O entardecer de Peter Handke
Por
Miguel Morey
“A terra
nata está tomada pelos inimigos, desde sempre.”
Peter
Handke, Am Felsfenster morgens, 1998
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Entre as
características que inevitavelmente se destacam quando Peter Handke é
apresentado ao público, ocupa o primeiro lugar sua vocação precoce como
escritor, com igual ênfase nos dois aspectos. Assim, ele enfatiza tanto sua
juventude incomum quanto a obstinação de sua vocação literária. Sua aparição
pública como escritor, ele começa, data de quando tinha dezesseis anos; depois
ele fala sobre sua estreia no ano 1966, com manifestações literárias diversas,
incluindo um romance (Die Hornissen) e uma peça de teatro (Der
Jasager und der Neinsager), e finda comentando sua intervenção inovadora no
Congresso do Grupo 47, realizado naquele ano em Baltimore. O incidente é
contado de várias maneiras, ainda que o clichê finde sendo o mesmo, o de um
confronto com a velha guarda da literatura alemã e um desafio à literatura
politizada e à figura do escritor engajado. Às vezes, ao argumento é
acrescentado: porque essa literatura é guiada usando a linguagem do crime, e se
de revolução se falava, esta deveria começar revolucionando a própria
linguagem.
O que sempre
coincide quando a história é contada é destacar sua afirmação de que, na prosa
predominante na Alemanha, era praticamente impossível encontrar uma única
descrição que merecesse esse nome. Aparentemente, foi um momento decisivo, a
julgar pelos comentários. O que leva ao segundo aspecto, à sua vocação como
escritor. Quem enfrenta o fórum de escritores é alguém que quer ser escritor, e
se ele fala como fala, é em nome de seu compromisso com essa aprendizagem. E o
desafio é dirigido àqueles que escrevem como escritores, como eles são. Daí o
tipo de autoridade que Handke reivindica. É a distância que separa o escritor
que tenta obter uma descrição do escritor que está satisfeito em
cumpri-la, já que o que importa é outra coisa, aquela em favor da qual se escreve.
Mas o compromisso do aprendiz do escritor é com a literatura, para a qual não
há mais nada...
Dito isto,
cada um geralmente interpreta essa vocação e esse compromisso à sua maneira, e
é até possível dizer que o que se trata é transformar o desejo de ser escritor
no assunto de sua obra. Embora entre as interpretações dignas, é claro, e de
uma maneira única, talvez esteja aquela que simplesmente nos leva a ler na
primeira página A tarde de um escritor (1987), por exemplo: “O problema
de sua profissão não lhe proporcionava talvez a parábola para explicar sua
existência, mostrando-lhe exemplos claros de sua situação? A questão não era: ‘eu
como escritor’, mas sim: ‘o escritor como eu’. Não era verdade que, desde
aquele momento em que ele pensava ter ultrapassado os limites da linguagem, sem
querer, as fronteiras da linguagem, e nunca mais conseguisse voltar, usava
seriamente o substantivo ‘escritor” para se referir a si próprio, dia após dia,
naquele recomeço sem garantias – ele, que, apesar de levar mais de meia vida
sem mais companhia do que a ideia de escrever, não usava essa palavra até
então, no máximo, com ironia ou vergonha”.*
Palavra do
escritor que emerge lentamente do mutismo, como a luz repentina de um batismo
no meio da escuridão.
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Quando Peter
Handke publica A repetição, em 1986, o uso de telefones celulares e a
expansão mundial da Internet estão apenas começando, validados um ano antes no
nível experimental. O mundo prosaico está começando a sofrer uma transformação
que abrangerá igualmente o mais trivial e os fios que o articula. Enquanto
isso, em A repetição, um homem de quarenta anos, procedente de
emigrantes eslovenos, conta uma viagem feita aos vinte anos de idade, seguindo
os passos de seu irmão desaparecido na Iugoslávia durante a Segunda Guerra
Mundial. Entre suas memórias, o narrador destaca especialmente duas: as notas
de quando ele estudou na Escola de Agricultura e um dicionário alemão-esloveno;
serão eles que o iniciarão nos mistérios da língua materna, uma língua que se
sente localizada exatamente onde as palavras acabaram de se separar das coisas.
Todas as lições tiradas dessa viagem, sobre a densidade das palavras e a
lentidão dos espaços, as representações mentais, a forma, a imagem, o ver e o dizer,
mas também sobre a fala e a escuta, o ler e o escrever... todos esses ensinamentos
parecem muito diferentes hoje, depois de trinta anos; às vezes, são ouvidos
como o relato de uma forma de experiência que desaparece.
Mas, embora
agora se imponha (e é a palavra exata, impõe) cada vez mais a impressão de que se
trata do testemunho de um mundo que definitivamente foi deixado do outro lado,
talvez infinitamente para trás, já era, no entanto, uma forma de experiência em
retirada no dia em que foi publicado. Vale recordar cena de Asas do desejo
(1987), na qual Homer recita seu monólogo em Stadtbibliothek: “O mundo parece
se afogar no crepúsculo, mas eu o conto como antigamente, na minha monodia que
me sustenta, salvo pela história das confusões do presente e protegidas do
futuro. A grande respiração do passado acabou, indo e vindo através dos séculos.
Não consigo mais pensar na vida cotidiana. Meus heróis não são mais guerreiros
e reis, mas as coisas de paz, todas iguais umas às outras. As cebolas postas
para secar valem tanto quanto o tronco da árvore que atravessa o pântano. Mas
ninguém conseguiu cantar um épico de paz ainda. Por que a paz não pode ser
exaltada; por que, no fundo, ele não se deixa narrar? Desistir? Se eu desistir,
a humanidade perderá seu contador de histórias. E se um dia a humanidade chegar
a perder o contador de histórias, também perderia a infância”.
Provavelmente,
não há uma declaração de princípios mais precisa sobre o trabalho do escritor,
seu compromisso e sua vocação do que a deste contador de histórias, que também
habita um mundo que anoitece. Em contraste, intempestivo, o escritor renova a
fé de seu batismo – como cada dia.
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Hegel
inextricavelmente relacionou o nascimento do tempo histórico e o aparecimento
da prosa. Durante vinte séculos, a prosa teria sido o meio pelo qual o curso do
pensamento fora estabilizado pela escrita, o diálogo com o conhecimento dos
mortos se tornara possível e a transmissão da cultura era um fato. Durante
vinte séculos, viver naquele espaço teria sido para homens de extrema
necessidade e extraordinária riqueza, tanto para se entenderem com os outros
como consigo próprios.
Na Enciclopédia
de ciências filosóficas em compêndio, Hegel escreveu: “A aprendizagem da
leitura e da escrita alfabética deve ser visto como um meio de formação
infinita que nunca será compreendida o suficiente, porque leva o espírito do
concreto sensível à atenção ao mais ao mais formal, a palavra oral e seus
elementos abstratos, e fornece algo essencial para fundamentar e purificar o
solo da interioridade do sujeito”.
Bom, mas três
anos depois da publicação de A repetição, o mundo prosaico recebe
a primeira notícia mais ou menos oficial que decreta seu desaparecimento, na
forma do panfleto de Francis Fukuyama sobre O fim da história? A controvérsia
será lembrada mais tarde com a publicação em livro de O fim da história (1992);
os debates a respeito, o choque de civilizações, mas... não se media até que
ponto o fim da história implicava necessariamente a perda da legitimidade da
prosa, em um mundo que (deseja) deixa(r) de ser prosaico.
No dia que
termina A repetição, Handke escreve em seu caderno (Am Felsfenster
morgens), e diria que sua voz é a de Homer: “História, só você conhece
nossa solidão (18 de fevereiro, às 12h20, final de A repetição)”.
Se os anjos
viajassem novamente pelas ruas de Berlim hoje, teriam dificuldade em
surpreender as vozes interiores de muitos dos transeuntes, alienados em mil e
uma próteses digitais: tantos seres se voltados para o próprio reflexo em um
jogo de pura exterioridade contínua, usando alguns vestígios de prosa sinalética
em mensagens de texto, ou simplesmente obedecendo ao próprio código de máquina:
curtir / não curtir... O que os anjos poderiam pensar então do “solo da
interioridade desses sujeitos”? Eles os contemplariam como uma humanidade que
está sendo realfabetizada, de acordo com um código muito mais simples (ou sem
tantas complicações, muito mais grosseiro também)? O desmantelamento da prosa
corresponde a um mundo no qual a subjetividade não é mais construída através da
leitura e da escrita, e no qual o conceito de interioridade talvez deva ser reconsiderado
antes de ser declarado obsoleto.
– “voz
interior” seria então um termo que deixaria de fazer sentido...
E ainda: “Ler,
a experiência de mim mesmo” – escreve Handke em Am Felsfenster morgens.
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Ou também: “Lápis:
ponte que leva para casa” [G.B.]. Caminho do lápis, ascetismo, no sentido
clássico, como um exercício de si mesmo. O caminho da literatura empreendido
por Peter Handke baseia-se na experiência contínua do desmantelamento das
conexões usuais da inteligência automática e sua reconstrução peça por peça, sopesando
o que nomeia cada palavra, o que evoca e o que arrasta. Um exercício que não
pode ser realizado se não estiver no espaço da voz interior, onde falar e ouvir
falar resolvem a sua sorte. E cujo ponto de partida aspira ser uma
desapropriação completa, um ponto zero desprovido de toda intencionalidade, sem
nenhum conhecimento que o acompanhe.
“Não sei o
que é escrever, esqueci-o, e é isso que devemos sempre fazer. Mesmo que se
dissesse que escrever destrói conceitos, isso já seria um tipo de conceito. É
um trabalho novo, difícil, um trabalho de percepção que se esforça precisamente
para destruir todas as formas de percepção existentes, que se esforça para
detectar o que é esquemático nelas, o que mostra que não se trata tanto de
percepções quanto de esquemas de percepção. Este é o primeiro trabalho e o
segundo, após esse trabalho de destruição, é tentar anotar as novas formas de
percepção. Falar sobre novas formas de percepção já é falso novamente. Não há
formas de percepção; assim que se tornam formas, elas se tornam atitudes.
Escrever é um trabalho diário feito e decidido sentença após sentença, um
trabalho que não pode ser definido.”
Aquilo que,
como programa de escrita, se abra nas duas direções; que não apenas impugnem os
clichês expressivos de qualquer ordem (a “limpeza da condição verbal”, da qual falava
Paul Valéry) são desafiados, mas também os mesmos esquemas de percepção,
conferem uma forte característica de palingênese à aprendizagem imposta. Nada
estranho, então, na presença de Bildungsroman em seus romances, especialmente
os primeiros, seja com todas as letras ou como parte de seu murmúrio interior, do
neles se condensam.
Embora se
distancie por sua radicalidade, tomando a própria raiz como ponto de partida,
onde a percepção ainda emerge sem palavras, onde a imagem toma forma... E é
nessa medida que se diria que a aprendizagem agora afeta todo o circuito: das
impressões que causam os movimentos da alma causam aos próprios movimentos e a
maneira como são traduzidos primeiro na forma e no som e, finalmente, na
palavra escrita – por assim dizer da maneira clássica. A que se deve
acrescentar que, frequentemente, as personagens através das quais se narra
apresentam alguma alteração em sua condição – começando pela cegueira de
Gregor, protagonista de seu primeiro romance, Die Hornissen –, o que
opõe um obstáculo a mais a qualquer construção automática da experiência do
real de acordo com padrões socialmente estabelecidos.
Talvez fosse
possível imaginar suas obras como romances de formação, mas seria a condição de
que o protagonista aparecesse como uma espécie de Kaspar Hauser. Assim, em Am
Felsfenster morgens, Handke observa: “O narrador mudo: bem pensado, sempre
fui semelhante a um narrador mudo; e é precisamente do mutismo que emerjo à
narrativa; e só então, nesta ascensão, fui ouvido”. E nessas palavras, pensa-se
que ele também lê uma resposta ao chamado de René Char: “Companheiros patéticos
que apenas murmuram, marchem com a lâmpada apagada e devolvam as joias. Um novo
mistério canta em seus ossos. Desenvolva sua estranha legitimidade.”
5
De maneira
apressada, poderíamos imaginar a posição de Handke como arcaica, como a de
alguém que dirige sua prosa por caminhos que pressupõem um mundo ainda
prosaico. Mas é uma suposição que é imediatamente descartada. E não há como situar
sua prosa em um lugar hipotético antes do suposto fim da história. Nem se pode atribuir
à prosa histórica como Hegel a desenhou, porque é precisamente uma prosa que
não se manifesta como tal graças a ter superado a poesia, pelo contrário, vive
completamente no interior de um sentimento poético de mundo, tanto lírico
quanto épico.
Seu trabalho
é a poiesis, sua tarefa é, antes de tudo, nomear, ir nomeando passo a
passo, nomear, descrever, narrar – narrar o reencontro da linguagem e das coisas
no mundo da história. “Minha literatura é boa quando simplesmente repito o que
o mundo diz”, escreve em Die Geschichte des Bleistifts (1982). E em O
peso do mundo (1979) observa: “Uma epopeia feita de haikai, mas sem que se
distingam como objetos isolados, sem ação, sem intriga, sem drama e ainda assim
é narrada: é isso que eu vejo como objetivo supremo.”
De fato, o
que se pode provar é o antagonismo entre essa prosa e a narrativa histórica,
manifestada em várias ocasiões. Um dos mais visíveis pode ser encontrado na Die
Geschichte des Bleistifts: “Sua ‘consciência histórica’ é apenas o
substituto da linguagem (e eu não desisto da minha língua).” Mas provavelmente
o mais elevado é o que aparece em Am Felsfenster morgens: “Pode-se dizer
que evito os eventos, a História, para seguir o caminho do silêncio, do sol, do
vento, aqui? Não, levanto-me contra os acontecimentos, contra a História, tomo
partido pelas coisas.”
É
precisamente apelando para a objetividade poética de sua obra em prosa que ele
pode denunciar as descrições contemporâneas como vazias, falsas de tão
livrescas, imersas em um mundo prosaico que já não governa mais como tal,
que não é o que existe quando se levanta a vista do livro Daí a demanda de refundação
que parece brotar do próprio coração da prosa, seu chamado para se refazer de
seus fundamentos, começando pelos sons que a habitam, o gesto que a torna escrita,
a imagem que a ilumina... “Revive tudo outra vez. Nada está vivo de antemão,
disponível para descrição. Nem o barulho dos pássaros lá fora, nem o barulho
dos trens nos trilhos. Invente uma frase para isso, frases onde revivam. Ou
seja, não abandone uma palavra à sua própria força. Nada está poeticamente disponível
– você deve despertar tudo através do pensamento como acomodação de um lugar. O
escritor é um arrumador de lugares”, escreve em Die Geschichte des
Bleistifts.
6
Um relato
detalhado desse itinerário ascético em direção à refundação de uma prosa à
medida de um mundo não prosaico se encontra em seus cadernos publicados até
hoje, fragmentos talvez de um épico composto por haikai... De sua importância,
indicamos a frequência com o qual suas histórias aparecem como um objeto e o
anotar como prática. Por exemplo, no parágrafo anterior à primeira página
citada acima de A tarde de um escritor.
“Desde que uma
vez viveu convencido, por quase um ano, que havia perdido a fala, todas as
frases que o escritor anotava e com as quais ele até experimentava o início de
uma possível continuação, haviam se tornado num acontecimento. Cada palavra não
pronunciada, mas feita escrita, levava as outras, e ele respirava sentindo-se
novamente unido ao mundo; somente com uma dessas anotações alcançadas, começava
o dia para ele, e então ele estava seguro, ou pelo menos acreditava, até a
manhã seguinte.” Os cadernos e as anotações são indicados, como o espaço em que
ele emerge da mudez, onde a força de um nome, uma descrição, uma história, os
torna, por um tempo, donos da linguagem.
Em O peso
do mundo, sua primeira compilação de notas publicadas, explica o caminho
que o levou a fazer do caderno uma espécie de laboratório do escritor. Começa
por avisar o leitor: “Essas anotações não foram projetadas para aparecer dessa
maneira. Eles começaram com a intenção de se converterem-se, por exemplo, em
uma história ou, como pode ser reconhecido no início, pela descrição frequente
de gestos simples, em uma (silenciosa) peça de teatro. Assim, as percepções
cotidianas foram traduzidas in mente para o sistema em que
deveriam ser usadas, e até as próprias percepções, como aconteceu casualmente,
também foram orientadas para um possível fim. As impressões, as experiências
não ajustáveis ao ponto de referência comum - a forma literária pré-escolhida
- foram negligenciadas; ‘puderam ser esquecidos’.”
Mas, ele nos
diz, esses diários esquecidos acabaram abrindo uma pergunta sobre seu próprio
trabalho. “Logo me pareceram uma omissão e imediatamente comecei a reter também
os eventos de consciência que não eram úteis para o projeto. Assim, o plano
inicial caiu, até que fosse apenas na notação espontânea de percepções, sem um
objetivo específico”. Na realidade, esse “sem um objetivo específico” não
demorou muito a se tornar ativo e se tornou o objetivo real da busca. Em princípio,
parecia suficiente parar de traduzir as percepções cotidianas de acordo com
algum padrão anterior, parar de orientá-las para um fim possível... Mas, apenas
algumas páginas depois, já são precisas: “Aguardo pacientemente por pensamentos
que não quero – são esses que contam”. Essa anotação de eventos involuntários da
consciência constituirá o tronco comum que associa todos os seus cadernos de
anotações, como se uma recolha de instantâneos. Mesmo sua recusa em anotar
eventos orientados de acordo com um padrão pode relaxar gradualmente antes da
consolidação da disponibilidade do olhar, e permitir o aparecimento de
anotações relacionadas a textos em processo de elaboração; que geralmente
permanecem integrados sem sobressaltos, como percepções que ocorrem em algum
nível narrativo em curso, capturadas a partir de um ponto de vista.
Não há
dúvida de que neles pode-se ler a história de uma aprendizagem, renovada dia após
dia, de certa forma um caminho de conhecimento chamado de narrativa. “Narrar, também
para o próprio narrador, deve ser um processo de conhecimento – e mais
precisamente simultâneo: não deve ser recontar conhecimento anteriormente realizados;
narrar é produzir, e a narração das narrações é a narração da narrar: a
narração é O PROTAGONISTA.”
E então o
campo de ação dessa aprendizagem abrange todas as seções entre as impressões
causadas pelos movimentos da alma e a palavra escrita. E a ação narrativa se
depara com um conjunto de palavras e imagens dotado de facetas infinitas. “No
princípio era a palavra? No começo era a imagem? A imagem dá a palavra”,
escreve em Am Felsfenster morgens. E, ao apontar para o outro lado do
problema, ele acrescenta: “Mais uma vez” ‘invocação e imagem’: quais são as
invocações capazes de dar origem a imagens, de criar imagens?”. Entre ambos se
deslizarão os exemplos em que o aprendizado é exercido: nas imagens capturadas
laboriosa ou aleatoriamente capturadas, nas palavras feitas com as mais
profundas ou arrebatadas o mais rápido... Em breve as vocações começarão a
interferir em suas anotações: as instruções, os exercícios explícitos que são
gravados. Até certas fórmulas são repetidas: “em vez de dizer... diga...”, “verbo
para...” (às vezes “adjetivo para...” ou “expressão para...”) ou simplesmente “Y”,
anunciando uma composição de dois elementos heterogêneos que formam um conjunto
perceptivo, marcando a singularidade de um instante de acordo com uma lição
aprendida com o haikai; como no exemplo a seguir Die Geschichte des
Bleistifts: “E: no rádio do carro soava música de órgão e lá fora passava
uma mulher de jaleco branco”.
Uma possibilidade
do constante, dir-se-ia que essa é a impressão que domina ao ler seus cadernos,
como se ante tudo essa fosse tarefa do escritor em um mundo que deixa de ser
prosaico, preservar vivo o que ainda está vivo. Você pode imaginar essa
impressão em duas etapas, formuladas como uma pergunta pela primeira vez em Die
Geschichte des Bleistifts: “Ao contemplar a paisagem, nasce uma
possibilidade de amor. Mas o que fazer com ela?”; e recebendo uma resposta em Am
Felsfenster morgens: “Para que os lugares se você não os descreve? Para que
possessão se você não a transmite?”
Quando
algumas páginas mais tarde for ratificada nessa convicção, o fará com uma frase
que poderia muito bem ser uma moeda: “Compartilhar meu universo: = escrever”.
Em seus cadernos de anotações, há os detalhes das obras que impõe e o tipo de
compromisso que significa não submeter a prosa à História, mas esforçando-se
por sua lealdade ao renovar uma tomada de posição pelas coisas.
7
Quando Peter
Handke se apresenta publicamente, costuma mencionar um último aspecto
furiosamente controverso: sua posição diante das guerras iugoslavas. Suas
meditações sobre o assunto, primeiro Uma viagem de inverno aos rios Danúbio,
Save, Morava e Drina ou Justicia para a Sérvia (1996), depois o Apêndice
de verão de uma viagem de inverno (1996), a crônica de sua visita ao
Tribunal Internacional de Haia em fevereiro de 2002, em Rund um das Große
Tribunal (2003), ou o relato em Die Tablas von Daimiel (2005) de sua
visita a Slobodan Milosevic na prisão de Scheweningen, em Haia, à qual deve ser
acrescentado suas intervenções controversas perante a mídia e, finalmente, como
a gota que transborda qualquer medida, sua participação no funeral de Milosevic
em 2006, tudo acabou provocando um escândalo de grandes proporções, cujo eco
ainda ressoa.
É importante
aqui um detalhe sobre toda essa questão, o que teve na época e ainda tem um
conflito entre a visão histórica, estadista, e uma visão de pedestre que se
esforça para estar próximo das coisas e desviar os contornos de onde eles
ocorrem. Do ponto de vista que é mantido aqui, em todo aquele assunto existiu desde
o começo o mal-entendido, os julgamentos precipitados, erros de leitura...
Handke reclamou disso em sua entrenvista com Winkler: “Quem vê algo bucólico ou
idílico na descrição de uma comida num país afetado pela guerra, esse é um
idiota, um leitor idiota.” Frequentemente, a impressão era que a capacidade de
entender o que a linguagem realmente diz havia sido perdida e, em vez disso,
uma tempestade de automatismos verbais fora desencadeada. De fato, as razões,
se houver alguma, se deixaram ouvir pouco no meio do barulho. E, no entanto, a
defesa da palavra poética como palavra de paz estava presente em todas as
páginas de Uma viagem de inverno, bastava ler.
“Você vem
com poesia agora? Sim, se isso for entendido como o diametralmente oposto ao
nebuloso. Ou, em vez de poesia, decida antes o que ela vincula, o que ela
abrange; o primeiro impulso para a memória comum, como a única possibilidade de
reconciliação, para a segunda infância, a infância comum. E é assim? O que
escrevi aqui, além deste e daquele leitor alemão, também foi pensado para este
e aquele da Eslovênia, da Croácia, da Sérvia, retirados da experiência que,
precisamente com o desvio para captar certos fatos secundários, obviamente, de
uma maneira que é muito mais duradoura do que discutir com os principais fatos,
essa memória comum é despertada. Em um lugar do poente, durante anos, havia
uma tábua que se moveu – Sim, a você também chamou atenção? Num lugar que há
sob o trifório da igreja, os passos produziam uma ressonância especial – Sim, a
você também atraiu sua atenção? Ou, simplesmente, sair-se do cativeiro, das
conversas sobre a História e a realidade em que estamos todos presos, e dirigir-se
a um presente incomparavelmente mais proveitoso: Veja, está nevando. Olha,
tem algumas crianças que brincam lá. (A arte de desviar-se; a arte como
desvio essencial.) E foi assim que, ao lado de Drina, senti a necessidade de
fazer uma pedra dançar sobre a água, indo em direção à costa da Bósnia (mas não
encontrei nenhuma).”
É claro que
não foi um problema de leitura, mas de audiência.
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O suposto
mundo presente também teve seus profetas, mesmo que situem além da história,
nem lhes faltasse messianismo para apontar o caminho que leva à felicidade na
Terra. Em The Global Village, Marshall McLuhan prevê uma comunidade
retribalizada graças à mídia, cuja percepção seria baseada no reconhecimento de
padrões, sua forma de consciência seria mais rítmica do que narrativa e que ele
seria reconhecido como tal por sua participação em uma comunidade entendida
como audiência. Aí, escreve, por exemplo: “O homem robótico é capaz de um
julgamento instantâneo diante de qualquer situação social sem culpa; pois
mantém seu ouvido atento a uma identidade moral coletiva que chamamos de
audiência. Como uma multidão atenta, uma audiência é um fundo adaptado”.
Diríamos
que, desde o cumprimento virtual dessa profecia sobre os julgamentos
automáticos, as divergências e a surdez acima mencionadas adquirem outra luz,
enquanto o termo “audiência” cobra algumas tintas mais militares – fica claro
que não apenas rima com “obediência”, é que eles são termos vizinhos. E para comprovar
que a utopia que foi traçada está presente de forma esmagadora hoje, pelo menos
em todas as campanhas publicitárias, seria suficiente reler o cenário vital que
ele aí prometeu. “A casa pode muito bem se tornar mais eficiente e automatizada
à medida na sua construção se agreguem a televisão a cabo, cassetes, o videocassete,
os videodiscos e o som quadrafônico. Para quem precisa de uma fuga, telas de
alta densidade amplificarão e acentuarão o estado alfa. Para quem busca
informações, a TV conectada a um computador pode exceder os recursos da
Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. A velocidade das informações
gravadas nos satélites, como no caso da Associated Press Newscable, poderia
enviar aos usuários individuais uma variedade surpreendente de informações
adaptadas, talvez, às necessidades profissionais específicas. A possibilidade
de informações ao vivo constantemente pode gerar uma atualização contínua de
dados sobre os principais eventos. As audiências orientadas para uma
mentalidade de videogame, que negligenciam livros e jornais, podem receber as
notícias em estilo cápsula por um certo período de tempo, que, levado a seu
limite extremo, se torna o estilo ideograma.”
Os efeitos
da pergunta pela atualidade desta utopia, retenho apenas duas imagens. A
primeira, a imagem de uma audiência governada por “uma mentalidade de videogame”.
A segunda, a proposta do ideograma como modelo de transmissão, e lembro-me
então de que Hegel colocou o ideograma no fundo mais remoto da evolução humana,
antes da religiosidade, do mito e da poesia – uma primeira nota da humanidade
no animal humano. Trata-se então de uma viagem de volta à primeira brutalidade
(vivida, sim, com “uma mentalidade de videogame”)? Essa cena é sobreposta a uma
cena de Asas do desejo, na qual Cassiel diz a Damiel: “Você se lembra de
como uma manhã saiu da savana, com a grama presa na testa, estando à nossa
imagem, há muito esperada, o bípede, cuja primeira palavra foi um grito? Foi ‘ah’
ou ‘ah, ah’ ou ‘oh’ ou um simples gemido? Finalmente, poderíamos rir desse
homem, pela primeira vez, e de seu grito, do chamado de seu sucessor,
aprendemos a falar...”. A que Damiel responde: “Uma longa história! O sol, os
raios, os trovões no céu, e abaixo, na terra, os fogos, os saltos, os círculos,
os sinais, a escrita...”.
Contra o
pano de fundo dessa utopia virtualmente em curso de cumprimento, a prosa que Handke
cultiva (e sim, aqui está a palavra exata) é a do artesão de um ofício em vias
de extinção, ante da reprodução em série das palavras, dos automatismos verbais
e do calvário da linguagem a caminho de se tornar um sistema de sinais. E é a
partir daí que parece que muitas vezes sua prosa está tirando a força. “Assim
que ele percebeu que não havia nada a esperar, os sinais apareceram.” Como se,
à medida que a situação mundial foi se tornando cada vez mais ameaçadora nesse
sentido, Handke tivesse tomado uma consciência mais precisa de sua tarefa e de
sua necessidade:
“Epopeia:
conte-me o seu segredo – para que fique salvo (se o seu segredo permanecer em
você, não ficará salvo)”. E da especificidade de sua dificuldade, também: “Agora
acho que sei porque a escrita épica, com todas as suas estruturas, é tão
exigente, tão dolorosa: porque incessantemente nos força a um retorno para o
alto, um retorno sempre para o alto, e a seguir ao mesmo tempo o caminho,
a progredir, sempre.” Daí também a gratidão do leitor pelo encorajamento que
recebe de uma prosa que lhe permite sonhar com o renascimento do leitor,
naquele milagre que dia após dia se repete para todo o sempre, e que se pode
imaginar ativo mesmo nas condições mais adversas, o leitor emergindo com a erva
presa nas paredes de uma charneca na qual vive a humanidade cuja interioridade já
não é mais alfabetizada.
* As
traduções de citações neste texto são a partir o original espanhol. Este texto
é uma tradução de “La tarde de Peter Handke”, publicada aqui, em El Cuaderno.
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