele modos
de não perecer à fatal ordem do mundo. Esta é talvez o melhor de um romance que
nos oferece uma variedade de leituras, pertinentes no tempo de sua publicação e
nos tempos vigentes.
* As observações aqui apresentadas formam parte de um longo texto apresentado durante o Simpósio de Estudos Literários, evento realizado entre os 25 e 26 de novembro de 2019 na Universidade Federal Rural do Semi-Árido.
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