A visão biblioteconômica do mundo
Por Carlo
Frabetti
Em minha
sombra, o oco breu com desvelo
investigo, o báculo indeciso,
eu, que me figurava o paraíso
tendo uma biblioteca por modelo.
Jorge Luis
Borges, “Poema dos dons”
Existem
diferentes maneiras de ver o mundo e contar sua história. Algumas se excluem
mutuamente, outras se ignoram e outras tantas se complementam; mas, por um
motivo ou outro, todos elas merecem ser conhecidas. Uma delas é o que
poderíamos chamar de visão biblioteconômica do mundo (VBM), segundo a qual o
livro é o culminar de um processo evolutivo que começa com a matéria inanimada,
se inflama com a vida e se ilumina com a consciência. E a luz da consciência é
condensada na palavra (a carne se torna verbo), que por sua vez se cristaliza
na escrita.
O livro
seria, portanto, epítome e emblema da consciência e sua continuidade. Pouco
importa, para fins teóricos (embora muito para fins práticos), que o suporte de
escrita seja a pedra, o papel ou o silício (novamente a pedra): um fio de
palavras salvas de sua volatilidade original seria, de acordo com a VBM , a
conquista máxima da consciência e, portanto, do universo.
Portanto,
uma maneira de dar efeito às veleidades teleológicas da mente humana é imaginar
que o objetivo último da evolução é a obtenção de uma biblioteca definitiva
(isto é, inaugural). Uma – a – Biblioteca com maiúscula, cheia, completa, num
sentido não meramente acumulativo, mas orgânico, da completude.
No âmbito
dessa VBM, o ser humano – sem prejuízo de outras funções, valores ou sentidos –
pode ser considerado o ponto de encontro dos livros, sua ágora e sua palestra:
nele se desdobram e enfrentam, competem e se ampliam, e, em alguns casos, eles
conseguem se reproduzir, pressionando o hospedeiro a escrever um novo livro. Em
alguns casos ou em todos, logo depois de ampliarmos o conceito de livro, porque
todo ser humano é – embora não seja apenas isso – um livro eletrônico, um ebook
alojado no disco mole do cérebro. E no caso do Homo legens (e todos
lemos continuamente, assim que expandimos o conceito de leitura), esse livrerantópode
cresce para o amor de outros livros, luta e se funde com eles. O esse est
percipi aut percipere de Berkeley é resolvido em “ser é ler e ser lido”.
A
biblioteca universal
“O Universo
(que outros chamam de Biblioteca) é composto por um número indefinido, e talvez
infinito, de galerias hexagonais”, assim começa “A biblioteca de Babel”, um
conto de Jorge Luis Borges inspirado em “A biblioteca universal” de Kurd
Lasswitz.
De “A biblioteca
de Babel”, é importante destacar a identificação do universo com a biblioteca
(mais tarde, em um de seus poemas mais famosos, o “Poema dos dons”, Borges
daria outro passo – um salto qualitativo – e identificaria a biblioteca como o
paraíso). Mas esse começo promissor não leva a uma VBM propriamente dita: como
costuma ser o caso das histórias de Borges, "A biblioteca de Babel" finda
na abordagem, e as divagações sobre o desenvolvimento acrescentam pouco ao sugestivo
começo.
De qualquer
forma, é interessante observar, prendendo a respiração e a vertigem, os números
monstruosos que emergem dos contos de Lasswitz e Borges.
A biblioteca
universal de Lasswitz se compõe de volumes de 500 páginas com 40 linhas por
página e 50 caracteres por linha, ou seja, um milhão de caracteres no total, e
são escritos com um repertório tipográfico de 100 sinais, incluindo letras,
figuras, símbolos e sinais de pontuação (sem esquecer o espaço, o zero
essencial da escrita). E como para cada um dos caracteres existem 100
possibilidades diferentes e cada volume contém um milhão de caracteres, o
número de combinações – variações com repetição, no jargão matemático - é 100
elevado à potência de um milhão, ou seja, um seguido por dois milhões de zeros.
Se quiséssemos escrever esse número monstruoso em uma longa tira de papel, levaríamos
várias semanas e três quilômetros.
A biblioteca
de Babel é um pouco menor: seus volumes têm 410 páginas cada, com 40 linhas em
cada página e 80 caracteres por linha: um total de 1.312.000 caracteres por
volume. Mas os sinais utilizados não são 100, como no caso anterior, mas apenas
25: 22 letras mais o ponto, a vírgula e o espaço; portanto, o número de
possíveis livros diferentes será elevado à potência 1.312.000. Mesmo sendo
inconcebivelmente grande, a biblioteca de Babel é cerca de cem mil vezes menor
que a biblioteca universal de Lasswitz.
Obviamente,
a grande maioria dos livros nessas bibliotecas universais não faria sentido. Se
os colocássemos em ordem crescente de complexidade, o primeiro livro seria
literalmente um álbum, pois teria todas as páginas em branco, e o primeiro
milhão de livros subsequentes conteria apenas a letra a, em todos os lugares
possíveis. Se nos concentrarmos em livros significativos, o cálculo se complica
na mesma medida em que se reduz o número, dada a dificuldade – senão a
impossibilidade – de determinar o que é um livro “com sentido”. Mesmo assim,
pode-se tentar uma abordagem teórica à desmesurada e ilusória tarefa de
construir uma biblioteca universal significativa; uma primeira abordagem
quantitativa que, embora grosseira, nos permite ter uma ideia de sua ordem de
magnitude. E, nesse caso, pode ser conveniente começar pelo final: os livrerantópodes
monumentais, as biografias exaustivas de todos os seres humanos que estiveram
no mundo.
Toda a vida
humana é – embora não apenas isso – um fluxo quase contínuo de palavras e ações
que podem ser descritas por palavras, e embora a maioria dessas palavras nunca
seja escrita e nem seja objeto de elaboração consciente (elas não são ditas nem
“pensadas” no sentido restrito do termo), de alguma maneira configuram um
livro, uma enorme rascunho gravado nos próprios circuitos neurais e de outras
pessoas. Portanto, todas as vidas que ao longo da história atingiram o limiar
do verbo merecem estar em nossa enciclopédia biográfica universal, da mais breve
à mais longeva, que, ao escrevê-las, encheria cerca de quarenta mil volumes de
cerca de trezentos páginas no caso de centenários (uma vez que leva cerca de
cinco minutos para ler uma página padrão e, portanto, em cada página seriam
gravados cerca de cinco minutos de vida, ou seja, um dia por volume).
Levando em
conta que até agora houve cerca de cem bilhões de humanos falantes (desconsidere
o pleonasmo, uma vez que a humanidade e a linguagem são inseparáveis), a uma média
de dez mil volumes por vida, a enciclopédia biográfica universal conteria cerca
de um bilhão de volumes. Uma prateleira de dez níveis para contr todos eles
chegaria aos confins do sistema solar. No limite, a enciclopédia biográfica
universal coincidiria com a biblioteca definitiva (isto é, inaugural), uma vez
que as biografias exaustivas incluiriam todas as obras e experiências dos
biografados, ou seja, todo o conhecimento humano. Assim, nos vinte mil volumes
dedicados aos cinquenta e dois anos da vida de Shakespeare, suas obras
completas seriam contidas, acompanhadas, além disso, de todos os seus rascunhos
e de todas as reflexões associadas aos processos criativos do autor.
Só
conseguimos escrever uma mínima e insegura parte da biografia de Shakespeare;
mas estamos perto de poder gravar exaustivamente o curso das vidas humanas. Cada
vez mais dados de nossas atividades diárias são capturados, processados e
armazenados com ou sem nosso conhecimento, com ou sem nossa permissão, e tanto
a mais ousada ficção científica quanto a futurologia mais prudente especulam
sobre a possibilidade de um registro total das informações num mundo sem
privacidade e nem esquecimento.
* Este texto é uma tradução de “La visión biblioteconómica
del mundo”, publicado aqui, em Jot Down.
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