O mar, o mar, de Iris Murdoch
Por Pedro
Fernandes
“Se existe um
tormento mental inútil maior do que o do ciúme, este é, talvez, o remorso.
Mesmo os sofrimentos de uma perda podem ser menos dolorosos; e, naturalmente,
essas duas agonias se aliam, como agora acontecia comigo. Digo remorso, não
arrependimento. Creio que nunca senti arrependimento de forma pura; talvez ele
não exista em forma pura. O remorso implica a culpa, uma culpa sem remédio nem
esperança, para cuja lancinante mordida não há cura.” A constatação de Charles
Arrowby – o narrador de O mar, o mar – pode muito bem servir de síntese
para a longa narrativa que nasce no intuito de ser um livro de memórias e finda
no que ele próprio designa, num dos vários arroubos metaficcionais, como uma novelesca
autobiografia.
Ciente da
falibilidade das formas literárias e mesmo da inexistência de uma que assim possa
designar sua escrita, poderíamos pensar na obra imaginada por essa personagem
como um projeto fadado ao fracasso, como aliás, parece ser a determinante para,
na via contrária, o sucesso da obra que leitor tem em mãos. Queremos com isso
designar que a riqueza do trabalho criativo de Iris Murdoch reside na engenhosidade
com que constitui seu romance. Tal engenho remonta às bases da arte romanesca pela
maneira como absorve e retrabalha no interior de suas fronteiras muito bem
determinadas uma variedade de estamentos textuais e de vozes; isto é, pratica a
escritora o que Mikhail Bakhtin chama de dialogismo e polifonia na caracterização
da obra de Dostoiévski, caracterização esta que leva o pensador russo a
estabelecer uma distinção do autor de Crime e castigo entre os
romancistas de seu tempo.
E, porque
citamos en passant esse escritor, cabe esclarecer que a constituição da
consciência de Charles Arrowby nada deixa a dever as dos sujeitos
dostoiévskianos. Obviamente que, por razões mais fundamentais para o resultado
dessa composição, o leitor mais atento
notará que a natureza do protagonista de Iris Murdoch é genuinamente
shakespeariana; o que, afinal, não será se distanciar totalmente da primeira
relação, visto que, se considerarmos o rol de questões suscitadas em figuras
como Hamlet, por exemplo, não deixamos de compreender uma linhagem na qual se
filiam por correspondência um Raskolnikov e um Arrowby. (Para efeito de
curiosidade: a personagem de O mar, o mar é um figurão do teatro e
amante da obra de Shakespeare – traço que, junto à natureza dessa personagem,
nos leva a enxergar melhor a paixão com que Harold Bloom se referiu à
literatura da escritora inglesa. No final do romance, de volta a Londres,
reluta ir ao teatro rever uma aclamada encenação de Hamlet, figura com a
qual guarda profundas semelhanças).
As relações
mais estreitas entre o romance de Iris Murdoch e a teatro de Shakespeare não
redundam em Hamlet; obviamente, as semelhanças mais à vista são com A
tempestade. É possível enxergar em Charles Arrowby um Prospero que abjurou
da magia dos palcos para se tornar uma espécie de eremita, algo que só
parcialmente observará no reconhecimento duvidoso sobre a pureza do primo
James, este sim que assume-se qual o Duque de Milão na tratativa de trazer o
diretor de teatro à vida com seus truques de manipulação aprendidos numa
possível vida ascética entre tibetanos. Além disso, é possível sublinhar uma
sorte de coincidências entre essa obra do bardo inglês e o romance em questão:
as tentativas de Arrowby de alçar sua amada ao posto passado e sua confusão
como uma bruxa que o enfeitiça – reiteradas vezes, ela é assim tratada pelos amigos
do narrador e descrita por eles como mulher barbada, uma velha desprovida de
beleza; e, claro, as histórias de vingança, os amores mal resolvidos, as
conspirações oportunistas, e uma cruel expor acerca das profundezas dos baixos
instintos do homem em contraponto com as aspirações mais etéreas.
A obra
fracassada de Charles, uma personagem mergulhada entre uma loucura real e uma
loucura fingida, um diapasão entre o sofrimento fervoroso e o ódio opressivo,
responde ainda por manutenção na ordem da própria forma literária da sua
própria existência, mesmo que parte de sua prepotência o impeça de observá-la
desse ângulo. No auge de sua fama no teatro, Arrowby deixa a vida agitada em
Londres para se isolar de todos num vilarejo no litoral da Inglaterra. Detalhista,
encontramos com ele aparentemente envolvido com a nova morada e interessado em
se dedicar à leitura e à escrita do que seria suas memórias; até que estas
cheguem – se existem – envolve-se em descrições pormenorizadas do novo hábitat:
a costa, sua nesga de mar (talvez a personagem verdadeira desse romance), os
rochedos, o pequeno quintal onde inicia uma coleção de pedras para a construção
de um amurado, o vilarejo e seus habitantes, o trabalho de arrumação da casa, os
pequenos banquetes gastronômicos e as primeiras visitas ao passado de onde
colhe algumas breves lembranças da infância, da relação com os pais e a família
do primo James, espécie de arquirrival em tudo por tudo à frente do narrador,
exceto na fama. Esse trabalho continua até a decisão de se deter na vida de Clement
e no caso de amor vivido por ela, uma mulher muitos anos mais velha que o
despertou totalmente para o mundo.
É preciso
dizer que, todo esse narcisismo, por mais que o tom autobiográfico lhe garanta
algum abrigo, está muito distante de um trabalho a sério com a memória. É tão
somente um afloramento hedonista dos sentidos de um sujeito que, incapaz de
consumar o projeto literário original, se envolve na tessitura de trivialidades,
tentando dotá-las de um peso sublime. Talvez porque estejamos diante de uma
personagem cuja biografia é escassa de grandes feitos, os acontecimentos
facilmente ajustáveis em qualquer texto com esse interesse. Embora o leitor logo
tenha ciência de uma grande nebulosa que envolve o narrador, representada aqui
pela quebra de sua rotina de tranquilidade pela visão terrível e inexplicável
que se levanta do mar e depois a sensação de vigilância por fantasmas em Shruff
End. Essa visão e esses fantasmas prenunciam o acaso que, na vida de Charles
Arrowby, é o que cuidará de produzir, numa breve estadia de tempo, aqueles
fatos biografáveis pelo impacto considerável na sua existência e, por sua vez, impossíveis
de obedecer a estrutura monocórdia de apenas um relato descritivo.
Assim, o
livro de Charles fracassa, mas ele alcança o registro de uma matéria que vista
em retrospecto, serviria ao propósito inicial sem incorrer numa compilação de
gostos culinários, de fofocas do universo teatral, da composição de alguns dos
seus principais trabalhos, do registro das querelas amorosas ou reflexões sobre
aleatoriedades. O caso é que, a irrupção do presente e sua urgência se constituem
no impeditivo para a realização da memória. Sua vida não está – como esperava –
separada, nem distante de tudo. Toda existência é pulsão. Shruff End é
invadida, primeiro pausadamente depois de uma só vez pelas pessoas do convívio
de Arrowby, isto é, parte dos seus fantasmas não é pura assombração, mas pessoas
com as quais essa personagem construiu sem resolver os mais variados problemas.
Soma-se a isso, o reencontro que afetará totalmente os sentidos do narrador
levando-o a se esquecer ou reduzir sua antes destacada vivência com Clement a
poucas passagens de suas recordações; o reencontro com Mary Hartley, o amor de infância
do qual foi separado por circunstâncias às quais tentará alcançar.
Quase nada
sobra dos planos iniciais. E o que prevalece é uma espécie de romance de verão
às avessas; o confronto do passado deixa de ser pelos sentidos e pela memória
para se dar pelo retorno de seus protagonistas. De alguma maneira, prevalece a
máxima segundo a qual o que se passou não é mera sucessão de fatos que, do
presente, olhamos, alinhavamos à nossa maneira e a deixamos num canto. O tempo
é uma engenhosa máquina e as situações do passado são fundamentais no-para o
presente. Entretanto, o agora jamais poderá recuperar o vivido, nem é possível
remediar o que ficou por concluir. Essas são duas lições das mais caras pelas
Charles Arrowby tem de atravessar; daí compreendemos o cerne do seu fracasso: a
incapacidade de reconhecer o passado como força atuante sobre o presente e a
impossibilidade de reatá-lo com a mesma força e precisão de quando vivido.
A reaparição
do amor de infância do narrador é a encarnação daquele Leviatã descoberto num
lapso de sentidos ante o mar e confundido com uma vaga sensação vivida numa
experiência com LSD nos Estados Unidos; esse monstro se manifesta com três
cabeças: é a própria Hartley, Titus, o filho adotivo da amada e o primo
James, figura de natureza misteriosa. E é com a cabeça principal que Charles
encena sua principal peça: a do homem perturbado e obsessivo que quer fazer
prevalecer a todo custo seus sonhos e fantasias enquanto o presente nada lhe
oferece se não fantasmas. Nessas condições, sobram contradições. Enquanto se
admite favorável ao individualismo e constrói um discurso sobre o casamento
como a mais abjeta das relações, insiste em restabelecer os laços com Hartley;
coloca-se horrorizado com o suposto passado assassino de Ben, o companheiro de
Hartley, mas se vê envolvido numa trama meticulosa para matá-lo e libertar o
que entende por sua prisioneira; preso em torno de seu próprio eixo, não se concebe
como pai, ainda assim quer a Titus como seu filho; condena o poder dos homens
sobre as mulheres e pratica a mesma violência conforme a cartilha dos costumes,
afinal Hartley, no papel que obrigada a desempenhar, alcança a posição de uma
consciência desfeita pela presença obsessiva de um homem; e assim sucessivamente.
Há um traço trágico que anima a personagem principal de O mar, o mar. Suas
ações não oferecem quaisquer atitudes para reinvenção de destino; sem perceber,
Charles é um incapaz. Seu interesse é pura elucubração mental. Está sempre à
espera das circunstâncias porque é, sem qualquer dúvida, um frustrado.
Criteriosamente,
Iris Murdoch, revisita a consciência de um sujeito extremamente egocêntrico através
de um homem que não se envergonha dessa condição talvez porque sua vivência no
teatro, essa arte que ele próprio caracteriza como vazia e mentirosa, o tenha
afetado de uma maneira que o afastou da possibilidade de destituição entre o
ficcional e o vivido. Todo o verão em Shruff End é o tempo de uma encenação da
qual Charles Arrowby perde o controle de dirigir suas personagens e mesmo a si,
afinal, nada sai conforme suas marcações, nem seus planos frutificam. Aqui está
a outra ponta de seu fracasso, justo porque a medida da vida nunca é a mesma do
palco. O romance da escritora inglesa valoriza a existência como limiar,
um conflito para o qual nem sempre temos as alternativas de como vencê-lo. Existir
é esse eterno embate entre uns e outros, esse eterno conflito entre nosso mundo
interior e o mundo exterior. Tudo isso pode até ser representado pela cena,
entretanto, impossível de se alcançar sua força como no vivido.
O pleno
domínio da arte narrativa por Iris Murdoch não se manifesta apenas na maneira
engenhosa como se aprofunda na complexidade da consciência de sua personagem,
que, se autorrepresenta e assim se esconde e se revela como força própria e não
uma marionete da escritora. Charles Arrowby é autônomo; não cobra que o leitor
se identifique com ele e mesmo assim facilmente o leitor consegue vê-lo em
ação, sentir o pulsar de suas decisões, como se estivesse diante a encenação no
teatro. Não falamos de simples transposição de um modelo artístico para outro e
sim de revalidação de um modelo artístico no interior de outro. Essa façanha é
original.
É
interessante notar ainda que essa autonomia gerida por Iris Murdoch estabelece justamente
o papel oposto para o conjunto de figuras que circulam com e no entorno de
Charles, como se estas, sim, fossem marionetes do narrador, o que, demonstraria
outra linha sobre seu fracasso. Nesse ínterim, é possível observar que apenas
Hartley, com sua presença mais fantasmagórica que real, a Caliban que como em A
tempestade se modifica quando conhece os poderes inebriantes do vinho, se
equipare à personagem principal pela força com que leva-o a revelar o mais
abjeto e disforme de si. Pode-se dizer, que tudo nesse romance funciona como um
mundo da cabeça de Arrowby, exceto o dela, tão comum e ao mesmo tempo
intransponível. Nada do que ela diz pode ser tomado como verdade: e isso não
puramente uma determinação marcada por um ponto vista egoísta, como é o do
narrador, porque se verifica por outras determinantes, como a de Ben e a de Tistus.
Destaca-se ainda
a sutileza, a variabilidade dos pontos de vista, a força das descrições sempre
capaz de dizer por vezes os mesmos sentidos mas sem se repetir na maneira – é
encantadora, por exemplo a maneira como se revela a variedade dos humores do
mar em estreita relação com os fatos da narrativa, ora o presente, ora o porvir,
numa perfeita comunhão entre homem-natureza – além, é claro, da riqueza com que
constrói os diálogos. Numa era quando toda a literatura parece se reduzir ao
trabalho de exteriorização do vivido, em parte por uma preguiça dos escritores
de se desafiarem na renovação das estratégias de organização do ponto de vista
exterior (e mesmo interior), a leitura de O mar, o mar nos coloca diante
a nobreza da escrita elaborada com fôlego e fulgor.
Este é um
livro inesgotável. Ainda assim, poderá dividir opiniões, o que não é um
problema. Nenhuma grande obra literária é unanimidade. Pode-se acusar Iris
Murdoch de se filiar a certa tradição naturalista ou, na direção oposta e por
isso incongruente, interessada na ficção que flerta com o inverossímil por
certa mística ou tendência para o fantasioso. Pode-se ainda falar sobre um alargamento
desnecessário das situações narrativas. Ou mesmo de certa inocência quanto a
aposta no melhor da humanidade – por perfis duvidosos como Titus e James.
Entretanto, essas acusações são facilmente discutíveis. Uma boa narrativa é a
que consegue reavivar as linhas fundamentais de uma obra de ficção: a
articulação entre verossimilhante e seu antônimo, afinal, o real, isso que se
passa fora do mundo do texto, é feito pelo menos dessas duas dimensões.
É verdade
que a última parte de O mar, o mar soa desnecessário e cansativo, mas,
se pensarmos o romance sem ela, deixaríamos de apostar no autoengano ou no
fracasso de Charles Arrowby; o leitor encontra aí a consumação do ato final.
Noutros casos, a narrativa tem o mérito de lidar com os próprios limites de
fabulação. Por fim, não há inocência ou redenção; isso é possível comprovar
pelo narrador ao fim de itinerário de um verão e poucos meses depois: “Pode-se
viver quietamente e procurar fazer pequenas obras boas, sem prejudicar quem
quer que seja. Não me ocorre nenhuma pequena obra boa no momento, mas talvez
amanhã alguma me venha à mente.” As pessoas são isso: boas e más, boas ou más. Obviamente
que as primeiras e as últimas guardam predileção no universo da ficção (a essa
altura, até fora dela). E Iris Murdoch não se prendeu ao estereótipo. Quis, e
ao menos em O mar, o mar conseguiu, apenas seguir a lição de
Shakespeare: a natureza humana é som e fúria.
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