O engajamento docente
Por Rafael Kafka
Ilustração: Fernando Cobelo |
O engajamento dentro da filosofia
existencialista é algo simples em essência, mas profundo no tocante à tomada de
decisão. Por isso mesmo, ele é síntese de temor e tremor, pois somos
confrontados com a ideia de condenação à liberdade em uma realidade que não nos
deixa ser livres de maneira absoluta. O menor de nossos gestos é uma mudança do
mundo, é uma forma de desafiar o concreto da realidade a qual nos circunda para
obtermos o que queremos.
Penso que O que é a literatura?, de
Jean-Paul Sartre, seja uma bela síntese desse engajamento existencial. O
escritor engajado é tão somente aquele que encara a realidade a sua frente e
decide falar sobre ela, mostrá-la, provocar o seu leitor a também encarar e sentir os
fatos exibidos ali. Um escritor que silencia diante da violência é um sujeito
que deixa clara sua posição política sobre a violência.
O engajamento da obra de arte
literária é bem elucidativo inclusive de uma ética de respeito ao outro. O
texto literário não busca dar respostas prontas e convida o leitor a refletir e
sentir por conta própria os temas lidos por ele. Há uma cena de Primeira manhã, de Dalcídio Jurandir, na qual Alfredo afundado em angústia olha para os
livros escolares esperando que dali pule uma resposta para os seus dilemas. Se
de dentro de livros didáticos de uma época em que a educação era algo mais
engessado não sairão essas respostas não sairá tal tipo de resposta, de dentro
de um texto literário mesmo ela não virá, porque o texto literário, como diria
Roland Barthes em prefácio de Crítica e verdade não trabalha com a verdade e
sim com a ambiguidade, com a possibilidade de provocar no leitor uma reação
dúbia deixando a ele a possibilidade de escolher os rumos de sua visão leitora.
A literatura, ao contrário da
autoajuda, não se finge dona da verdade e por isso exige do leitor
posicionamento. A leitura é um ato de engajamento em maior ou menor grau e
podemos dizer que mesmo o leitor que silencia sobre a violência é engajado a
alguma verdade. Poderíamos dizer que
todos somos de alguma forma engajados, pois sentimos a realidade e tomamos
decisões sobre ela o tempo todo. A alienação surge na má-fé, quando usamos
teorias cheias de bizarrices ou senso para anular a nossa liberdade
fundamental.
Mas mesmo diante disso, há um
compromisso fundamental do escritor ligado a sua visão de mundo. Precisamos
falar da realidade e só fala dela o sujeito capaz de enxergá-la e para isso é
preciso o ato de leitura e de reflexão sobre os fatos vivenciados. Se todos
somos engajados à realidade, no sentido de que sobre ela agimos da nossa
maneira, nem todo engajamento pode ser chamado de autêntico no sentido que de
muitos discursos não focados em mudança, mas naquilo que Nelson Rodrigues
chamaria de viralatismo.
Tudo o que Sartre diz sobre a
literatura pode ser facilmente aplicado à docência pelo fato de ela também
trabalhar por meio das palavras e não dever fechar a análise da realidade em
uma visão unilateral. A docência não se resume a ensinar conteúdos em si
mesmos, mas também não deve ser confundida com proselitismo político. Por meio
de metodologias e conteúdos curriculares, podemos usar o pluralismo de ideias
de uma sala de aula para promover riscos debates nos quais cada um de nós,
professores e alunos, aprendam um com outro e se tornem cada vez mais ricos em
sua visão de mundo.
Não há neutralidade na ciência e o
modo como um educador monta suas aulas e dirige a atenção dos alunos é movido
por ideias bastante pessoais sobre os fatos do mundo. Mas as metodologias de
ensino devem falar por si só, a mediação de leitura e de outros gestos deve
dizer o que pretende em seu modo de organização para evitar que aulas sejam
paradas para se fazer longos discursos e sermões sobre moral política.
Há uma infinidade de temas em todos
os conteúdos curriculares, bem como os chamados temas transversais, os quais
podem servir de convite à reflexão por parte de alunos e professores sobre a
realidade circundante. Utilizar bem tais temas em sequências metodológicas
cheias de autenticidade é muito mais produtivo do que parar aulas para falar
desse ou daquele político e causar nos próprios estudante um sentimento de
irritação por estarmos ali fazendo palanque eleitoral.
Em momentos nos quais projetos como
Escola sem Partido ganham força é importante que os educadores pensem mais
acerca do seu engajamento, por mais difícil que seja lidar com tantas mazelas e
desvalorização em sua práxis. Projetos como esse ganham força pelo fato de
muitos cidadãos não entenderem o que é currículo e como este se coloca como
discurso político e de dominação, como o currículo pode ser engessado e pronto
ou volátil e em constante mudança levando a pensar a realidade de forma viva.
Documentos como os Projetos Político
Pedagógicos das Escolas deveriam ser feitos de forma coletiva, mas infelizmente
não é isso que ocorre em muitas escolas, o que indica a desmotivação de muitos
educadores em ditar as diretrizes nas quais atuarão. Muito disso se deve ao
descaso de muitas secretarias educacionais em produzir processos de formação continuada
os quais levem ao professor instrumentalização acerca de sua práxis e a
possibilidade de trabalhar em consonância com documentos importantes que lhe
garante a crítica política consistente e a defesa de seus direitos.
O engajamento do educador começa
justamente no entendimento de documentos importantes como a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional e a Base Nacional Curricular Comum, os quais trazem
a possibilidade de trabalhar conteúdos em uma forma de práxis muito mais viva e
não fechada nos conteúdos. O engajamento do educador, assim como o do escritor,
se encontra em respeitar a multiplicidade de visões de um processo político
para promover o debate e a troca de ideias, ao mesmo tempo que uma matéria e
uma série de competências e habilidades são vinculadas ao ensino.
Muitos de nós, já cansados e
adoecidos pela prática docente, caímos na armadilha do viralatismo e começamos
a vociferar furiosos senso comum. Não conseguimos propor mudanças e ações
efetivas no caminho das mudanças. O engajamento perpassa também pelo cuidado de
si para que somente então comecemos a pensar em ações concretas de diálogo e
provocação da polifonia de nosso espaço de trabalho. É essa polifonia que
provoca nos estudantes a visão da realidade como ela é: uma multiplicidade
vozes e de visões.
Penso que colocar isso na mente dos
estudantes os protege não apenas de qualquer tipo de proselitismo, mas também
os faz entender a importância do debate e da troca de ideias em qualquer
processo social. Somente esses dois itens podem nos levar a uma melhora
profunda como meio social e se há algum ensinamento concreto que um professor
pode dar a seus alunos é justamente esse: de que precisamos ouvir mais o outro
para juntos aprendermos, ficarmos viciados em aprender e nunca pararmos de
conhecer coisas novas.
Entendendo isso e a dimensão
subjetiva do outro, nós nos humanizamos e nesse movimento aprendemos a defender
a dignidade dos direitos humanos. No final das contas, o engajamento
existencial, na literatura e na docência, se sintetiza em ouvir o outro e
sentir todo o esplendor da realidade na qual estamos imersos.
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