Harold Bloom, guardião do cânone ocidental
Por Pedro
Fernandes
“A ideia de
que beneficiamos os humilhados e ofendidos lendo alguém das origens em vez de
ler Shakespeare, é uma das mais curiosas ilusões já promovidas por ou em nossas
escolas.”
No início de
2019 revisitei O cânone ocidental — de onde é pinçada a
frase acima. Este é talvez um dos textos de crítica literária mais lidos ao
redor do mundo; até este ano aparece publicado em mais de quarenta idiomas. É
também um dos mais contundentes da crítica literária, por mais
controverso que pareça aos olhos de muitos aferrados à desconstrução ou de puros
inimigos do conservadorismo. Mas denuncia que o seu autor era um homem de
rigor.
Possivelmente, tão cedo não teremos outra figura capaz de construir enfrentamentos com perspicácia e
grande fôlego. Sim, os ambientes intelectuais como os por onde circulou estão
empestados de senhores vestidos de convicções, de opiniões, de alguma
sagacidade, enquanto do que mais carecem é de rigor, perspicácia e fôlego.
Harold Bloom,
o nome em questão nestas anotações, deixa-nos ainda outro legado: o do leitor
irrequieto. Nasceu no bairro novaiorquino do Bronx, no interior de uma família
judia ortodoxa de emigrantes vindos da Europa Oriental. O mais novo de cinco
irmãos desenvolveu o gosto pela leitura entre obras de variada espécie na sede
da Biblioteca Pública da Nova York e depois, de maneira sistemática, por entre o grande
cânone; seu doutorado na Universidade de Yale, onde voltaria mais tarde como
professor, foi sobre a poesia de Shelley.
Foi um dos
últimos do conhecimento enciclopédico – afirmação que se utiliza do vasto
universo literário com o qual manteve contato, sempre tendo em Shakespeare o
farol com que dizia iluminar todo o universo que chamou de cânone ocidental, e
da vasta obra que escreveu, esta constituída por cerca de quatro dezenas de
títulos. Harold Bloom parte num tempo quando o conhecimento e as enciclopédias
são transformados em coisa de baixa valia, uma era estupidamente marcada pelo
achismo de redutos ideológicos fortemente acirrados.
Classificado
como conservador, não deixou de se levantar contra as políticas de dilapidação
das hegemonias do literário, o que não significa dizer que era um leitor
desatento às criações do seu tempo. Essa compreensão envolve problematizar a
acusação feita contra ele segundo a qual era um genuíno baluarte da tradição ultrapassada
e segregadora, insensível às aberturas fundamentais a que se propunham os acalorados
debates sobre os limites do canônico.
Diante da
pergunta sobre o que torna um autor ou uma obra canônica, assinala (e assumo o
tom presente porque fica-nos a obra como permanência de sua voz) que, na
maioria das vezes, é o que se designa como “um tipo de originalidade”. Esse
princípio é constituído por padrões como a novidade e a inovação, certa herança
tardia do Romantismo, já que foi nesse período quando os escritores estiveram motivados
a, em nome do princípio individual, abolir os critérios e as regras clássicas
que determinavam a então originalidade da obra. Mas, esta constatação do crítico
estadunidense está longe de significar qualquer rebeldia ao estilo do que se aperfeiçoaria
na modernidade; sua noção de cânone reveste-se dos mesmos princípios de sagração
ao filiar a gênese de sua ordem no arquétipo de J., a primeira autora dos
primeiros textos do cânone ocidental, o que hoje lemos como Gênesis, Êxodo e
Números. Note-se a conotação de sagrado não se resume à ideia religiosa, mas
aos princípios da inventividade e da criatividade.
Para Bloom, o
cânone não é coletivo, como uma lista de leituras obrigatórias, e sim, uma
relação solitária do escritor que aspira ao estético; assim, todo o labor criativo
lida com a possibilidade de subversão da morte e a ultrapassagem da barreira
que separa o mortal do eterno. Essa concepção encontra princípios em pelo menos
outras três ocasiões: no conceituado por Petrarca, na práxis shakespeariana, como
elemento de louvor na Divina comédia de Dante, ou originalmente, como
apresenta Ernst Robert Curtius na fama poética na Ilíada, de Homero e nas Odes, de Horácio. A determinação desses
lugares leva o crítico a considerar que qualquer escritor situado na posteridade
traz consigo a angústia da influência, um conceito formulado por ele que é a um
só tempo uma categoria tipológica e uma figura engendrada numa complexa relação
de ordem psíquica, histórica, imagística e textual que determina a tradição
poética.
A primeira
impressão que se identifica na leitura de Harold Bloom sobre o cânone ocidental
é que este se institua como ordem fixa e infalível. Outra falsa acusação. É
impossível a compreensão do cânone como um princípio imutável e a sua noção
sobre a angústia da influência como algo que tem de ser carregado e se se quer
atingir uma originalidade dentro da riqueza da tradição subvertendo seu pai denota isso.
Outro elemento importante de sublinhar – e como este primeiro, se constitui num
operatório dos enganos sobre o pensamento do crítico estadunidense – reside na
reafirmação da tradição como mera transmissão de sucessão ao longo da história.
A tradição é
uma zona de conflito entre o gênio passado e a aspiração presente e o prêmio é
a sobrevivência ou inclusão no cânone. Isto é, essa noção alimenta-se do que T.
S. Eliot designa em seu “Tradição e talento individual”: a tradição não é um fechamento
que obrigue o presente a repetir nos mesmos moldes o passado e sim ponto de
embate. Por essa razão, Bloom se posiciona que as defesas do cânone têm sido
tão perniciosas quanto os ataques; sobretudo os ataques porque teimam em
reduzi-lo a uma força ideológica.
Para ele, o
estético não é produção que se constitua na mesma correnteza das determinações
históricas e por isso mesmo só pode ser compreendido na obra em sua relação com
a tradição; o estético é uma condição individual proposta na relação do escritor
com sua tradição. Por isso, a filiação da obra a determinada ordem ideológica parece
significar a primeira condição de seu fracasso ante o cânone, porque, o escritor
é sempre o indivíduo compromissado para o estético e contra ele um subversivo.
Ainda em O cânone ocidental repara que o escritor
só entra para o cânone pela força poética, que se designa basicamente pelo domínio
pleno da linguagem figurativa, originalidade, poder cognitivo, conhecimento e
dicção exuberante. Embora não seja uma unidade ou uma estrutura estável, o cânone
ocidental existe para impor limites, para estabelecer um padrão de medidas; sua
existência, ao invés de ser um capital cultural, anota o crítico, é praticamente
autônoma, uma vez que ninguém tem autoridade para dizer o que é o cânone ocidental.
No epicentro
de debates tão fundamentais, sempre, como se vê, foi autor de uma posição
firme. E o seu primado foi o estético-formal do literário, uma posição muitas
vezes radical assumida contra o levante dos estudos culturais nos Estados
Unidos, este terremoto cujos sismos só agora, quase três décadas depois, passam
a ser sentidos no Brasil com os mesmos efeitos de então: favoráveis alguns e
fatalmente condenáveis outros. A este fenômeno chamava de escola do
ressentimento.
Bom, como
prova sobre sua leitura acerca da mobilidade do cânone, parece interessante
citar a atenção que o crítico depositou pela obra de José Saramago e os altos e
baixos dessa relação de leitor. “Lendo Saramago sinto-me como Ulisses tentando prender
Proteu, o deus metamórfico do oceano; ele passa o tempo todo a escapar”. A
frase abre um texto no qual visita os principais romances do escritor
português, principalmente, O evangelho segundo Jesus Cristo, para
ele uma obra-prima junto a O ano da morte de Ricardo Reis. O texto
em questão foi publicado como introdução a um importante trabalho organizado
por ele com leituras das mais diversas e fundamentais aos estudos saramaguianos;
publicado em 2005, José Saramago integra uma prestigiada
coleção de estudos críticos sobre as obras mais importantes da literatura
universal.
Reiteradas
vezes depois o crítico estadunidense voltou a falar sobre a obra saramaguiana
no tom elogioso que a colocava em relação a nomes com Philip Roth e mesmo o
bardo inglês; mas, também em tom de enfrentamento, como quando escreveu
sobre Caim, romance classificado por ele como “um erro, mas que não
deve macular o nosso sentimento de uma partida gloriosa”.
A opinião
diversa, as vezes paradoxal, em relação à literatura de Saramago, está,
certamente, em toda sua vasta obra crítica, o que o reafirma homem de
convicções não fixadas mas em constante reelaboração. Está aqui uma
qualidade que parece fundamental à formação de todo importante crítico, porque
não se lida com rigor, perspicácia e fôlego sem acompanhar muito de perto os
múltiplos relevos da criação. O paradoxo é, assim, uma qualidade criativa. É uma
maneira, enfim, de se relacionar com os volteios do pensamento – que é isso,
afinal o itinerário de toda crítica.
Quer dizer,
nele se completavam duas condições essenciais para tanto: a sede de saber e a
seriedade do trabalho de ler. Afinal, crítico e leitor ocupam o mesmo lugar. Ou
devem. Só assim é capaz de oferecer uma resposta sobre as questões que toda
obra nos coloca, o acréscimo essencial ao lido. Que sua obra possa oferecer
caminhos outros para nós leitores principiantes.
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