Moby Dick e a alegoria
Por
Javier Ozón Górriz
Entre as
figuras da retórica, a alegoria, isto é, a arte de expressar algumas coisas em
virtude de outras que são mais fáceis de entender, como quando o mistério do
Espírito Santo é representado graficamente com a imagem de uma pomba, não é a
menos frequente. Isso ocorre por uma razão universalmente reconhecida: a
imaginação humana entende o concreto melhor que o abstrato. A
alegoria serviria assim como uma representação simbólica de ideias abstratas
por meio de figuras visíveis, de modo que, para esclarecer o conceito de “piedade”,
nos voltamos para um conjunto escultural no qual uma mãe apoia o corpo de seu
filho moribundo, por exemplo; ou expressamos a ideia de “amor nacional” – o abstrato
– através da vida exemplar de um soldado – o concreto – sacrificado em nome de
seu país e assim por diante. Ciprión, um dos podengos de A cidade e os
cachorros, diz sobre o sentido alegórico de que “não significa o que a
letra soa, mas outra coisa que, embora diferente, a torna semelhante”*.
A partir
dessa breve definição, uma consequência filológica pode ser inferida: a
alegoria se encontra em forte declínio hoje. E, o que é pior, sua prática é tão
pouco frequente que a tentativa de alegorizar geralmente acaba num sonoro fracasso:
ou não diz nada ou é uma falsa candura. Mesmo nas universidades, se tem
colocado em questão a necessidade de treinamento teórico, ou seja, com base na
capacidade de abstração do aluno, em outras searas – tão bem-vista na prática –
o que prevalece são casos particulares: um desses tem sido chamado de aprendizagem
baseada em projetos. O resto, o abstrato, isto é, a base da alegoria, fica
confinada ao campo do tédio, que é como dizer o que deve ser revogado.
Dessa
maneira, e dados esses traços de caráter do espectador contemporâneo, poucas
obras da literatura são hoje reconhecidas como alegóricas. Dom Quixote,
sem ir mais longe, é um romance sujeito a inúmeras interpretações contra as
quais o leitor tradicionalmente teve que romper, se quisesse ter algum prazer,
e isso ao ponto de chegar a recomendar a leitura dessa obra de Cervantes para “esquecer
o Dom Quixote”. Hoje, no entanto, tudo mudou e o risco de cair na
saturação hermenêutica carece na prática de relevância: nesta era de
predominância da imagem, refratária à interpretação, a alegoria é percebida
como um gênero impróprio, adequado apenas para estudiosos e especialistas, isto
é, circunscritos à academia.
Mas, nem
sempre as coisas foram assim. No passado, a literatura não tinha vergonha de
buscar um sentido simbólico. Tolstói se considerava um reformador. Embora
reconhecia que seu talento como narrador não era lá essas coisas: o que ele
pretendia era transformar o mundo – e até mudá-lo através de ação direta – e
assim pode-se dizer que o último capítulo de Anna Kariênina é indigno de
Anna Kariênina, de modo que agora admiramos Tolstói, apesar desse
capítulo, ou seja, apesar de Tolstói ser um professor e não porque ele chegou a
ser, mas porque sempre desejou. Nesse caso, o artista é superior ao moralista,
o que também pode ser observado – entre outras personalidades – em Herman
Melville e seu trabalho principal, Moby Dick, considerado por muito
tempo uma simples aventura do mar – como se escrever assim fosse algo de pouca
importância – e que somente mais tarde, quando Melville morreu havia trinta
anos, ele se tornou o grande romance da tradição estadunidense. O que é como
dizer que lhe foram atribuídas diferentes intenções simbólicas, nas quais poderia
ser refletido o espírito estadunidense.
Independentemente
de Moby Dick ser uma obra totalmente alegórica, Melville sem dúvida escondia “algumas
intenções claras”, de modo que, entre outras iguarias, ele não teve ambição de
estender ao longo de um capítulo os possíveis significados assustadores da cor
albina da baleia, nem em tirar conclusões específicas – nas quais se fala sobre
o significado da vida e coisas assim – dos eventos do mar, chegando a afirmar
que “em todas as coisas um certo significado está alojado ou, caso contrário,
as coisas valem muito pouco” e até alguns parágrafos depois – tudo no decorrer
do mesmo capítulo noventa e nove – confessa a possibilidade de estar incorrendo
no mero absurdo: “Devo chamar isso de sensato ou tolo? Se é realmente sensato,
parece tolo; mas se realmente é tolo, então tem aspecto sensato.”
Da mesma
forma, e ao longo do livro, Melville se refere à baleia como o “leviatã” ou o “leão
das águas” e outros designativos simbólicos revestidos nesse caso de uma
evidente ironia, a mesma na situação final da narrativa – capítulo cento e
vinte e sete – quando o carpinteiro do navio transforma, por ordem expressa do
primeiro oficial Starbuck, um caixão numa boia salva-vidas – um sinal óbvio dos
piores presságios graças aos quais Ismael sobrevive para contar a referida história
– e mesmo antes de Ahab batizar o arpão que tem de enfrentar Moby Dick com a
seguinte invocação: “eu o batizo não em nome de Deus, mas do Diabo”, uma profanação
que segundo o que Melville escreveu a Hawthorne contém o lema secreto do livro –
apesar do que acrescenta em seguida: “mas adivinhe o resto” – e assim por
diante até chegar à apoteose final, cujo ponto culminante é um verdadeiro
convite à interpretação simbólica. John Huston considerava o romance uma
blasfêmia formidável, de modo que as calamidades que ele sofreu durante as
filmagens da adaptação do filme nada mais eram do que um reparo de sua ofensa,
eficazmente administrada por Deus.
O artista
e o moralista
Não é
difícil encontrar reprovações contra o desejo professoral de Melville. D.H.
Lawrence o acusa de “ser um tanto julgador” e “um transcendentalista cansativo”,
além de um “comediante, desajeitado e de mau gosto” e até recrimina sua falta
de humor, mesmo dizendo que é “um verdadeiro estadunidense, que sempre observa
seu público diante dele”, o que não é um obstáculo para admitir que “quando
deixa de ser estadunidense, quando esquece todo o público e nos dá sua pura
percepção do mundo, é maravilhoso e seu livro impõe um silêncio intimidado à
alma ”, que é como dizer que Melville foi um grande artista, apesar de sua
vontade. Virtude que infelizmente não chega a outras obras: sobre Pierre ou
as ambiguidades, escrito após Moby Dick e que deixou Borges não menos
perplexo que seus contemporâneos, diz José María Valverde – autor de uma
memorável tradução de Moby Dick – que é incrivelmente ruim; enquanto Mardi
foi qualificado pelo próprio Borges como inextricável e tedioso.
Em Moby
Dick, pelo contrário, o artista se sobrepõe ao moralista, de modo que os
fatos fabulosos do livro compensam facilmente a baixa monotonia de outras –
muito poucas – de suas páginas. Melville tem um talento admirável não apenas
para as artes narrativas, mas também para a descrição das cenas e coisas do
mar, uma prática que em outros autores poderia levar a um catálogo maçante de
expressões náuticas, mas que aqui resulta de uma comodidade esplêndida.
Melville não apenas sabe transformar em narração o processo técnico de abate e
esfolamento de uma baleia ou a descrição das mais variadas cenas do mar, mas
também o faz sem sobrecarregar o público com seu vocabulário, embora nem sempre
seja totalmente compreensível, por razões óbvias. Contra o que foi criticado –
e levando em conta a natureza do romance, que se estende por todo o mar – isto é,
contra acusações de presunção por um certo jargão ou um certo exibicionismo no
uso do vocabulário, diria-se que Melville se mostra contido e que não se pretende
ser enigmático ou ocultar qualquer detalhe do leitor por causa da linguagem
náutica. Pelo contrário, Melville não tem escrúpulos em demorar-se na
explicação de certos termos da navegação e pesca em alto mar. Ele é um homem
que conhece o mar, mas ele não é propriamente um homem do mar e isso é evidente
– sem mostrar nenhum defeito – na escrita do livro. Melville, como Tolstói, é
mais um pregador do que um homem de ação, embora nele o artista esteja acima do
moralista.
Vale a pena
perguntar se Moby Dick deve ser lido em chave alegórica ou como uma mera
narrativa de alguns eventos náuticos, e não apenas para esclarecer sua leitura,
mas também para esclarecer a função da alegoria. Do ponto de vista da
personagem de seu autor, pode-se inferir que Moby Dick será referida
como uma alegoria – mas uma alegoria do quê? – , apesar do que Melville oferece
em diferentes capítulos do romance, e o faz com total autoconfiança, as chaves
para transformá-la em uma mera história sem outro interesse senão mostrar a
vida do mar. É particularmente claro no capítulo quarenta e cinco, no qual,
antes de notificar os prodígios marinhos mais destacados, Melville intervém no
discurso de Ismael, o narrador do romance, com as seguintes palavras: “Tão
ignorantes estão a maioria dos terráqueos sobre algumas das mais claras e
palpáveis maravilhas do mundo [aquático], que sem algumas sugestões sobre os
fatos puros, históricos ou não, sobre a pesca, poderiam desprezar Moby Dick
como uma fábula monstruosa, ou ainda pior e mais detestável, como uma alegoria
horrível e intolerável.” E mais tarde, no mesmo capítulo noventa e nove, depois
de apresentar uma apologia da alegoria, Melville diz o seguinte: “Pena que não
há nada prodigioso nos sinais e nada significativo nas maravilhas”.
É o próprio autor
quem declara que o livro finge ser outra coisa que não uma alegoria, o que é
como dizer que ele não está interessado nos acontecimentos do mar, mas no seu
mero centro de fatos. Agora, não faltam quem viu isso – Borges viu – uma ironia
eloquente, de modo que Melville, ao sugerir que o livro é simbólico, declararia
enfaticamente que não o é, ou melhor, coloca essa ênfase na boca de Ismael.
Isso, que faz certo sentido, também pode ser verdade, apesar do que Ismael se
refere em outra parte do romance – e é preciso dizer que, de maneira textual,
isto é, o contrário do que a alegoria prescreve – toda a história como
resultado da mania perseguidora de Ahab, que vê na baleia signos que só existem
em sua imaginação e, por uma espécie de contágio, na imaginação de seus
marinheiros e oficiais, com exceção de Starbuck. A pretensão de Melville de que
toda essa aventura é resultada apenas da mente doentia de Ahab poderia ser
tomada como uma nova broma e que a única coisa que o autor pretende é atiçar o
espectador pela enésima vez, mas pela extensão e pelas frequentes alusões a
essas passagens não parece tolice suspeitar que Melville lhes atribuísse, pelo
menos, um ponto de verdade.
“Desde
aquele encontro quase fatal, Ahab abrigou um desejo louco de vingança contra a
baleia, caindo ainda mais em seu frenesi mórbido porque acabou se identificando
com a baleia não apenas todos os seus males corporais, mas todas as suas
exasperações intelectuais e espirituais. A baleia branca nadava diante dele
como uma encarnação monomaníaca de todos aqueles elementos maliciosos que
alguns homens profundos sentem que devoram seu interior”, conta Ismael depois
de se referir ao primeiro ataque da baleia e Ahab, em que ele perde uma perna.
E o mesmo é dito mais tarde: “Tudo o que quebra os nervos e endurece o cérebro,
todos os sutis demônios da vida e do pensamento, todos os males, para o louco
Ahab, eram visivelmente personificados e podiam ser praticamente alcançados em
Moby Dick. Na corcunda branca da baleia acumulava a soma universal de ódio e de
raiva que toda a sua raça sentiu desde Adão.” E assim, pouco antes de Moby
Dick, depois de uma prolongada perseguição ao largo de meio mundo, ser avistada
por Ahab e fulmine com um ataque os sonhos de sua tripulação, Melville faz o
capitão declarar sua própria loucura: “Sim, sim! Que loucura de quarenta anos! –
e aqui o leitor pode adivinhar a idade de Ahab: cinquenta e oito anos, porque
aos dezoito anos embarcou pela primeira vez – louco, louco! Velho louco tem
sido o velho Ahab! Por que esse esforço de perseguição? Por que fadigar e
paralisar o braço no remo, no arpão e na lança? O que Ahab ganhou ou melhorou
com isso?”; tudo o que permitiria definir o capitão Ahab, entre outras coisas,
como monomaníaco – o diagnóstico é de Harold Bloom – e também como um idealista
atormentado, que busca justiça em termos humanos: Ahab, segundo Bloom, não é um
homem teocêntrico, mas um homem divino e ímpio para quem a vingança é tudo.
Essa
ambiguidade do caráter de Ahab – que pode ser referido como um ser
extraordinário ou um maluco – serve até como pretexto para Melville para a
próxima broma. No capítulo cento e seis, refere-se a um infeliz acidente de Ahab
– como resultado de sua perna de marfim quase perfurar sua virilha – o que dá
origem a um discurso declamatório sensacional no qual Melville diz, entre
outras maravilhas, que “certas misérias mortais engendrarão com fecundidade uma
progênie eternamente progressiva” e também que “nem os próprios deuses são
alegres para sempre”e assim por diante, depois do que Melville conclui que,
tenham a ver ou não os vingativos deuses e os poderes de fogo com o Ahab terrestre,
este, na presente questão de sua perna machucada, tomou medidas práticas
simples: “chamou o carpinteiro”. E a mesma coisa mais tarde – capítulo cento e
treze –, Melville põe na boca de Ahab algumas palavras irônicas, de modo que
depois de fazer um discurso com um repertório muito rico de metáforas sobre a
cicatriz que cobre sua testa, Ahab conclui sua dissertação expressando a Perth,
um ferreiro de Pequod, que basta já de brincadeiras de crianças, que é como
dizer “basta de adivinhações” e reconhecer a loucura de atribuir significados a
quantos sinais aparentes cruzam nosso corpo e abandonar-se ao antigo costume de
procurar símbolos nos fatos casual de nossas vidas.
A
alegoria é sutil
Moby Dick,
que poderia ser entendida como alegoria do mal, seria descrita como a narrativa
de um delírio coletivo – o da tripulação do pesqueiro Pequod – desencadeada pela
loucura de seu capitão. Em outras palavras: enquanto uma fração considerável do
público leitor sentirá admiração pela mera sucessão de eventos que constituem a
narrativa – e isso ainda advertindo alguns de seus ensinamentos – e se referirá
em termos complementares ao talento narrativo de seu autor, outra parte não verá
na história mais que uma bela alegoria e ainda cada um verá a alegoria de um perspectiva
diferente. Javier Cercas sustenta que a baleia branca pode representar tanto a
personificação do mal quanto a personificação do bem. E mais: decidir de maneira
justa sobre – isto é, determinar ou não determinar o caráter simbólico de Moby
Dick – é uma empresa fadada ao fracasso, um exercício que nem o próprio
Melville teria resolvido com satisfação, já que um escritor pode inventar um
fábula, mas ele não tem permissão – como Borges e Kipling acreditavam – de
conhecer sua moral. De resto, que Moby Dick pode ser um romance
entendido de ambos as formas – de uma forma alegórica ou não – não é uma condição
estranha à sua fortuna.
Felix de
Azúa explicou que as alegorias da baleia devem ser, de qualquer forma,
infinitas, pois não é típico da alegoria ser compactada em um único
significado. A alegoria como história que repete outra sem grandes obstáculos e
que permanece apenas na mera cópia de um significado em um novo significante,
tudo isso nada mais é do que uma aberração da estética. A alegoria deve, pelo
menos, se curvar sobre si mesma e se estender a inúmeras ramificações, para que
sua explicação nunca se esgote. Para ser imortal, uma obra deve abrigar tantos
sentidos que não se pode compreender e apreciar todos.
Sebastián de
Covarrubias define, em seu Tesouro da língua castelhana ou espanhola, a
alegoria como “uma figura, próxima à compreensão dos retóricos, para quem as
palavras que dizemos sintetizam uma coisa e a intenção com a qual as
pronunciamos é outra; e consiste em muitas metáforas juntas.” O caso é o
significado dessas metáforas juntas ou, para ser mais preciso, o sentido da
soma dessas imagens e suas evidências, bem como o risco de o alegorista correr
de cair na banalidade.
Walter
Benjamin argumenta que a alegoria é geralmente uma superabundância de
significantes sem significados, e que sempre que aparece, um olhar desolado
ocorre. E Ferrer Lerín condena a alegoria como a busca infrutífera pelos “três
pés do gato”, de modo que o que mais lhe agrada é a superfície. Para este
exemplo, os Emblemas morales de Juan de Horozco e Covarrubias, irmão de
Sebastián, cônego de Sevilha e bispo de Agrigento e Guadix, que compuseram essa
obra com cerca de cem figuras ou esboços alegóricos, sublinhados por um breve lema
e um comentário didático, que não têm outro valor que a mão do artista
desconhecido que os desenhou, e que existe uma intenção clara.
A alegoria,
dessa maneira, é algo diferente de um enigma. Pode-se acrescentar que a
alegoria não deve ser evidente ou nem saltar à vista, com a única exceção,
talvez, de Bola de sebo de Maupassant. Em outras palavras, a alegoria
deve ter a virtude da discrição: ficar sem parecer estar. Borges, que refletiu
em abundância sobre, descreve o prazer de ler como “a iminência de uma revelação
que, em última análise, não ocorre”. Ou seja, o leitor deve reconhecer que “algo”
está oculto por trás da história, mas não a natureza desse “algo”, ou de outra
forma se perderia, nos termos de Henry James, a “sensação de vida” da narrativa.
Além disso, Borges ilustrou a natureza da alegoria com alguns exemplos gráficos
em seus ensaios de juventude e mesmo em sua palestra sobre Nathaniel Hawthorne
aparecida em Outras inquisições. Borges diz que Hawthorne – mestre declarado
de Melville a quem Moby Dick é dedicado – foi acusado por Edgar A. Poe
de alegorizar, por isso pretende investigar, primeiro, se o gênero alegórico é
ilegal e, segundo, se Hawthorne incorreu nesse gênero. Para isso, Borges
primeiro reproduz uma refutação da alegoria, fornecendo um argumento de Croce,
e depois uma refutação dessa refutação inspirada em um texto de Chesterton.
De acordo
com o ensaio acima mencionado, Croce acusa a alegoria de ser um pleonasmo
cansativo, um jogo de repetições vãs, que primeiro nos mostra Dante guiado por Virgílio
e Beatriz e depois explica, ou nos faz entender, que Dante é a alma, Virgílio,
a filosofia ou razão ou luz natural, e Beatriz a teologia ou graça. Segundo o
argumento de Croce, já que o exemplo não é dele – e devemos deduzir que é uma
invenção de Borges – Dante pensaria primeiro: “A razão e a fé trabalham para a
salvação das almas” ou “A filosofia e a teologia nos leva ao céu”, e então onde
pensou razão ou filosofia colocava Virgílio e onde pensou teologia
ou fé pôs Beatriz. A alegoria, de acordo com essa interpretação
desdenhosa, se tornaria um enigma, mais extenso, mais lento e muito mais
tedioso do que aqueles que enfrentamos na infância. Seria um gênero bárbaro, pura
distração da estética.
Croce
formulou essa refutação em 1907. Três anos antes de Chesterton já a havia negado
sem Croce a intuir. Chesterton diz que a realidade é de uma riqueza infinita e
que a linguagem dos homens não esgota esse fluxo vertiginoso: “o homem sabe que
há na alma tintas mais desconcertantes, mais numerosas e mais anônimas do que
as cores de uma floresta no outono. Ele acredita, no entanto, que essas tintas,
em todas as suas fusões e conversões, são representadas com precisão por um
mecanismo arbitrário de grunhidos e gritos. Acredita que do interior de uma
bolsa saem realmente surgem ruídos que significam todos os mistérios da memória
e todas as agonias do desejo.” E Chesterton acrescenta em seguida que pode
haver linguagens que de alguma forma abranjam a realidade inatingível e que
entre elas estaria a alegoria e a fábula. Em outras palavras: Beatriz não é um símbolo
da fé, um sinônimo laborioso e arbitrário da palavra fé; a
verdade é que, no mundo, há uma coisa – um sentimento peculiar, um processo
íntimo, uma série de estados análogos – que pode ser indicada por dois
símbolos: um, assaz pobre, o som fé; outra, Beatriz, a gloriosa Beatriz
que desceu do céu e deixou suas pegadas no inferno para salvar Dante. E Borges
conclui: “Não sei se a tese de Chesterton é válida; sei que uma alegoria é
tanto melhor quanto menos reduzível a um esquema, a um jogo frio de abstrações.”
Seja como
for – e independentemente de a fábula ser trazida ou não de acordo com a tese
de Chesterton – para o louvor de Borges, seria possível adicionar uma última condição,
a saber, que uma história enriqueça outra (isto é, seja alegoria ou fábula)
deve fazer sentido separadamente, isto é, deve caber à possibilidade de lê-la
como se tivéssemos apenas interesse em seus sucessos, sem necessidade de
prolongar seu prazer com exegese e comentários. Seria capaz – diz Tristram
Shandy – de andar cinquenta milhas, sem ter um cavalo à mão, beijar a mão
daqueles que tiveram a generosidade de deixar as rédeas de sua imaginação nas
mãos do autor, sem procurar por nenhum motivo e sem se preocupar com nada, nenhum
motivo especial.
Moby Dick,
estritamente falando, não tem significado. É o capitão Ahab – ou, na sua falta,
o leitor – que dota de conteúdo a baleia como resultado do conjunto de
situações enfrentadas por ele. De modo que só então, na contemplação pura e no
gozo da narrativa, podemos erguer uma ponte a outra história e fazer com que a
alegoria faça sentido. Ou também: somente quando o segundo nível de leitura não
é imperativo e o leitor pode realizar o trabalho sem se tornar um comentarista;
somente quando o autor não o forçar a fazer perguntas ou impor-lhe um dever
maior do que se deixar levar pelo prazer dos fatos – o u, no máximo: pela
intuição de que há algo por trás desses fatos –, somente então nos
encontraremos diante uma obra digna de admiração e gratidão. O resto, todo esse
árduo jogo de espelhos, fábulas e enigmas, pode ser filologia, cabala ou
hermenêutica, mas não estritamente literatura.
* As
traduções das citações ao longo do texto são a partir do texto em espanhol. Este texto é a tradução de "Moby Dick y la alegoría" publicado aqui em Letras Libres.
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