Rudyard Kipling, diferente e singular

Por Antonio Lucas



Para Rudyard Kipling a vida era melhor compreendida se houvesse um livro no meio. Foi um autor exótico sem aceitar o exotismo como conduta. Um tipo tocado pela necessidade de escrever para ver melhor o mundo. As palavras foram o seu chão. E ele decidiu viver em pleno sol na literatura, contando histórias em quatro romances, em mais de 800 poemas, em inúmeros contos, centenas de cartas e em algumas memórias póstumas (como Something of myself'). 

Muito além de autor de O livro da selva, Kim e Intrepid Capittains, além dessa literatura de fantasia, além da fama e do dinheiro, há um homem marcado por profundas dores. Ainda aos cinco anos sofreu os maus-tratos de uma cuidadora: "Eu era espancado todos os dias... Comecei a ler tudo o que caía em minhas mãos, mas quando ela sabia que eu gostava disso mais que dos outros castigos, acrescentava-me a privação dos livros. de Foi então que comecei a ler às escondidas e consciente disso...", escreve em suas memórias.

Essa foi a origem de tudo: a deficiência de viver quando esse exercício parecia muito com difícil. Assim, ele levantou em sua casa um primeiro perímetro de alegria, com livros em mãos. Agora, muitos anos se passaram desde o nascimento de Kipling e há algo nele quase esquecido, quase icônico e muito desconhecido. Tem certo refinamento de aristocrático e controverso. Mas ele sempre teve o incentivo de leitores do meio mundo. 

Colonialismo inglês

Kipling deu seu primeiro suspiro em Mumbai, em 1865. Filho de um funcionário britânico de propensão fleumática designado para o Departamento de Educação da Índia como professor de desenho, cerâmica e escultura. Foram os dias febris do colonialismo inglês na Índia. É nesse ambiente de dupla velocidade que imprime a aventura colonial cresceu o escritor, criado com cuidado de puro-sangue com o qual eles se banhavam em leite.

Daqueles anos de império, ele ficou com um traço um tanto depreciável que George Orwell atacava com um humor ardente: "Profeta do imperialismo". E esses dardos pesaram em seu legado até se tornarem sombras numa lenda e numa literatura. Mas, algo estranho acontece com Kipling. Um de seus poemas, o intitulado "Se" foi escolhido pelos leitores britânicos como o favorito, o mais popular de sempre:

Se és capaz de manter a tua calma quando
Todo o mundo ao teu redor já a perdeu e te culpa;
De crer em ti quando estão todos duvidando,
E para esses no entanto achar uma desculpa;
Se és capaz de esperar sem te desesperares,
Ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
E não parecer bom demais, nem pretensioso;

Bom, Kipling é, além de tudo, um poeta. Possui no verso o poder que sai desfiado em prosa. Um escritor eficaz, sem dúvida, que se destacou na redação de um jornal, a Gazeta Civil e Militar de Lahore, o único jornal da região de Punjab, porta de entrada para o subcontinente hindu pela maioria dos invasores. Kipling tinha 16 anos. Ele sabia falar e escrever hindi. Entrou como revisor, leitor, de qualquer coisa. Publicou algumas crônicas e alguns contos. E sempre considerou esse pequeno jornal  seu campo de aprendizagem: "Eu não sabia de nada e meu chefe precisou me treinar. Não sei até que ponto meu aprendizado o fez sofrer, mas o que me tornei, o hábito que adquiri na verificação de fontes e no trabalho sem sair do escritório, devo isso ao meu chefe, Stephen Wheele." Mas ele também acabou desconfiando de jornalistas.

Estava empolgado com a transumância

Como repórter, Kipling andou por mil cantos da Índia. Ele a observou; a vivenciou; a amou. Mas sempre a partir de uma percepção e uma emoção influenciadas por sua ótica à maneira vitoriana. Por razões de espaço e bom gosto, Kipling entendeu que, uma vez testadas suas terras (e a Índia), era hora de se lançar ao mundo, talvez compulsivamente. Birmânia, Cingapura, Hong Kong, China, Japão e de lá para os Estados Unidos, onde desembarcou pela primeira vez em 1889, no porto de São Francisco.

Dessa expedição de muitos meses resultaram vários cadernos de apontamentos, alguns contos e um livro de viagens. Ele já era um sujeito incansável, excitado com a transumância, esse sonho exigido por toda viagem. Como no poema "Se":

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,
De sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se encontrando a desgraça e o triunfo conseguires
Tratar da mesma forma a esses dois impostores;
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas
Em armadilhas as verdades que disseste,
E as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas,
E refazê-las com o bem pouco que te reste;

Era um escritor consagrado, conservador, cético em relação às reformas sociais. Viajou para o Canadá e África do Sul. E, pouco a pouco, avançou nas suas idéias imperialistas; mesmo assim, dizia que "a democracia é um rebanho em movimento" ... "O socialismo é um sistema pelo qual um Estado estimula os preguiçosos a viver sem trabalhar". Desde a viagem ao Egito e ao Sudão trouxe a certeza de que "sem nós, os nativos não sairão da corrupção e da barbárie". Isso era principalmente Rudyard Kipling.

Ao mesmo tempo, rejeitou o título de poeta laureado, a Ordem do Mérito e o título de Sir. Não lhe agradava a pompa e circunstância dos reconhecimentos de governantes. Mas aceitou o Prêmio Nobel de Literatura em 1907. Foi o primeiro britânico a receber o galardão. E está entre os mais jovem dos vencedores: tinha 42 anos quando ganhou "em consideração ao seu poder de observação, originalidade, imaginação, idéias viris e um talento extraordinário para contar histórias". Naquela época, eles recompensavam até "idéias viris". Mesmo que faltasse algo do melhor. Do melhor de sua escrita. Em 1911, ele publicou o livro de poemas Recompensas e fadas, onde apareceu pela primeira vez seu poema mais conhecido - o já citado "Se".

A morte de seu filho

Rudyard Kipling já havia sofrido o golpe de ver sua filha de cinco anos morrer em 1899. Mas ainda faltava um último mais pesado. O escritor aclamado, lido, reconhecida entre as lista dos melhores e dos mais vendidos. Um Best-Seller antes dos Best-Sellers. Foi morar na Inglaterra. Da sua extensa biografia são destacáveis muitos momentos literários, mas ele próprio só se lembrará inevitavelmente de um momento vital. Em 1914, ele tem 50 anos. A Primeira Guerra Mundial está às portas. Seu filho é rejeitado como voluntário míope e mesmo assim pai conseguiu levá-lo para o front. O rapaz foi designado para o norte da França, onde ocorreu a batalha de Loos entre 25 de setembro e 14 de outubro de 1915. Em 20 dias, 50.000 soldados morreram. Entre eles, o tenente John Kipling.

O escritor não superou isso. Sua saúde que já estava debilitada entre num estágio que atinge com a mesma velocidade o seu gosto pela. Em Epitáfios da guerra escreveu: "Eles mataram meu filho / enquanto riam de alguma piada. / Eu gostaria de ouvi-la porque poderia ser útil para mim quando faltarem piadas". Previu mais tarde a Segunda Guerra Mundial. Acertou. E continuou viajando e escrevendo. A úlcera que o perseguia desde os 40 anos prestou seu  último serviço: derrubou-lhe na madrugada de 17 a 18 de janeiro de 1936. Suas cinzas estão recolhidas no Canto dos Poetas, na abadia de Wetminster, ao lado de Dickens e Thomas Hardy. E continuou a alimentar criadores, com os cineastas John Houston e Viktor Fleming. E Sinatra cantou um de seus poemas. Isso já é, exatamente, a glória.

* Este texto é uma tradução livre de "Kipling, extraño y peculiar", publicado aqui em El Mundo.

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