O prêmio literário pela recusa de prêmios literários
Por Ursula K. Le
Guin
Jean-Paul Sartre, um dos que recusaram o Prêmio Nobel de Literatura |
A primeira
vez que ouvi sobre o Prêmio Sartre foi através de “NB”, a verdadeiramente
agradável última página do Times Literary Supplement, assinada por J.C. A fama
da premiação, nomeada em honra do autor que recusou o Nobel em 1964, está ou
deveria estar, de qualquer forma, crescendo rápido. Como escreveu J.C na edição
de 23 de novembro de 2012, “Tão elevada é a condição do Prêmio Jean Paul Sartre
por Recusa de Prêmio que escritores por toda a Europa e América estão
rejeitando prêmios com a esperança de serem nomeados para um Sartre”.
Recém-listado
para o Prêmio Sartre é Lawrence Ferlinghetti, que recusou uma premiação de
poesia de cinquenta mil euros oferecida pela divisão húngara do PEN¹. A
premiação é financiada em parte pelo repressivo governo húngaro. Ferlinghetti
educadamente sugeriu que eles usassem o prêmio monetário para estabelecerem um
fundo para “a publicação de autores húngaros cujos escritos apoiam a liberdade
total de expressão”.
Não consigo
evitar especular quão legal teria sido se Mo Yan tivesse usado parte de seu
Prêmio Nobel para estabelecer um fundo para a publicação de autores chineses
cujos escritos apoiam a liberdade total de expressão. Mas isso parece
improvável.
A razão de
Sartre para a recusa era consistente com sua recusa em se juntar à Legião de
Honra² e outras organizações semelhantes, e característica do difícil e
contrassugestionável existencialista. Diz ele: “Não é a mesma coisa se assino
Jean-Paul Sartre ou se assino Jean-Paul Sartre, Prêmio Nobel. Um escritor deve
recusar ser convertido em uma instituição.” Ele, é claro, já era uma
instituição, mas valorizava sua autonomia pessoal. (Como ele reconciliou esse
valor com o Maoísmo não me é claro). Ele não deixava que as instituições se lhe
apropriassem, mas se juntara a revoltas e foi preso por desobediência civil nas
manifestações de rua em apoio às greves de maio de 1968. O presidente De Gaulle
rapidamente o perdoou, com a observação esplendidamente gaulesa de que “não se
prende Voltaire”.
Eu queria
que o Prêmio Sartre para Recusa de Prêmios pudesse ter sido chamado de Prêmio
Boris Pasternak, em homenagem a um de meus verdadeiros heróis. Mas isso não
seria apropriado, já que Pasternak não exatamente escolheu recusar seu Nobel de
1958. Ele teve de fazê-lo. Se tivesse tentado aceitá-lo, o governo soviético o
teria aprisionado de pronto e com entusiasmo, enviando-o ao silêncio eterno em
um gulag na Sibéria.
Eu recusei
um prêmio uma vez. Minhas razões eram mais mesquinhas que as de Sartre, embora
não inteiramente dissonantes. Foi nos dias mais agudos e insanos da Guerra
Fria, quando mesmo o pequeno planeta Esseff estava politicamente dividido
contra si mesmo. Minha noveleta “The Diary of the Rose” venceu o Prêmio Nebula
da Science Fiction Writers of America. Na mesma época, a mesma organização
destituiu o romancista polonês Stanislaw Lem de sua filiação honorária. Havia
um considerável contingente de membros partidários da Guerra Fria, que pensavam
que um homem que vivera sob a cortina de ferro e era indelicado sobre a ficção
científica norte-americana deveria ser um rato Comuna que não tinha nada que
ver com a SFWA. Alegaram qualquer tecnicidade para privá-lo de sua filiação e
insistiram em aplicá-la. Lem era um homem difícil, arrogante, por vezes
insuportável, mas um autor corajoso e de primeira categoria, escrevendo com
mais independência de espírito do que parecia ser possível na Polônia sob o
regime soviético. Eu estava muito irritada com a injustiça do reles insulto que
a SFWA lhe oferecera. Eu desisti de minha filiação e, sentindo que seria
desavergonhado receber um prêmio por uma história sobre intolerância política
de um grupo que acabara de demonstrar intolerância política, evadi-me da
competição do Nebula pouco antes que os vencedores fossem anunciados. A SFWA entrou
em contato para implorar que não retirasse meu texto, uma vez que ele, de fato,
havia vencido. Eu não podia fazer isso. Então – com a perfeita ironia que
aguarda qualquer um que faça uma pose nobre em um terreno moral elevado – meu
prêmio foi para o segundo colocado: Isaac Asimov, o velho cacique dos Guerreiros
Frios.
O que
relaciona minha pequena recusa com a grande de Sartre é a ideia de que aceitar
um prêmio de uma instituição é ser cooptado, incorporado por ela. Sartre
recusava isso em termos gerais, enquanto eu agi em protesto específico. Mas
simpatizo com sua desconfiança de se permitir ser identificado como outra coisa
que não ele mesmo. Ele sentia que o enorme rótulo SUCESSO que o Nobel cola na
testa de um autor acabaria, como de costume, por esconder seu rosto. Tornar-se
um “Nobelista” adulteraria sua autoridade como Sartre.
O que,
naturalmente, é o que o maquinário comercial do vendável e premiável
precisamente busca: o nome como produto. O infalível carimbo de sucesso comerciável.
O Laureado do Nobel Tal-e-Tal. O autor best-seller Isso-e-Aquilo. O trinta
semanas na lista de mais vendidos do New York Times Fulano. Jane D. Ganhapulitizer...
John Q. MacArthurgênio...
Não é o que
as pessoas responsáveis por estabelecer as premiações querem que elas façam ou
signifiquem, mas é assim que são usadas. Como forma de honrar um escritor, uma
premiação tem valor genuíno, mas o uso de prêmios como manobra propagandística
pelo capitalismo corporativo, e às vezes como chamariz político pelos premiados,
comprometeu seu valor. E quanto mais prestígio e valor tem um prêmio, mais
comprometido ele é.
Apesar
disso, estou contente que José Saramago, um entusiasta marxista bem mais fervoroso
do que Sartre, achou propício não recusar o Prêmio Nobel. Ele sabia que nada,
nem mesmo o sucesso, poderia comprometê-lo, e que nenhuma instituição poderia
convertê-lo nela mesma. Seu rosto foi o próprio até o fim. E, apesar das muitas
e bizarras seleções e omissões do comitê, o Prêmio Nobel de Literatura retém
considerável valor precisamente porque é identificado com escritores como
Pasternak ou Szymborska ou Saramago. Ele traz ao menos um tremeluzir refletido
de seus rostos.
Do mesmo
modo, creio que o Prêmio Sartre pela Recusa de Prêmios deveria ser reconhecido
como uma premiação valiosa e oportuna, e, além disso, consideravelmente segura
e capaz de permanecer intocada pela exploração. Gostaria que alguém realmente
desprezível me conferisse um prêmio para que eu pudesse concorrer a um Sartre.
Notas:
¹ O PEN [Poets,
Essayists and Novelists] é um clube internacional de escritores fundado em 5 de
outubro de 1921 pela escritora Catherine Amy Dawson e que tem por objetivo
difundir a literatura, promover liberdade de expressão e construir uma
comunidade internacional de escritores.
² A Legião
de Honra é um prêmio criado por Napoleão Bonaparte em 1802 e atribuído
anualmente a cidadãos franceses de todas as profissões. Dada sua abundância, o
prêmio não costuma ser levado em alta conta por escritores e intelectuais. Além
de Sartre, outro famoso escritor a recusar o prêmio foi Albert Camus.
* O texto
acima foi extraído de “No Time to Spare: Thinking About What Matters”, de Ursula K. Le Guin, publicado em 2017. Tradução
livre de Guilherme Mazzafera do artigo publicado no The Paris Review em 6 de
dezembro de 2017.
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