Uma temporada e meia no inferno: Um dia na vida de Ivan Deníssovitch


Por Joaquim Serra



O espaço em Um dia na vida de Ivan Deníssovitch (1962) é um peso importante para a compreensão da obra. O mesmo acontece em obras do mesmo segmento, como o monumental Contos de Kolimá, de Varlan Chalámov – este somou quase vinte anos nos campos –, Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, e o mais recente Estação Carandiru, do médico Drauzio Varella. Ivan Deníssovitch está inserido na tradição de obras acerca do cárcere russo, como o fez Dostoiévski em Recordações da casa dos mortos e Anton Tchékhov em Ilha de Sacalina, este com um profundo ideal humanista, considerou escrever sobre a condição dos prisioneiros para direcionar os olhos do mundo àqueles perdidos de humanidade.

Ivan Deníssovitch Chukhov cumpre os últimos anos dos oito a que foi condenado (o próprio Soljenítsin ficou detido por cerca de oito anos).  Só sabemos depois de muito como o protagonista foi pego e preso primeiramente em um campo do norte, o recorrentemente citado Ust-Ijma, um dos campos de corte de madeira nas margens do rio Petchora onde perdeu os dentes para o escorbuto, e depois fora levado ao campo “especial”.

Assim como em Contos de Kolimá, a presença do frio é lembrada já no início da narrativa. Quando ouvem o primeiro chamado do dia para início das atividades, o barulho atravessa as vidraças das janelas, “nas quais a geada se acumulara numa espessura de quase dois centímetros” (p. 5). Aqueles noventa primeiros minutos eram os poucos que pertenciam aos prisioneiros antes do trabalho.

Chukhov não se esquece – e o narrador faz questão de lembrar ao leitor – das palavras de seu primeiro chefe de turma – um tipo de coordenador que se responsabiliza pelo seu grupo de prisioneiros –, dizia ele: “Aqui, rapazes, vivemos sob a lei da selva” (p. 6). Chukhov está acostumado a essa lei e agora, já às portas da liberdade, não pensa no modo como poderia viver fora dali.  O chefe da turma 104 – a qual Chukhov pertence –, Tiúrin, era um homem já formado no campo, “era um verdadeiro filho da Gulag. Passara praticamente toda a sua existência em campos e conhecia-os em todos os pormenores” (p. 51).

Aquelas leis estavam na epiderme de Chukhov; como o melhor uso do calçado, que “não era sensato molhar as botas de manhã, pois, mesmo que corresse até à sua barraca, Chukhov não encontraria outro par para calçar” (p. 15), como o cálculo da ração diária para não morrer de fome, ou aquilo que não se diz para não ter a pena aumentada em dez anos.

Em contraponto ao já adaptado Chukhov, há outros prisioneiros recém-chegados que ainda não sabem das leis de clausura, o que pode resultar em sérios problemas para o coletivo. Essas leis tendem ao universal (é assustadora a semelhança como descrita em Estação Carandiru). Um desses novatos é o capitão, que pagará por seus excessos no fim do dia de trabalho – só no fim porque, como nos diz o narrador, o infrator não pode perder um dia sequer de trabalho.

Aquele espaço, os calçados furados, as roupas gastas, a marcha a toque de caixa pela neve grossa sob os olhos das sentinelas armadas e prontas para atirar, tudo acaba por impor sinais de aprendizados múltiplos, daí Varlam Chalámov dizer em uma carta de novembro de 1962 para Soljenítsin que “o campo é uma escola negativa” (p. 160).

O materialismo do cotidiano se impõe com força nos pensamentos dos prisioneiros, por isso, naquela manhã em que acompanhamos Chukhov, ele “economizava. Como não voltara à barraca, não retirara a sua ração de pão. Assim, comia sem ele a sua refeição. Comeria o pão mais tarde. Talvez ainda fosse melhor” (p. 21). Mas, ao contrário de guardar o pão para velhice, o condenado pensa no dia, na emergência da fome que pode assaltá-lo pelo cansaço da longa trajetória do dormitório até o local de trabalho, pelos poucos minutos de fadiga, e pelo trabalho árduo.

E Soljenítsin parece fazer questão de mostrar o pensamento prático de um prisioneiro através de seu narrador intruso quando ele comenta os horrores daqueles que abusam do poder: “aquele macaco olhava através da janela, tentando ver se alguém surrupiava alguma das suas preciosas chapas pré-fabricadas”(p. 94), diz o narrador quando Chukhov se aproxima do gabinete para entregar o alimento do chefe do grupo. Nesse momento os capatazes discutem sobre o filme Ivan, o Terrível, de Serguei Eisenstein e Chukhov ouve a conversa, mas é como se não estivesse ali. A cena subsequente aparece como uma contraposição; quando Chukhov sai do gabinete, encontra na neve “um pequeno pedaço de metal – um fragmento de serra” (p. 96). Chukhov não sabe ainda de sua utilidade, mas a recolhe por um senso prático, econômico, que sanaria algum dos muitos problemas que o cotidiano lhe impõe.



A escassez da ração se devia ao fato de que ela era calculada conforme o trabalho dos prisioneiros, mas não havia forma de calcular o peso real daquilo que recebiam. Os que queriam levar o seu naco de pão para o campo, tinham de colocá-lo junto aos dos outros e faziam uma marca com os dentes, mesmo assim “bons amigos envolviam-se frequentemente em disputas devido a esta malfadada situação, chegando por vezes a vias de fato” (p. 39).

O regulamento é claro: apenas dois podem ser dispensados por doença. Chukhov vai ao posto médico tentar dispensa. Mesmo que minta, é de se esperar que um prisioneiro o faça, mas Chukhov tem boa fama, não costuma mentir. O sinal é trocado dentro da prisão, “e agora sonhava em ficar doente” (p. 26), assim como vestígios de sua vaidade desaparecem: “o próximo banho era daí a três dias e barbear-se-ia então. Não fazia sentido que se metesse na fila à porta do banheiro. Para quem tinha ele de se pôr bonito?” (p. 26). Naquele dia Chukhov não conseguiria escapar porque o médico de plantão já dispensou dois homens. Ainda sentado no posto médico, ele escuta o sinal da chamada, “ainda sentia aqueles arrepios febris, mas a verdade era que não conseguiria escapar ao trabalho” (p. 27-8).

Os prisioneiros escutam as ordens de marcha, regras que quando não seguidas são pagas com a vida: “passo lento, mas firme. Nada de conversa. Conservem os olhos bem fixos à sua frente e as mãos atrás das costas. Um passo para a direita ou para a esquerda é considerado tentativa de fuga, e a escolta recebeu ordens de atirar sem aviso” (p. 44). Soljenítsin retrata aquilo que no ensaio “O que vi e compreendi no campo de trabalho” Chalámov escreve: “compreendi o que é o poder e o que significa um homem armado” (p. 158).

Naquele dia Chukhov trabalharia na casa das máquinas, mas, depois do almoço, assentaria tijolos. Procurava tirar satisfação do trabalho, por isso escolhia bem suas ferramentas e se dedicava – o que lhe rendia sempre uma boa quantidade de ração.

Os guardas, acompanhados por cães – “um dos cães mostrou os dentes como se se risse dos prisioneiros” (p. 43) –, vestiam roupas bem preparadas para o frio. A contagem de antes de sair para o campo é seguida até pelo tenente, pois “um prisioneiro é mais precioso que ouro. Se houvesse uma cabeça a menos, quando os prisioneiros ultrapassassem o arame farpado, a cabeça de um guarda tinha de substitui-la” (p. 42). Rumo ao campo, para além de seu perímetro, “o frio era intenso, acompanhado por um vento cortante, que picava o rosto de Chukhov, o qual se acostumara a todos os gêneros de privações” (p. 43).

No fim do trabalho havia uma nova contagem, “o que mais irritava nestas contagens e recontagens era que o tempo que se perdia pertencia aos zeks, e não às autoridades” (p. 129). Depois da contagem, os condenados ainda eram revistados. No dia que acompanhamos Ivan, um dos presos, ao fugir do trabalho, dispersou-se e dormiu em algum canto, para a fúria dos outros. O narrador não deixa de comentar a cena: “Os zeks [prisioneiros] tinham perdido um bom bocado da noite. Aquele maldito moldávio! Aqueles malditos guardas! Que vida desgraçada a de um prisioneiro!” (p. 137)

No fim do dia, “Chukhov adormeceu completamente satisfeito, feliz. Fora bafejado por vários golpes de sorte durante aquele dia” (p. 196). Naquele dia conseguira uma parte a mais da refeição, tinha de sobra um naco de pão e conseguira comprar um pouco de tabaco. E também, naquele dia, não tinha sido posto no xadrez.

O cotidiano em um campo de trabalhos forçados era esperado pelos leitores da revista Novi Mir. Em uma carta de Varlam Chalámov a Soljenítsin sobre a repercussão de Um dia na vida de Ivan Deníssovitch, diz ele: “três ou quatro pessoas, num intervalo de vinte ou trinta minutos, perguntaram: “É o número décimo primeiro?” – “Sim, o décimo primeiro.” – “É nesse número que saiu a novela sobre os campos de trabalho?” – “É, sim!” – “E onde conseguiu, onde comprou?” (p. 160).


Notas:
* As referências deste texto: Um dia na vida de Ivan Deníssovitch, de Soljenítsin, traduzido do inglês por H. Silva (Círculo do Livro) e Ensaios sobre o mundo do crime, de Varlam Chalámov, traduzido do russo por Francisco de Araújo (Editora 34).



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