O supermacho, de Alfred Jarry



Por Pedro Fernandes



O título do romance de Alfred Jerry dificilmente não levará o leitor ao termo utilizado por Nietzsche para designar o que ele compreendia como um modelo ideal de homem capaz de com ele elevar toda a humanidade. O supermacho foi publicado em 1902 e o filósofo alemão havia morrido dois anos antes; logo, as relações não serão gratuitas, se considerarmos o impacto que foram as ideias do autor para o pensamento, além das evidências um tanto óbvias do romance. Para Nietzsche, o super-homem não poderia se unir a outro ser humano que não fosse igualmente superior; o amor é impedimento ao bom senso. Neste homem, de educação eugênica, no sentido de melhoria da condição humana, corpo e alma aprenderiam a obedecer; o super-homem seria, por fim, aquele capaz de se elevar além dos limites estabelecidos pela normalidade.

Quem tiver lido o romance do escritor francês, logo poderá recuperar a sentença de André Marcueil, o supermacho, segundo o qual “Fazer amor é um ato sem importância, já que se pode repeti-lo indefinidamente”; ou recuperar a estranha competição a que se submete outras cinco personagens à base de um composto capaz de suprir todos os limites humanos uma bicicleta que venceria a corrida de um trem em alta velocidade; e o encontro casual entre o protagonista da narrativa e a sedutora Ellen para ultrapassar na prática o sentido de uma sentença proposta por Teofrasto sobre os limites do homem para o sexo.

Mas, o leitor também não deixará de perceber, a começar pelo próprio título da obra, uma ironia mordaz sobre o protótipo nietzschiano. É que se André Marcueil está acima dos demais por superar os limites colocados em questão, não encarna, fisicamente, e tampouco espiritualmente, as condições do super-homem, constituindo-se, se insistirmos nessa relação, numa completa farsa: basta compreender como sua condição é colocada à prova e a necessidade de se revelar outro, ou ainda, desconfiar que o absurdo das situações podem apenas ser consideradas elucubrações imaginárias para conceitos cujos sentidos só se mostram ativamente enquanto pensamento e não como entidade do real. A expressão nietzschiana é um exemplo; assim, a tentativa de prová-lo é já uma operação cômica.

A escolha para tanto, não é gratuita. Alfred Jarry elege como protagonista de seu romance um homem de trinta anos e estatura média que “ele parecia gostar de diminuir ainda mais ao encurvar os ombros.” E acrescenta, na primeira descrição de Marcueil: “Os pulsos, finos e tão peludos que lembravam à perfeição seus esguios tornozelos evocando em toda a sua pessoa uma fragilidade notável, pelo menos a julgar por aquilo que se via. Falava baixinho e devagar, como que preocupado em controlar a respiração. Se possuísse uma licença de caça, sem dúvida se leria na descrição física: queixo arredondado, rosto oval, nariz comum, boca comum, compleição comum... Marcueil encarnava tão bem o tipo do homem comum que, na verdade, isso o tornava extraordinário.” O que o diferenciará dos demais é – e aqui se justifica a preferência de Jarry, qual Rabelais pelos baixos instintos – sua estreita parecença com o deus grego Priapo, qualidade que reluz no termo que o designa: supermacho. Isto é, não há quaisquer idealismos na figura criada por Alfred Jarry, uma vez que André Marcueil se configura num instrumento capaz de desconstruir e portanto revelar tais idealizações.

O supermacho está profundamente marcado pela cosmovisão vanguardista do seu autor, assumidamente simbolista, pela reiteração do irracional, do onírico, do maravilhoso e pela penetração entre os interiores considerados à sua época imorais e obscuros, como a sexualidade. Mas, este é um romance de igual natureza, futurista, se observarmos o impasse entre o ano de sua publicação e o tempo ficcional que o constitui, além, é claro, da constante reiteração, ora enaltecendo ora questionando, em relação ao homem, os poderes da máquina.

Destaquemos os dois momentos evidenciados nesta leitura, isto é, a corrida das dez mil milhas e os dias intermináveis de sexo entre Marcueil e Ellen Elson. Esses episódios podem ser equiparados no complexo jogo de simbologias e interditos propostos por Jarry, uma vez que em ambos prevalece certa natureza da superação do macho: num, o homem desafiado pela máquina se percebe superior a ela; e noutro, o homem é entrevisto como máquina. Naquele, a superioridade é revelada pela condição pensante – o trem, revestido dos mesmos contornos do trem em A besta humana, é sabotado pela mesma substância que anima o homem. Neste, a repetição, dada a insaciedade do prazer, transforma os corpos ao limite de suas condições.

A competição sexual, assistida cuidadosamente pelo Dr. Bathybus, nos favorece pensar como prova para a primeira constatação evidenciada pela cobaia no início do romance, formulação que antecipa, pela força desconcertante de sua afirmação, certa compreensão psicanalítica sobre o amor. Simbolicamente, reanima-se a hipótese sobre a falta e o desejo. O que se designa como falta diz respeito a uma perda original, que pode ser, no caso do sexo, de uma satisfação original; seu permanente anseio de retorno é a força motora do desejo. Assim, todo desejo é repetição cada vez mais esvaziada de sentido; segui-lo é encontrar com a morte. Em todos os sentidos, essa experiência de Bathybus reafirmará isso.

Mas, que sentidos podemos tirar numa relação entre a corrida de dez mil milhas e a releitura prática, chamemos assim, da tese de Teofrasto, além da incompatibilidade homem-máquina? Por mais que André Marcueil, o transfigurado indiano, encontre uma alternativa verdadeira para o evidenciado pela reflexão, uma das respostas que encontrará é da falibilidade do corpo pela repetição. Nesse sentido, não é apenas a evidência óbvia da incompatibilidade homem-máquina o que Alfred Jarry encontra com esse romance – tão bem postulada no capítulo designado como “A máquina amorosa”. É sim a intersecção homem Ω máquina: a natureza de ambos só expansível ao limite do próprio homem e o da natureza, respectivamente; os dois estão presos na mesma redoma feita de repetições e, por isso, condenados à falibilidade.

A escolha por revisitar o tema do amor não é gratuita. Como a máquina, essa invenção humana é também paradoxal: o amor mantém e apaga a falta viva do desejo; a máquina supre e mantém a falta viva da necessidade. O amor se constitui, ao menos para boa parte do Ocidente moldado na cultura cristã, numa potência transformadora de tudo, do homem e da civilização; é combustível do super-homem. Pensemos em Jesus. Seu fracasso, então, aponta para a falibilidade de tudo. A ousada conclusão de moldes decadentistas se reveste de uma atualidade sem precedentes, principalmente, se observamos na predominância e dependência da máquina no nosso tempo e na negação e destituição do homem, convertido agora em número, esse elemento do encanto de Marcueil, em força fátua.

Assim, a ousadia de O supermacho não é vista apenas na força estilística que o mantêm mais de um século depois jovial e futurista; é na maneira original como pensou um modelo de civilização que foi, sorrateira e permanentemente, substituindo as matrizes que nos determinam enquanto humanidade por uma verdade outra sustentável apenas numa relação de dependência para com um mundo da técnica, todo ele feito de possíveis. Ainda não alcançamos o velho sonho, que parece se afastar a cada dia para um horizonte mais distante, de uma máquina capaz de nos elevar para além das leis divinas. Também é o caso de, toda que vez que nos aproximamos desse limite, antes que ele se afaste, se levante contra nós certa ameaça e esta por vezes nos obriga a retroceder. Esse impasse parece eterno (e que seja!) mas Alfred Jarry fez dele parte como o olho sagaz capaz de despertar para os desvãos dessa possibilidade continuamente adiada. E, como esperado, os resultados não são satisfatórios nem favoráveis para nós.



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