A literatura e o Estado policial
Por Rafael Kafka
Há algum
tempo a discussão sobre as políticas de encarceramento no nosso país vêm gerando
um debate interessante dentro do campo político. Os programas policiais incitam
a um recrudescimento das leis para maior punição de criminosos em regimes mais
privativos de liberdade, geralmente pegando infratores pobres e pretos, pouco
ou nada discutindo sobre as causas sociais da violência. No meio dessa
narrativa, reforça-se a ideia de um certo essencialismo que converte pessoas
cometedoras de crimes em sujeitos sem salvação e o presídio na solução mágica
que ajuda a manter tais pessoas longe do mundo dos cidadãos de bem.
A discussão
sobre esse tema se intensifica diante de um Estado policial que claramente
ganha mais força dentro do imaginário afetivo da população média. A violência
se torna um acontecimento catártico e revela cenas como a do sequestro ocorrido há
alguns meses no Rio de Janeiro que em seu desenlace viu uma multidão de pessoas
tratando o evento e a morte do sequestrador como um grande espetáculo de
vaudeville. Vladimir Safatle discute muito bem a lógica dos afetos em nossa
sociedade e mostra como eles são os motores de ações humana. Nesse sentido, a
sociedade na qual vivemos é uma sociedade que condiciona tipos de afetos
pré-determinados para condicionar ações esperadas de todos nós.
Safatle
resgata em suas visões algo que fica claro nos posicionamentos de Michel
Foucault: o poder não age apenas por meio de sanções. O poder também visa à
afirmação de ações e condutas, criando e recriando subjetividades de acordo com
um projeto político específico. O Estado policial é um Estado de medo,
protegido por muros de condomínios que cada vez mais se espalham pela cidade,
crivando o espaço urbano em zonas fechadas umas as outras. O Estado policial
não sobrevive sem incitar as pessoas a terem medo, sem fazer com que elas
pensem que a polícia subindo o morro e sentando o dedo é a melhor forma de
combater o mal que nos assola.
O mal é
criado por aquele que se julga o bem, diria Jean-Paul Sartre em seu ensaio
sobre Genet. O cidadão de bem é uma figura egotista criada por forças políticas
as quais o transcendem em tempo e espaço e seu racismo e elitismo muitas vezes
não sentidos de forma sincera. O cidadão de bem é uma figura moldada pelo medo
que vê no mal uma ameaça a sua integridade e integralidade. Esse mal precisa
sumir agora e não há espaço para um debate muito amplo e profundo, porque esse
não é o interesse. A violência de certa forma serve bem a seus propósitos,
porque um debate social mais profundo pode acarretar em perda de privilégios e
ressentimento, como vemos em cenas de pessoas reclamando de que aeroportos
viraram rodoviárias.
Não há ainda
uma visão tão clara do que devemos e podemos fazer para resolver o problema,
mas é importante encará-lo. A literatura já há algum tempo coloca sua
contribuição a esse debate de um modo bem privilegiado. Afinal, o texto
literário mexe com a empatia do humano, coloca-o no lugar do outro, faz com que
sintamos uma situação de modo mais pleno do que um texto teórico faz. Nesse
sentido, há clássicos mais recentes como Cidade de Deus, de Paulo Lins, e
outros já mais antigos como Capitães da areia, de Jorge Amado, os quais devem
ser visitados e lidos por todos os que se consideram interessados na temática
tanto do encarceramento quanto das condições sociais da violência.
O romance de
Jorge Amado pode ser chamado de romance em forma de crônicas focando a vida de
meninos de rua e batedores de carteira da cidade da Bahia. Liderados por Pedro
Bala, os garotos moram embaixo de um trapiche e praticam todo tipo de peraltice
e crimes para sobreviverem à fome. Em alguns momentos, o livro parece um tanto
inverossímil mesmo para quem defende a causa de um tratamento mais humano aos
menores infratores, todavia no geral é muito bem escrito e já mostra uma série
dos elementos que tornariam a narrativa de Jorge Amado algo marcante na
história da literatura brasileira. A fluidez com a qual os fatos são narrados,
a presença das religiões de matriz africana e o carisma de personagens fazem
com que esse livro se torne mais tragável de ser lido, mesmo abordando temática
tão pesada quanto a dos jovens que cometem crimes para sobreviver.
Ainda assim,
temas mais espinhosos são abordados sem pudor, como a violência policial e os
diversos dilemas que os capitães da areia passam diante de suas vidas
miseráveis. A maioria deles foi abandonada ou perdeu suas famílias e viu na
violência uma forma de responder a todas as opressões sofridas e matar sua
fome. Muitos cidadãos de bem verão tal “apologia” como sentimentalismo ridículo
de quem nunca teve uma arma apontada para a cabeça, mas cada vez mais estudos
defendem as profundas relações existentes entre o pauperismo e as práticas
criminosas. Isso não significa que todo pobre cometerá crimes para sobreviver e
nas periferias a maioria das pessoas busca um caminho de trabalho duro e
honestidade.
Assim mesmo,
há um cruzamento óbvio entre práticas ilícitas e pobreza extrema e a ocorrência
de crimes como assaltos se revela maior em realidades desprovidas da mínima
dignidade. O foco em políticas públicas de direitos humanos básicos – inclusive
a literatura, para que então possamos falar em temas lindos como educação
integral – seria uma forma mais eficaz de combater o crime do que simplesmente
usar as forças policiais. Mas o Estado policial prefere alimentar o medo das
pessoas e a catarse do medo é vibrar com mortes de criminosos, mesmo que
inocentes morram no processo.
Há anos
testemunho nesses programas policiais o discurso do recrudescimento, inclusive
com a anulação de instrumentos normativos e jurídicos importantes sendo
defendida, como o Estatuto da Criança e do Adolescente. O Estado policial
fomenta a ideia de que se algo não dá certo então devemos eliminar a parte textual
que regulamenta dados fatos e não entender a fundo porque este ou aquele
problema ocorre. Mais prático é eliminar as pessoas ou mandá-las para um espaço
isolado da sociedade que garanta a proteção dos nobres cidadãos.
Estação
Carandiru, de Drauzio Varella, mostra o outro lado do que Jorge Amado mostrou
em seu célebre romance, não obstante o foco seja um público diferente, adulto.
Drauzio também escolhe um estilo mais próximo das crônicas para passar
dinamismo e leveza diante de temas mais pesados e fala de uma série de
experiências variadas dentro do espaço do Carandiru, dentro de São Paulo. O
massacre aqui ganha pouco espaço e é interessante como o autor capta o lado
humano de uma série de criminosos variados, mostrando que o “mal” é um lado
muito humano dos seres humanos e querer expurgá-lo colocando no outro é uma
estratégia falha e miserável.
As condições
da cadeia são terríveis e cada vez mais fica evidente no que Varella reproduz
que o sujeito ali é incentivado a piorar, o que paradoxalmente vai ao encontro
da defesa do discurso virulento do Estado policial. Afinal, sem esperança de
melhoras, os sujeitos saem dali para voltar ao crime e encontrar a morte de
maneira mais rápida e certa, isso se não a encontrarem nas próprias galerias do
presídio. Há uma clara limpeza étnica e de classe presente no processo, pois a
maioria dos vitimados por esse sistema carcerário é a camada preta e pobre de
nosso país.
No mês da
consciência negra que se finda amanhã evidencia-se ainda mais a necessidade de
se pensar as políticas de dignidade às camadas mais populares no sentido de
combate efetivo à violência. Os afetos focados no medo cega uma população
inteira para como estamos cada vez mais cedendo ao nosso egotismo e nos
trancando entre muros e cercanias para nos sentirmos protegidos e deixando a
cidade vazia, sem cultura e sem vida. Cada vez mais viramos seres presos em
nossas próprias prisões, usando redes sociais para compensar a falta de
interação e sentindo que assim estamos protegidos. A violência já se mostra nos
mais banais gestos de humor e brincadeiras e o grau de adoecimento da sociedade
já passou dos limites do assustador.
Muito disso
é responsabilidade de um Estado que incita ao medo, que usa uma mídia de
comportamento fascista a qual se preocupa em inocular cada vez mais o temor
como combustível de ações. Não quero dizer que é uma mera sensação andar pelas
cidades e sentir medo de uma bala ou qualquer outro objeto que nos fira. A
questão aqui é entender como combater efetivamente o fato social violência e já
ficou provado que os meios atuais ao invés de a combaterem fortalecem sua
existência, gerando mais ressentimento e pavor.
Encarar o
problema de frente, mesmo dentro do campo literário, já é uma forma de se
sentir mais livre diante do fato, pois a reflexão nos ajuda a sentir as coisas
de modo diferente e desse modo percebê-las por outros vieses. Penso que
obrigatoriamente passa por esse exercício de auto análise o enfrentamento
efetivo das causas sociais da violência em nosso país e de uma vida melhor que
a desse Estado policial que há tanto tempo já molda nossas formas de sentir a
realidade.
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