Rima simples por não ser centro, ser periferia
Por Wagner Silva Gomes
Marcelo
Peixoto, conhecido como Marcelo D2, integrante da banda Planet Hemp, tornou-se
um formador de opinião potente. Usando sua voz para além do rap, no Twitter suas
críticas às atrocidades cometidas pelo governo vigente ficaram conhecidas,
tendo o jornal Le Monde Diplomatique o procurado para o entrevistar sobre a sua
formação de opinião midiática. Neste ano de 2019 o rapper lançou seu último
álbum intitulado Amar é para os fortes, e com ele enveredou para o audiovisual
como diretor do filme homônimo.
Se parar para
pensar as rimas do Marcelo D2 são das mais significativas em toda a música
brasileira. Nelas já era possível ver sua inclinação para o audiovisual, como na música “Contexto”, do Planet Hemp: “Toca o seu terror Alfred
Hitchcock / evolução do rap, evolução do rock”. Além de mostrar o gosto pelo
audiovisual a referência ao diretor de Psicose colocado como o que toca o
terror, ou seja, que dá apenas o tom dos males sociais que estão presentes nas
cabeças conservadoras mostrando até aonde vai a sociedade dos filhos
superprotegidos, da mulher assediada no trabalho, servindo como chamariz dos
negócios, para ficar apenas no filme citado.
A evolução desse tom, tocado pelo
cineasta inglês, sendo ainda mais benéfica para a cidadania, seria o que
o rap faz, como uma evolução do rock, pedra primeira do ritmo na tomada da
consciência da necessidade de outras formas de sociabilidade, tornando a
estética de estranheza do rock uma forma mais familiar, coletiva, de lidar com
o outro, por exemplo, com a violência, com a negritude, com a linguagem fora do
padrão. Observe que a própria rima soante pobre de substantivo de nome próprio
com substantivo comum-próprio, pois rock além de uma rocha se trata de um
estilo musical, mostra que a pobreza é nobre dependendo da autoria, e o que é
comum também pode ser autêntico, dependendo de como se assume. “Toca o seu terror Alfred Hitchcock / evolução do rap, evolução do rock”.
Ainda sobre
a inclinação do D2 pelo cinema, já em carreira solo, no seu terceiro álbum de
estúdio, intitulado Meu samba é assim, na música “Um filme malandragem” o eu-lírico escuta a voz da sua consciência, seu superego, dialogando com ela que o
seu comportamento de afronta ao sistema, seu ego, fora do padrão recomendável
para a sociedade tradicional, é uma ação de empoderamento, e não
irá se deixar levar pela criminalidade (como a ação da protagonista assediada
que rouba o dinheiro do endinheirado que a assediou e foge), sabendo que ações
assim o irão prejudicar, ouvindo:
“(É isso que
tu qué pra tua vida parceiro/ fuma um e tira onda, encher o bolso de dinheiro/
Malandro que é malandro tem a cabeça feita/ e a tal história da procura da
batida perfeita?)
E dizendo:
Hum, uma hora dessa e apita a consciência/ Vários anos de barulho e tem que
mostrar competência/ Falar do que é que eu fiz?
Ouvindo: (É
você fez sim.../ A consciência dói, cê não vai se livrar de mim/ Malandragem
mesmo bebe duas e vaza/ Leva o respeito da rua e sempre o amor de casa)
E dizendo:
Mas quer saber?/ Nessa eu fui esperto/ Tenho amor e respeito/ Eu tô no caminho
certo”
Na letra “É preciso lutar”, do mesmo álbum da música anterior, o rapper diz: “batalhador
quando os flash’s dão pra mim/ Eu não corro/ Nunca se esqueça/ Que eu sou cria
do morro”. Ajustando o olhar do status social na rima rica do verbo correr com
o substantivo morro o artista choca o ouvinte, como uma fotografia de Sebastião
Salgado ou Pierre Verger, mostrando que na luz de seu flash está a luz da
violência periférica dos tiros de revólver, por isso sua fotografia vai ser
totalmente autoral. Se ele não caiu com esses tiros, os ouvindo e vendo e
ficando tranquilo, com o flash da fama vai ficar mais tranquilo ainda, se
saindo bem melhor na foto, pois lembrando do seu esforço para ter destaque como
um trabalhador da música, ele não esquece o flash que o fez ser artista.
Sendo só
aparentemente simples as rimas desse poeta do rap se fazem referência. Observe
a rima a seguir, de um de seus últimos álbuns, o Eu tenho o poder: “Isso não
é viagem, já disse Sabotage,/’ Rap é compromisso’ eu faço disso a minha
imagem”.
Para este
rapper a imagem do lugar é que deve viajar. Se isso não for feito com compromisso se estará sabotando o lugar.
Pode-se viajar sem se descuidar do lugar, ou seja, sem sair dele, ou pode-se
ficar nele o fazendo viajar. Ao dar tal importância ao seu conteúdo ele vira um
eixo importante do mundo, por suas qualidades de atrito que, todos que entram
em contato, de alguma maneira, viajam. Daí não importa se você viajar ou não.
O
importante é a viagem do lugar em torno do seu próprio eixo e do mundo. Como
escreveu e disse o rapper Inquérito: “O rap é tipo Galileu e sua teoria/ Provou
que o mundo não é centro, ele é periferia”. Ainda que, como Galileu tenha tido
que esconder a descoberta do heliocentrismo, muitas pessoas vivam
escondendo seu valor periférico, o rapper Marcelo D2 ousou, defendendo o seu
pensamento em tempos de governo bolsonaro. Daí a citação de outro rapper que
defendeu o seu pensamento até o fim, o Sabotage, ser tão reverente. Isso é
Sabotage com o sistema. Se Sabotage como rapper importou, importou mais a sua
ação, seu sistema de pensamento. Sabotage não morreu: “isso não é viagem”.
Se
os poetas um dia pensaram na imortalidade, dos helênicos aos românticos, essa
forma realista é uma das mais pesadas. Daí o som do rap ser o peso da gravidade
ou a sensação da falta dela. Um exercitar-se constante que ao não se dar pelo
exercício já se transformou o jeito de se sentir o mundo. “Tenho a determinação
de Dr. King e a polêmica de Spike Lee/ Eu tenho a luta de Malcolm X e a técnica
de Kubrick”, diz o rapper na música “Prelúdios e rimas”, do seu último álbum, em
rimas pobres de nomes próprios, referências à negritude sem violência de Martin
Luther King Jr. junto com a crítica do dia-a-dia opressivo ao negro, mostra que a negritude resistente muitas vezes tem de usar da violência para
sobreviver; e o mundo pensado por Malcolm X de uma união negra mundial seria
como a tomada do universo, como na viagem espacial do filme 2001 - Uma odisseia
no espaço, do diretor referido.
Quer outro
sistema? A onda é por aí. A questão é saber manter o ritmo.
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