Olga Tokarczuk, a escritora questionadora do establishment polonês
Por Tomasz
Pindel
O Prêmio
Nobel de Literatura para Olga Tokarczuk é, do ponto de vista polonês, uma
surpresa, mas – o paradoxo vale a pena – uma surpresa esperada. Na Polônia,
tínhamos consciência que ela não é apenas uma autora amplamente lida, apreciada
e amada por muitos leitores, mas também que ela é simplesmente uma grande
escritora com uma presença crescente no mundo.
Tokarczuk
(1962) pertence à geração de escritores que apareceram nos anos 90 do século
passado, e não é apenas um detalhe biográfico. Deve-se ter em mente que, em
1989, na Polônia, houve uma grande mudança no sistema político: o país deixa a
era do “real socialismo real” e a dependência da União Soviética, inicia-se na
democracia, no capitalismo e a cultura vive uma reviravolta enorme. O antigo establishment
literário cai no esquecimento, mas os novos autores quase não interessam a
ninguém. O público leitor compra maciçamente e devora literatura popular
anglo-saxônica, todos esses thrillers, romances policiais, romances de
terror e fantasia até então banidos por serem “imperialistas”. Os autores
jovens publicam em editoras pequenas e independentes, leia: sem distribuição ou
promoção.
Mas
Tokarczuk captura a atenção dos leitores quase desde o início. Em 1993, ele
estreou com Podróż ludzi księgi (A viagem do povo-livro, na tradução
direta do título em inglês), um romance de aventura, mas cheio de uma
sensibilidade muito nova; dois anos depois, ela publicou E. E., uma
história de corte psicológico; e em 1996 aparece Prawiek i inne czasy (Primeval
e outros tempos), seu primeiro grande sucesso: nos tempos em que os autores
nacionais praticamente não vendiam, Tokarczuk produz um best-seller, elogiado
em uníssono por todos os críticos.
Para um
leitor latino-americano, Primeval e outros tempos pode parecer muito
próximo, pois é uma versão polonesa do realismo mágico. É a história de um povo
em algum lugar da Polônia – ou simplesmente da Europa Central? –, onde as
pessoas vivem suas vidas e, ocasionalmente, a grande (e perigosa) História passa
por lá. Este sabor latino-americano não é acidental. Tokarczuk foi educada como
leitora nos anos 70 e é precisamente quando o fenômeno do Boom chega à Polônia.
Na obra de muitos autores desta geração, encontraremos facilmente as marcas de
grandes mestres do gênero. No caso de Olga, são especialmente Gabriel García
Márquez e Julio Cortázar, cujas influências literárias são vistas em vários contos
da escritora. Mas não se trata de uma simples imitação e sim uma inspiração, a
maneira de tratar questões locais universalmente.
O romance
teve um enorme sucesso no país – mais do que merecido, porque é uma irreparável
– e logo, muito rapidamente, as traduções começaram a aparecer. Isso também não
deveria nos surpreender, já que se trata precisamente do tipo de literatura facilmente
exportável: fala da realidade e das experiências polonesas, mas de tal maneira
que qualquer leitor a entende e tira proveito dela. A partir desse momento,
Tokarczuk se torna uma das autoras entre os contemporâneos poloneses mais
traduzidas e publicadas no exterior. Nesse sentido, apenas os grandes clássicos
como Stanislaw Lem ou Ryszard Kapuscinski a superam.
Dois anos mais
tarde, Tokarczuk – como se vê, sempre foi muito trabalhadora – publicou outro
romance: Dom dzienny, dom nocny (Casa de dia, casa de noite). É aqui
que encontramos uma característica muito importante de sua criação: ela
pertence ao tipo de escritores que nunca estão satisfeitos com o que já
alcançaram, sempre procuram novos caminhos e desafios, sempre se reinventam.
Após o sucesso do romance anterior, nada seria mais fácil do que produzir obras
mais ou menos semelhantes e desfrutar da popularidade e das vendas. Mas o novo
romance é muito diferente, parece uma mistura de várias histórias, algo entre
ficção e não-ficção, um conjunto surpreendente, mas muito bem-sucedido. A
narrativa – ou melhor: as narrativas – está situada na terra natal da autora,
uma região sudoeste do país, perto da cidade de Wroclaw. É uma terra com uma
história complicada: antes da Segunda Guerra Mundial pertencia à Alemanha, com
uma identidade muito mestiça – e Tokarczuk, sempre contando histórias
fascinantes, constrói um complexo retrato desse território.
Mas há
algumas questões que sempre voltam, às quais a autora é fiel desde o início e
que tem a ver com sua personalidade e suas convicções. As mulheres e a
perspectiva feminina sempre aparecem – algo não muito difundido na cultura
polonesa do século XX, muito dominada pelos homens; o tema da natureza, a
relação dos seres humanos com os animais, a sensibilidade por outras formas de
vida; uma espiritualidade, mas longe do típico catolicismo; e um olhar que põe
em dúvida e questiona algumas convicções e pontos de vista muito difundidos:
ela é uma autora que incomoda, de maneira muito sutil, faz ver as coisas a
partir de outro ângulo, faz duvidar delas.
Com o tempo,
Tokarczuk não para. Publica uma coleção de contos (muito bem construídos): Gra na wielu bębenkach (Tocando
muitos tambores, 2001); é aqui que aparece uma de seus textos mais
famosos “O professor Andrews em Varsóvia”, que conta as aventuras de um
psicólogo americano que chega à Polônia em pleno estado de guerra em 1981. De
tempos em tempos, a escritora volta às narrativas curtas e 17 anos mais tarde
publicou outro volume de contos. Publicou ainda um ensaio literário sobre um
romance clássico do realismo polonês – A boneca, de Boleslaw
Prus. Ao participar de um projeto editorial internacional no qual vários
autores escrevem suas versões de mitos escreve Anna In nas catacumbas
(2006), sua versão pessoal do mito da deusa mesopotâmica Ishtar. Na época, o
romance não foi recebido com muito entusiasmo, mas se tornou muito citado e
inspirador entre outros criadores: em 2018, por exemplo, Daniel Chmielewski publicou
a HQ de Eu, Nina Szybur e também serviu à ópera Ahat Ili. A
irmã dos deuses, para citar dois trabalhos baseados em Anna In. O
libreto da ópera foi escrito pela própria autora e os textos aparecem em várias
línguas não europeias, como o náhuatl.
Mas os
romances continuam sendo o forte de sua criação. Em 2007, escreveu Os vagantes,
um romance que se assemelha formalmente à Casa de dia, casa de noite –
uma rede de histórias magistralmente tecidas, com o tema geral anunciado pelo
título. Os vagantes eram uma seita russa, cujos membros acreditavam que, se
alguém para, fica à disposição do diabo, por isso eles sempre devem vagar. Para
Tokarczuk, a humanidade de hoje se comporta como estes russos: nunca para,
sempre vagueia, viaja e se move. A autora sabe muito bem do que falava; ela
mesma é uma vagante, sempre na estrada, movendo-se pelo mundo, de festival em
festival, lutando por um tempo para escrever.
E vieram seus
dois livros mais diferentes. Numa ocasião, a autora confessou que Sobre os
ossos dos mortos nasceu um pouco pelo pragmatismo. Cansada após a escrita
de Os vagantes e já envolvida nas pesquisas para o próximo trabalho, se
deu conta de que o contrato editorial exigia mais um romance. Bem, pensou, nada
é mais fácil do que escrever um romance policial. No final, não foi tão fácil,
mas o resultado saiu maravilhosamente: Sobre os ossos dos mortos conta a
história de uma mulher que para muitos é uma “velha louca”, porque se importa
muito com os animais. Tokarczuk entra aqui totalmente na questão ecológica, colocando
em relação oposta o mundo masculino de homens para os quais o poder reside na
caça e fiéis ao mundo mundo feminino, próximo à natureza, mais livre.
O ano de
2014 trouxe consigo o maior romance de Tokarczuk – pelo menos em extensão, já
que tem mil páginas: Os livros de Jacob. Uma grande narrativa histórica
com a personagem central de Jakob Frank, criador de uma seita judaica
messiânica do século XVIII. A vida aventureira de Frank permite a autora não
apenas contar uma parte bastante esquecida da história da Europa, mas refletir
sobre alguns axiomas que muitos de nós compartilhamos. É uma controvérsia com
uma visão da história nacional ou nacionalista, entendida como uma cadeia de
reis e batalhas. Este romance foi um grande êxito literária que deu Tokarczuk o
prêmio Nike, o mais prestigiado na Polônia, mas também a colocou no mapa das discussões
sobre os crescentes conflitos políticos.
Aqui, na
Polônia, temos muito orgulho de ser um país que mesmo sendo uma potência não
possuiu colônias, não conquistou outras nações e foi muito tolerante.
Tokarczuk, ao receber o prêmio, comentou que a história do país também tem suas
partes obscuras, que o que a nobreza polonesa fez com os camponeses do leste do
país não se diferencia muito da escravidão – em suma, era um convite para
repensar certas dogmas nacionais A reação da direita nacionalista foi feroz.
Não me atrevo citar as palavras que alguns proferiram, mas Tokarczuk de repente
se tornou a inimiga pública desse lado político, atualmente no poder. Portanto,
não é por acaso que as palavras de felicitações do atual ministro da Cultura
pelo veredicto da Academia Sueca não tenham sido tão efusivas.
Tokarczuk se
inscreve claramente nesse conflito ideológico que existe atualmente na Polônia
e, é claro, não apenas aqui. Mas o seu não é um ativismo típico; apenas muito
raramente Tokarczuk faz declarações pessoais, uma vez que prefere falar através
dos livros – embora em suas primeiras declarações após o anúncio do Prêmio
Nobel, encorajou seus compatriotas a votarem nas eleições no dia 13 de outubro,
e está claro contra quem ela votará. A autora insistiu repetidamente que a
literatura é a linguagem mais universal e profunda que temos.
* Este texto é uma tradução livre de "Olga Tokarczuk: la escritora incómoda del establishment polaco", publicado aqui, em El Universal.
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