A Sra. Stoner fala: uma entrevista com Nancy Gardner Williams


Por Patricia Reimann

John Williams. Arquivo: University of Texas Press / Reprodução


Nancy Gardner Williams, viúva de John Williams, vive em um pequeno bangalô em Pueblo, Colorado, próximo ao deserto. Esta cidade perto das Montanhas Rochosas já foi conhecida por sua indústria do aço. Nancy, uma mulher alta que se mantém ereta, é atenta e observadora, amigável embora um tanto reservada. Não é decididamente falante, mas entende-se de imediato que ela e o marido deviam estar bem alinhados. “Nenhum tumulto, nenhuma moda, nenhuma pompa”, como observou Dan Wakefield sobre John Williams. Isto parece valer também para ela. Nancy estudou literatura inglesa na Universidade Denver. Um de seus professores foi John Williams.

Entrevistadora: Sra. Williams, você conheceu John em Denver em 1959. Ele foi seu professor. Como era ele?
Williams: Ele sempre usava uma echarpe e estava sempre fumando, mesmo enquanto lecionava. Creio que jamais foi dar aulas sem sua echarpe. E era um bom professor. Ele gostava de suas coisas em ordem, e tinha uma conduta agradável e ordenada.

Entrevistadora: Ele veio de uma família um tanto pobre.
Williams: Sim, sua família era pobre. Sua mãe adorava ler revistas para jovens mulheres românticas.1 Quando ele tinha doze anos de idade, conseguiu um pequeno trabalho em uma livraria na cidade, e o cara da livraria se interessou por ele. Por vezes John encontrava a mãe chorando, mas eram tempos difíceis, meu Deus. É complicado imaginar, a ansiedade e a pressão para conseguir dinheiro o suficiente para pôr comida na mesa. Eles plantavam, então tinham comida. John me mostrou a roça uma vez. Era bem pequena, uma pequena construção, uma pequena área cultivada.

Entrevistadora: Como ele conseguiu ir para a universidade?
Williams: Ele não teve qualquer chance de estudar. Não havia dinheiro. Mas qualquer um que servira nas forças armadas durante a Segunda Guerra Mundial poderia estudar. O governo custearia. Sorte dele – quero dizer, foi maravilhoso.

Edição brasileira de Butcher's Crossing (Rádio Londres)


Entrevistadora: O primeiro livro a lhe trazer reconhecimento como escritor foi Butcher’s Crossing.2 O cenário dos romances varia, assim como o gênero. No entanto, Butcher’s Crossing parece muito distante da realidade de um jovem professor, como ele era à época. Você sabe o que o levou a escrever um Western?
Williams: Bem, ele viveu no Oeste. E todo aquele terreno montanhoso e os rios e tudo mais estavam à sua volta. Enquanto escrevia Butcher’s Crossing, ele saía e acampava nas florestas, nas montanhas. Creio que ele descobriu que não concordava de fato com Emerson, que falava do caráter benigno da natureza. Não acredito que Butcher’s Crossing seja autobiográfico, mas há muito nele da experiência de John – a matança que se prolonga.

Entrevistadora: Uma analogia à guerra?
Williams: É. Penso que sim.

Entrevistadora: O que ele fez durante a guerra?
Williams: Ele tinha uma grande voz. E quando estava no ensino médio, conseguiu um trabalho como anunciante de rádio. Depois passou por mais treinamento radiofônico, então quando se alistou na Força Aérea eles imediatamente o enviaram para mais treinamento, e ele se tornou operador de rádio em um C-45, um avião de viagem e vigilância. Então foi isso que fez durante a guerra, na China, em Burma e na Índia. Ele foi alvejado. O avião estava voando muito baixo e zuniu pela copa das árvores e, finalmente, a gravidade levou-o rumo ao chão. Ele não sabia se havia se jogado ou sido jogado para fora do avião, mas ele e os outros dois homens que estavam na parte da frente do avião sobreviveram, e os cinco da parte traseira morreram. Esse fato o atormentou pela vida toda. Como eu pude viver e eles não? Quando o conheci, ele tinha pesadelos, tinha reincidência de malária, e isso foi quinze anos após a guerra. Os pesadelos arrefeceram com o tempo, mas ele ainda tinha alguns, ocasionais. Nunca foram embora. Dois anos e meio de matança, matança, matança. Nunca foram embora.

Entrevistadora: Em seu primeiro romance, Nothing but the Night [Nada além da noite; sem tradução brasileira], um filho, separado do pai e traumatizado por alguma experiência na primeira infância, ocupa o centro da narrativa. É um livro que nos atinge com o anseio de John por escrever e com seu talento. Sentimos a energia, o poder de uma pessoa que atravessou o fogo. O livro me encantou, e então percebi que ele escreveu o romance enquanto estava em Burma durante a guerra, quando tinha apenas vinte e dois anos.
Williams: Sim.

Entrevistadora: Por que ele se distanciou do livro?
Williams: Eu não sei. Gostaria de tê-lo relido antes de você chegar e assim estaria afiada. Bem, ele trabalhou em Nothing but the Night enquanto se recuperava do acidente de avião. De acordo com as regras, ele deveria ter sido mandado para casa, mas lá isso não era possível. Mas foi liberado do serviço. Essa era a política – se você está ferido, não tem mais deveres. Só Deus sabe onde ele conseguiu papel. Pense, ele estava em uma tenda, tinha um mangusto de estimação que o visitava algumas vezes por dia e havia uma clareira na selva, muitas outras tendas – nada além disso, nem filme, nem rádio, nem biblioteca, literalmente nada. Ele estava no meio do nada, em uma pequena clareira na selva, e escrevia apenas para evitar que morresse de tédio.
Quando se sentiu bem o suficiente, quando havia se recuperado, voluntariou-se para ir buscar as plaquetas de identificação pertencentes a um piloto abatido de um avião que se acidentara. Eles sabiam que o piloto estava morto, mas se não tivessem ido atrás de suas plaquetas de identificação, a família jamais saberia o que aconteceu com ele. Assim, ele e outros dois rapazes foram pela selva, abrindo o caminho à faca, uma aventura e tanto em si mesma, mas ele precisava de algo para fazer, então escreveu o romance, e foi buscar a chapa de identificação do rapaz.

John Williams no jardim de sua casa.

Entrevistadora: Ele lhe tornou uma parceira em sua escrita?
Williams: Não, exceto quando desceu as escadas com o final de Augustus e eu soube de imediato – eu disse, “Você continuou por muito tempo. É preciso parar antes.” Mas foi a única coisa que eu disse a ele sobre sua escrita.

Entrevistadora: E ele seguiu seu conselho?
Williams: Sim, ele seguiu.

Entrevistadora: Ele escrevia todos os dias?
Williams: Sim, quando podia. Mas apenas durante o verão. Além disso, ele lecionava. Era um escritor extremamente metódico, que se dedicava muito à escrita, e a esboçava com cuidado. Pois ele não queria ter de reescrever nada. Começava de manhã bem cedo, por volta de sete e meia, oito horas, talvez depois de algum café. Não era um apreciador de café da manhã. Então subia para seu estúdio, e não o via até a hora do almoço, exceto que vez por outra eu o via no jardim. Estava lá fora com seus vegetais, um agricultor. Ele amava aquele jardim, e eu pensava, “Bem, ele travou em alguma parte e precisa relaxar e depois de um tempo ele volta e escreve.” Então descia para almoçar – almoçávamos quase sempre juntos – e então às vezes ia à universidade buscar sua correspondência ou conversar com alguém. E então durante a tarde ele subia de novo por duas ou três horas, planejando o trabalho do dia seguinte de modo que, quando fosse trabalhar, soubesse exatamente o que desejava realizar.

Entrevistadora: Em 1973, ele recebeu o National Book Award por Augustus. Ele teve de dividi-lo com John Barth, e também teve de dividir o dinheiro, que de todo jeito não era muito. E ainda é famoso por ter dito “Não me importo. Nunca esperei ganhar dinheiro com minha escrita”. De onde veio essa atitude? Supostamente, ele também teria dito uma vez que não se importava em ter mil ou cem mil leitores.
Williams: Ele não era nada senão independente e voluntarioso. Ele tinha um bom jeito de viver um dia de cada vez. Não tinha qualquer ansiedade quanto a seu trabalho ser ou não aceito.

Entrevistadora: John tinha confiança na humanidade, no poder da razão?
Williams: Não é uma questão que lhe interessaria, creio. Ele simplesmente não tinha interesse pelo abstrato. Ele queria ir direto ao ponto. Penso agora nas aulas de poesia do século XX que ele dava. Ele amava a coisa em si. Amava os poemas. Provavelmente amava os poetas também. Mas no que se refere a tornar isso em algo maravilhoso e filosófico, não, nem um pouco. Não tinha interesse por isso.

Edição brasileira de Stoner (Rádio Londres)


Entrevistadora: E no entanto há essa questão subjacente, não apenas em Stoner – “O que é uma vida boa?”
Williams: Deus, sim. Mas uma vida boa é imediata. Uma vida boa não existe em qualquer reino filosófico. Uma vida boa é você e eu conversando uma com a outra.

Entrevistadora: Ele de fato escreveu toda a sua obra, aqueles três grandes romances, entre 1960 e 1972 – na era da Guerra Fria, da crise de Cuba, da Guerra do Vietnã, do movimento dos Panteras Negras. Ele sentia que o escritor tem uma função política ou social?
Williams: Não. Não, ele tinha uma função pessoal. John não sentia que carregava responsabilidade política direta com sua escrita. Embora isso tenha aparecido na escrita de Augustus, no sentido de registrar ou ao menos inventar um mundo que tenha alguma relação com o nosso mundo, com o mundo real, ao explorar a questão da guerra. É o mesmo em Stoner. Mas no que se refere a qualquer responsabilidade imediata – por exemplo, ir à televisão e dizer algo –, não, nada mesmo.

Entrevistadora: Há uma passagem em Augustus que diz algo na linha de “É tão fácil julgar e tão difícil ampliar o conhecimento de alguém”.
Williams: Saiu direto da boca do John. Ele diria que julgar é a pior coisa que se pode fazer.

Entrevistadora: Isso foi em 1972. Treze anos mais tarde, em 1985, ele se aposentou da universidade. O que aconteceu com sua escrita após 1972?
Williams: Ele não estava bem. Não estava bem mesmo. Depois de Augustus, ele não tinha energias. Começou outro romance, Sleep of Reason. Deus, é maravilhoso.

Entrevistadora: Falando sobre ele não estar bem... você está se referindo à sua doença pulmonar ou à bebida?
Williams: Bem, a ambas.

Entrevistadora: Houve algum acontecimento que desencadeou seu alcoolismo?
Williams: Não. Ele cresceu no Texas. Beber parecia uma coisa bem adulta e sofisticada de se fazer. Começou no ensino médio – beber cerveja, ele me disse.

Entrevistadora: Mas em certo ponto, aparentemente, a bebedeira saiu do controle?
Williams: Não é a palavra que eu usaria. Ele era dependente, bebia todo dia, mas era bastante calado sobre isso. Ficava menos agradável à medida que a tarde passava, mas nunca houve... Ele sempre se levantava e de alguma forma conseguia fazer o que precisava, todo dia, sobretudo dar aulas.

Entrevistadora: Isso afetou a autoestima dele?
Williams: Não. Ele tinha um ego bastante saudável. Nada iria interferir em sua autoestima. Ele tinha seus demônios, e eu apenas o deixava beber sua cerveja. Eu vi os pesadelos e o pesar da guerra, eu vi a malária, vi tudo aquilo, e pensei, “Não é de espantar que ele beba”.

Entrevistadora: Em Stoner, ele fala do eu como uma selva, e de viver no eu como uma forma de exílio.
Williams: Bem, é isso. É tudo que temos. Temos apenas nosso eu. Penso que isso está bem próximo do modo como John pensava sobre as coisas. O eu como uma selva. Algo impenetrável, sufocante, quente, indomável. Ele certamente conhecia a selva. A mente é uma selva. Ela não é um lugar específico, de acordo com a experiência dele.

Entrevistadora: Na verdade, ele queria escolher um mote para Stoner, uma linha de José Ortega y Gasset. No fim, não a usou, mas a linha era algo como “Um herói é um homem que deseja ser quem ele é”. O que ela significaria para ele pessoalmente?
Williams: É de fato central e vai direto ao ponto, não é? Bem, veja o quanto fica no caminho de sermos nós mesmos. Nossas circunstâncias – no caso de John, era a pobreza. Nesse contexto, John chegou tão perto de ser bem-sucedido quanto qualquer outro que já encontrei. Ele fez o que desejava fazer. Quero dizer, embora não pudesse começar a escrever direito de fato até estar nos seus trinta e poucos anos, ele começou bem demais. Então ele chegou tão perto quanto qualquer outro que posso imaginar de se tornar ele mesmo. Estava disposto a fazer qualquer sacrifício e a enfrentar qualquer desafio. Ele apenas seguiu em frente.
Acho que ele não estava muito interessado em explorar a si mesmo, ou talvez tenha sido o que ele fez com os romances. Quero dizer, ele não tinha qualquer interesse em falar sobre si mesmo. Ele era espirituoso, e era engraçado, e estava sempre ocupado, fazendo sua conserva de pepinos. Era muito ativo. A última coisa que queria era ter uma conversa séria

Entrevistadora: Ele era um homem de contradições?
Williams: Não. Eu não diria isso. Ele era inteiriço. Era uno. Não era contraditório nem contradito sobre si mesmo. Para mim é um grande prazer falar sobre ele. Não posso imaginar se lhe fiz justiça. Era um bom homem, bom, bom.


Notas

1 No original, “true-romance magazines”. Trata-se de um gênero de revistas dedicadas ao público feminino, em geral mulheres casadas de idade entre 20 e 35 anos, contendo histórias amorosas supostamente verídicas e toda sorte de conselhos sobre relacionamentos.  Seu principal período de circulação deu-se entre 1920 e 1950.

2 Os três principais livros de Williams foram publicados no Brasil pela Rádio Londres, retendo seus títulos originais: Stoner (2015), Butcher’s Crossing (2016) e Augustus (2018).


* Extraído de Nothing but the Night, de John Williams, relançado em fevereiro de 2019 pela New York Review of Books Classics.  Tradução livre de Guilherme Mazzafera da entrevista publicada no site Paris Review em 20 de fevereiro de 2019. 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Mortes de intelectual

16 + 2 romances de formação que devemos ler