Boletim Letras 360º #344
Como poderão acompanhar na leitura desta edição do Boletim Letras 360º, esta foi uma semana extremamente agitada. Alguém poderia dizer que o simples anúncio num só dia de dois galardoados com o Prêmio Nobel de Literatura já seria o diferente e atípico, mas não foi apenas isso o que se passou; deem uma olhada e poderão construir suas próprias conclusões.
Chico Buarque publica novo romance, o primeiro depois do Prêmio Camões. |
Segunda-feira,
7 de outubro
Obra-prima
do jornalismo literário ganha edição no Brasil
W. L.
Tochman, um dos mais respeitados repórteres poloneses, nos conduz pelas
cicatrizes de um país inteiro, pelos corpos, pela terra, para nos contar sobre
o genocídio ruandês de 1994 e suas consequências. O que acontece com as
vítimas, com os culpados e conosco que fomos testemunhas? Com um estilo que
prende o leitor à página, Tochman consegue dar voz aos sobreviventes, aos
carnífices e até mesmo aos lugares, semeando dúvidas e questionamentos dos
quais não podemos nos furtar. Hoje vamos desenhar a morte é uma obra-prima de
jornalismo literário. A tradução de Eneida Favre sai pela Editora Âyiné.
Carta rara
de Jane Austen à irmã será vendida em leilão
Chapéus com
“grandes laços cheios de fita muito estreita” eram o auge da moda em 1813, pelo
menos de acordo com Jane Austen , que informa sua irmã Cassandra sobre as
últimas tendências em uma rara carta que será leiloada na Bonhams em Nova York
no próximo mês. As cartas da escritora raramente são leiloadas, porque
Cassandra e outros membros da família do romancista destruíram a maioria delas
na década de 1840. Das cerca de 3.000 missivas escritas por Austen, apenas 161
sobreviveram, das quais 95 são para Cassandra. A carta de agora tem quatro
páginas, data de 16 de setembro de 1813 e foi escrita logo após a publicação de
Orgulho e preconceito. Lidando com tudo, desde uma ida ao dentista
com suas sobrinhas e a saúde de sua mãe (Austen espera que ela “não
precise mais de sanguessugas”), é “uma joia”, segundo Kathryn
Sutherland, estudiosa e curadora de Austen. Museu da Casa de Jane Austen.
Bonhams, que leiloará a carta em 23 de outubro, disse que o texto é “recheado de detalhes, inteligência e charme”, ecoando vividamente o
mundo habilmente retratado em seus romances. A casa acredita que a carta, que
está em uma coleção particular desde 1909, busca entre 65.000 e 97.000 libras
com o leilão.
Livro de
cartas de Carlos Drummond de Andrade revela poemas inéditos do poeta
Duas
influências decisivas contribuíram para a formação intelectual de Carlos
Drummond de Andrade. A primeira é a do grupo de amigos que encontrou em Belo
Horizonte nos anos 1920: Martins de Almeida, Emílio Moura, Pedro Nava, Aníbal
Machado e outros jovens que se reuniam em torno do Café Estrela e da Livraria
Alves para debater ideias e preferências literárias. Esse grupo ajudou na
fixação de suas convicções como escritor. A segunda é decorrente da troca de
correspondência com escritores mais velhos e do exterior. Os principais
interlocutores neste caso foram Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Ribeiro
Couto. A correspondência aqui publicada procura iluminar essa interlocução
entre dois dos grandes intelectuais brasileiros do século XX, ao mesmo tempo
que contribui para o resgate recente de Ribeiro Couto, esse importante
personagem da história literária nacional. Couto, diplomata de carreira, passou
os vinte últimos anos da vida afastado do Brasil, morando em Lisboa, Genebra e
Belgrado, em um exílio que prejudicou a permanência de seu nome. As missivas de
Ribeiro Couto têm um estilo delicioso, que Drummond procurou acompanhar com a
mesma verve. Esse zelo epistolar de parte a parte torna o diálogo bastante
saboroso e faz desta correspondência uma leitura atrativa tanto ao pesquisador
de literatura quanto aos leitores em geral. Organizado por Marcelo Bortoloti,
uma das curiosidades do livro, é a apresentação de alguns poemas inéditos do
poeta mineiro. O livro é publicado pela Editora Unesp.
Terça-feira,
8 de outubro
Afonso Reis
Cabral é o vencedor da edição de 2019 do Prêmio Literário José Saramago
O anúncio
foi feito na sede da Fundação José Saramago, na Casa dos Bicos, em Lisboa. O
escritor recebe o galardão por Pão de Açúcar. Narrado na primeira
pessoa, o romance publicado em setembro de 2018 pela editora portuguesa Dom
Quixote, parte da história verídica do assassinato de Gisberta, na cidade do
Porto, em 2006. Segundo Ana Paula Tavares, membro do júri do
Prêmio Saramago, o romance “lida com o espesso e confuso mundo da memória
e retira do esquecimento acontecimentos que os jornais e os relatórios da
polícia tinham tratado de forma redutora e parcial com silêncios e omissões que
o autor se propõe aqui a revelar”. No Brasil, os leitores têm acesso a O
meu irmão, seu livro de estreia e com o qual foi vencedor do Prêmio LeYa.
2020,
um ano para celebrar os 100 anos de João Cabral de Melo Neto
O próximo
ano é bem ali. E será ano de contravenção: celebrar um nome que foi avesso às
celebrações. Entre as previsões editoriais estão a publicação de uma
fotobiografia cf. já anunciamos aqui uma vez, um livro de entrevistas e dois
exemplares reunindo a obra completa, a poesia e os textos em prosa. A
fotobiografia é organizada por Eucanaã Ferraz e sai pela editora Verso. A ideia
surgiu ao analisar as fotos compiladas para a obra que uniu as gravuras do
pintor espanhol Joan Miró e os escritos inéditos de João Cabral, feita
originalmente na década de 1950, em Barcelona, e reeditada no ano passado. O
segundo título é Recife/Sevilha – Conversas com João Cabral de Melo Neto,
previsto para janeiro pela Autêntica. E previsão da obra completa a sair pela
Alfaguara é o segundo semestre do ano.
Quarta-feira,
9 de outubro
A trajetória
de um dos santos mais populares do mundo narrada por Hermann Hesse
Desde muito
jovem, Hermann Hesse era fascinado pela figura de São Francisco de Assis. De
alguma forma, o santo era como um amigo distante, um farol em sua vida. Sua
determinação e seu comportamento maravilhavam Hesse. Francisco de Assis sempre
foi até o fim com aquilo que queria fazer e não pregou “nada que ele próprio
não pudesse cumprir diariamente, embasando e apoiando a doutrina no
exemplo”. Ou seja, Francisco admirava uma ética que estava ligada à beleza e ao
desejo de harmonia. Esse amor pode ser encontrado em outras obras de Hesse: Narciso e Goldmund, O lobo da estepe e até mesmo Demian. Nas páginas desses livros, é possível perceber a sombra
tutelar de seu santo favorito, como um modelo de comportamento e como medida de
excelência humana. Conhecemos esses romances, mas não conhecíamos esse belo
livro dedicado inteiramente a são Francisco de Assis, que é ao mesmo tempo uma
biografia e uma bela obra literária. Com uma escrita que oscila entre a lenda,
a fábula e o ensaio, Francisco de Assis é uma tentativa
bem-sucedida de fazer uma testemunha silenciosa dos tempos antigos voltar a
falar. Um livro escrito por admiração e devoção, cujo resultado é um texto
surpreendente e comovente.
Romance de
predileção de Gabriel García Márquez, A praça do Diamante
Na Barcelona
da década de 1930, Colometa, jovem balconista de uma loja de doces, leva uma
vida banal ao lado do pai. Durante um baile na praça do Diamante, Colometa
conhece Quimet, um jovem impetuoso que se tornará seu marido. Com ele, tem dois
filhos e passa a criar pombos. A Guerra Civil toma de assalto a cidade, e aos
poucos o universo de Colometa se desintegra. O marido parte para a luta, a
comida acaba e os pombos representam um jugo insuportável. Num monólogo de
profunda densidade psicológica, Mercè Rodoreda contrapõe o sofrimento pessoal
de Colometa à dor coletiva de uma Espanha assolada pela Guerra Civil, exausta e
faminta. A suposta ingenuidade da protagonista, sempre à mercê dos
acontecimentos e das pessoas ao seu redor, aparece nas entrelinhas de A
praça do Diamante, por meio de uma linguagem envolvente, utilizada às vezes
em sentido ambíguo, com uma discreta ironia, além de toques de crueldade,
agressividade e grande lirismo. Publicado originalmente em 1962, o livro vendeu
mais de 250 mil cópias na Espanha e foi adaptado para cinema e teatro em muitos
países. Além de ser considerada uma das melhores obras já escritas em língua
catalã, foi o primeiro livro de Rodoreda publicado no Brasil, traduzido direto
do original. A edição é da Planeta Brasil.
Edição
especial de 1984, de George Orwell
Em dezembro, uma das obras mais influentes do século XX ganha nova edição com
projeto especialíssimo assinado pelo estúdio Kiko Farkas – capa em tecido,
lombada impressa e uma série de obras da artista brasileira Regina Silveira –,
apresentação do professor e crítico Marcelo Pen e ampla fortuna crítica com
textos de gigantes como Golo Mann, Irving Howe, Raymond Williams, Thomas
Pynchon, Homi K. Bhabha, Martha C. Nussbaum, Bernard Crick e George Packer –
ensaios que dão conta da história da recepção crítica do livro desde o seu
lançamento, em 1949, até os dias de hoje, setenta anos depois. Com dezenas de
milhões de cópias vendidas em todo o mundo, 1984 continua sendo o
livro ao qual nos voltamos sempre que se mutila a verdade, distorce-se a
linguagem e viola-se o poder. A tradução é de Heloisa Jahn e Alexandre Hubner.
Romance
inovador de Gertrude Stein em edição também inovadora
Ida Um
romance, de Gertrude Stein, narra a história de uma personalidade pública tão
pública a ponto de não existir mais personalidade. Publicada em 1941, a obra
que a PONTOEDITA lança agora em tradução de Luís Protásio é um comentário sobre
a cultura da fama e o tema da identidade. A edição traz textos de apresentação
da cantora Badi Assad e do ator e dramaturgo Luiz Päetow, uma reunião inédita
de nove composições de Stein, um texto de Sherwood Anderson apresentando a
escritora e um posfácio do tradutor. Com aspectos de romance de formação e
traços autobiográficos, a narrativa acompanha a trajetória de Ida, uma mulher
cuja vida consiste em descansar, passear, falar sozinha, mudar-se, ter vários
cachorros, ter vários maridos. Descrito à época pelo New York Times como
“romance curto, poema longo ou conto de fadas moderno; ou, ainda, uma pintura
com palavras que lembra mais Dali do que Picasso”, o livro foi inspirado em
Wallis Simpson, a figura no centro da crise que levou Eduardo VIII a abdicar do
trono do Reino Unido em 1936. Ao combinar Helena de Troia, Dulcineia, Greta
Garbo e a Duquesa de Windsor, como sugere o crítico Donald Sutherland, Gertrude
Stein cria uma mulher que não se conforma a padrões pré-definidos e luta pelo
direito de ser o que ela desejar ser. O projeto gráfico concebe o livro como um
objeto que questiona a própria identidade do livro e mimetiza instâncias da
fama. Os textos de abertura (uma crônica poética de Badi Assad e uma cápsula
teatral de Luiz Päetow) são impressos em uma lâmina que só os revela à medida
que é desdobrada, oferecendo uma experiência concreta que prepara o leitor para
a aventura no labirinto poético do texto de Stein. O formato, estreito e alto,
remete a uma coluna de jornal por onde os acontecimentos da vida de Ida
desfilam como um cortejo de notícias, fofocas e lembranças. O alinhamento à
esquerda remete à sinuosidade do texto poético e traduz de forma gráfica o
fraseio de Stein. A edição inclui também fotografias de Carl Van Vechten e
desenhos de Pedro Monfort, que assina a capa do volume: uma versão totêmica de
Basket, o icônico poodle de Stein e Toklas.
Quinta-feira,
10 de outubro
O Prêmio
Nobel de Literatura 2018 é da escritora polonesa Olga Tokarczuk. E o de 2019,
do austríaco Peter Handke
Olga
Tokarczuk é escritora e ativista. Em 2018, recebeu o Man Booker International
pelo livro Os Vagantes (Tinta Negra, 2014); no ano passado a
Todavia comprou os direitos do mais recente livro da polonesa — Sobre os ossos
dos mortos — e publica-o em novembro cf. se lê na notícia a seguir. Na clássica síntese da
justificativa oferecida pela Academia Sueca, o Nobel é por “sua
narrativa imaginativa que com paixão enciclopédica representa o cruzar de
fronteiras como forma de vida”. Sua obra-prima, cita a academia, é Ksiegi Jakubowe (Os livros de Jacob, em tradução livre a partir do
inglês), de 2014, em que “seu trabalho mostrou a suprema capacidade de um
romance representar um caso praticamente além da compreensão humana”.
Peter Handke
é autor de vasta obra: teatro, romances, poesia, roteiros para o cinema. Para a
Academia, ele “é um dos mais influentes escritores da Europa após a
Segunda Guerra Mundial”. É há muito conhecido entre nós por obras como A repetição (Editora Rocco, 1988), A ausência (Editora
Rocco, 1989), História de uma infância (Companhia das Letras, 1990), Don Juan (narrado por ele mesmo) (Estação Liberdade, 2007) e A
perda da imagem ou através da Sierra de Gredos (Estação Liberdade, 2009).
Handke foi citado por “seu influente trabalho que com extrema
inventividade linguística explorou a periferia e a especificidade da
experiência humana”.
A Todavia
anuncia o segundo título no Brasil de Olga Tokarczuk, ganhadora do Prêmio Nobel
de Literatura 2018
Sobre
os ossos dos mortos é apresentado como subversivo, macabro e discutindo
temas como mundo natural e civilização. O livro parte de uma história de crime
e investigação convencional para se converter numa espécie de suspense
existencial. “Uma das grandes vozes humanistas da Europa”, segundo o jornal The Guardian, Olga Tokarczuk oferece um romance instigante sobre
temas como loucura, injustiça e direitos dos animais.
Novo romance
de Chico Buarque chega às livrarias na primeira quinzena de novembro
Há pontos de
contato entre Chico Buarque e o protagonista de Essa gente. Além de
ser escritor, Manuel Duarte tem esse sobrenome de perfil vocálico idêntico e
gosta de bater perna atrás de inspiração nos arredores do Leblon, onde voltou a
morar após o fim de seu último casamento. Embora seja quase inevitável buscar
alusões autobiográficas no novo romance de Chico — o primeiro após a
consagração com o Prêmio Camões —, o leitor não demorará a descobrir que tal
linha de pensamento conduz a um beco sem saída. Na melhor das hipóteses, lhe dá
a posse de uma chave que pode abrir uma ou outra porta, mas não todas. Essa não
será a única pista falsa antes do ponto-final. Essa gente é, entre
os romances de Chico, o mais áspero e possivelmente o mais enigmático. A história
contada em forma de pequenos capítulos de diário, quase todos datados de um
passado tão recente que se pode chamar de atualidade, é mais um de seus
quebra-cabeças narrativos com fumaças de literatura policial. No entanto, a
reflexão sobre a linguagem que é uma dimensão estruturante das ficções
buarquianas se ancora desta vez no estilo mais imediato de todos: o do
apontamento rápido, feito para auxiliar a memória do próprio apontador no
futuro, quando houver distância e lucidez para transformar o tumulto do
presente numa história redonda. Sim, estamos no nebuloso país do agora. A parte
da brincadeira que cabe ao leitor é mais decisiva do que nunca. Autor de diversos livros, entre eles um Best-Seller já entrado em anos chamado O Eunuco do Paço Real, Duarte é um escritor decadente às voltas com
uma pindaíba total, tanto financeira quanto afetiva. Tem um filho
pré-adolescente com quem é incapaz de trocar uma única palavra. Está sempre em
busca de um modo de descolar dinheiro — seja arrancando mais um adiantamento de
seu editor paulista, seja apelando à generosidade arisca de um amigo
bem-sucedido. Com uma mistura de hiperatividade e inação, ricocheteia entre
suas duas ex-mulheres, uma tradutora intelectual e uma decoradora perua, e um
número não especificado de putas. Enquanto isso, à sua volta, o Rio de Janeiro
sangra e estrebucha sob o flagelo de feridas sociais finalmente supuradas,
exibidas por muitos com uma espécie doentia de orgulho. O distanciamento
emocional vagamente camusiano com que Duarte fala dessas ruínas, tanto a
pessoal quanto a coletiva, eximindo-se de juízos históricos ou mesmo de
indignação, dá ao livro um tom de farsa — não ligeira mas grave, encharcada de
humor negro. Logo de saída, a comédia sombria se escancara na subtrama dos
castrati: um pastor neopentecostal e um maestro italiano estão castrando jovens
pobres dos morros cariocas, com a anuência de suas famílias, a fim de abastecer
o mercado do canto lírico internacional. Será que estamos diante de uma
alegoria poderosa da emasculação de um povo? Pode ser, mas talvez isso só
exista na ficção que Duarte tenta escrever, alegoria de alegoria, retomando um
tema presente em O Eunuco do Paço Real. Essa e outras fronteiras
entre vida, imaginação, sonho e delírio vão sendo borradas pelo autor — e aqui
falamos de Chico Buarque — com um sorriso que quase se deixa entrever nas
páginas. A montagem do quebra-cabeça se complica mais um pouco quando outros
narradores se apresentam, das ex-mulheres de Duarte a uma vizinha enxerida que
lhe é uma completa estranha, sem falar de uma voz que narra em terceira pessoa.
Vai ficando claro que o “diário” é um estratagema literário de Duarte, o
próprio livro que ele tenta escrever, embora também essa chave encontre seu
limite quando, nas últimas páginas, o formato se prolonga além de toda
verossimilhança para dar o toque final numa charada que o autor capricha em
deixar sem solução. Uma informação jogada então com sugestiva ausência de
ênfase, a de que o computador do protagonista estava vazio de textos, chega a
acenar com a não existência do próprio livro que se acabou de ler. Romance urgente, colado corajosamente na opacidade do agora, Essa
gente é, numa primeira leitura, uma comédia de costumes tão divertida
quanto cruel. É também um engenho narrativo feito para empurrar até o futuro
possível — algum momento após o fim da leitura — o caimento da ficha
derradeira: a compreensão de que, enquanto Duarte nos conduzia pelas tortuosas
vielas literárias de sua história mundana, alegórica, metalinguística, o mais importante
ocorria ao seu redor. O foco se desloca então da “literatura” para a paisagem,
a chapa quente carioca compartilhada pela classe média alta do Leblon e pela
mistura de classe média baixa, pobreza e miséria da vizinha favela do Vidigal.
Terminada a leitura, o livro nos intima a virá-lo do avesso, transformando
fundo em forma e desviando os olhos da história para a História. Nessa nova
perspectiva, os personagens principais se tornam com clareza dolorosa a
violência letal da polícia contra “essa gente”, a humilhação dos porteiros, o
espancamento gratuito do mendigo pelo sócio do Country Club, o bullying sofrido
na escola pelo filho de esquerdistas, o alagamento apocalíptico das ruas em
dias de chuva, as pedras que ameaçam deletar o morro, a falência material e
moral de uma cidade que já foi símbolo de uma nação — talvez ainda seja. Que a
única redenção possível venha do olhar de uma ruiva gringa apaixonada pela
fantasia do Orfeu do Carnaval é parte do humor dilacerante da primeira obra
literária de vulto a encarar o tema do Brasil bolsonarista. Pensando bem, essa
gente somos todos nós.
Dois novos títulos da coleção Biblioteca Áurea,
da Nova Fronteira
1. O abismo, de Charles Dickens
Charles
Dickens foi um dos escritores mais populares da era vitoriana. Suas obras
abarcam as diversas esferas do cotidiano, trazendo à tona uma crítica social
que modificou a história da literatura. A amizade com o romancista e dramaturgo
Wilkie Collins, um dos precursores do gênero policial, resultou nesta obra a
quatro mãos, que traz o que há de mais emblemático na escrita dos dois autores.
Publicado originalmente em 1867, tanto em texto teatral quanto em romance, o
abismo conta a jornada de Walter Wilding, um rico comerciante de vinhos que
leva uma vida de fortuna e prestígio. Após a morte da mãe, Wilding descobre que
não é seu filho legítimo. Corroído pela culpa de ter usurpado a identidade e a
herança de outro homem, ele decide, então, procurar esse duplo desconhecido.
Com uma narrativa de tirar o fôlego, a trama combina a atmosfera única e as
personagens bem delineadas de Dickens com os geniais enigmas e mistérios de
Collins. Esta edição conta com a tradução de E. P. Fonseca e traz apresentação
do crítico e escritor Adonias Filho, além de prefácio inédito do pesquisador
Daniel Puglia.
2. O
amor, de Dino Buzzati
Considerado
um dos maiores nomes da literatura italiana do século XX, Dino Buzzati se
dedicou por mais de quarenta anos ao jornalismo, atividade que deu ares
realistas à sua escrita, marcada também por traços do surrealismo e por
inspirações kafkianas. Em o deserto dos tártaros, sua obra-prima, já estavam
presentes características que décadas depois se desdobrariam em um amor,
seu último romance, tido pela crítica como seu livro mais autobiográfico. Ao
narrar a história de Antonio Dorigo, arquiteto de meia-idade que se apaixona
pela jovem prostituta Laide, Buzzati dá continuidade à investigação das
ansiedades humanas, reafirmando temáticas recorrentes em suas narrativas, como
a nostalgia e uma existência moldada pelo vazio e pela solidão. A incompletude
do homem vem mais uma vez à tona, agora habilidosamente costurada pela voz de
um narrador obsessivo e apaixonado. Esta edição conta com a tradução de Tizziana
Giorgini e traz ainda um prefácio inédito do escritor Marco Lucchesi.
Sexta-feira,
11 de outubro
A ocupação
de um prédio no centro de São Paulo, um pai fragilizado pela doença e a
perspectiva da própria paternidade estão no cerne deste romance que fala,
sobretudo, de perda e de resiliência.
Depois do
romance A resistência, vencedor de prêmios tão prestigiosos quanto
Jabuti e Saramago, e elogiado pela crítica brasileira e internacional, Julián
Fuks retorna a seu personagem alter ego Sebastián em A ocupação.
Construída em capítulos breves, a narrativa se alterna entre os encontros do
escritor com alguns moradores de um edifício ocupado no centro de São Paulo ― e
as histórias que lhe contam ―, o temor da perda do pai hospitalizado e as
expectativas em torno da gravidez de sua mulher e de uma possível paternidade.
Com uma prosa impecável, o escritor paulistano nos enreda nessas diversas
formas de ocupação, que revelam a fragilidade da vida, o risco da solidão e as
muitas brutalidades em que o presente nos imerge.
O retrato
definitivo de Susan Sontag, uma das intelectuais mais importantes do século XX:
sua escrita e seu pensamento radical, seu ativismo público e sua vida privada
pouco conhecida.
Susan Sontag
é uma escritora que representa como ninguém o século XX americano. Envolta em
mitos e incompreendida, louvada e detestada, ela foi uma menina dos subúrbios
que se tornou símbolo do cosmopolitismo. Sontag deixou um legado intelectual
que abrange uma imensidade de temas, como arte e política, feminismo e homossexualidade,
medicina e drogas, radicalismos e fascismo, e que é uma chave indispensável
para entender a cultura da modernidade. Nesta biografia, Benjamin Moser (autor de Clarice, uma biografia)
conta essas histórias e examina o trabalho sobre o qual a reputação de Sontag
se construiu. Ele explora a angústia e as inseguranças por trás da formidável
persona pública e mostra suas tentativas de responder às crueldades e aos
absurdos de um país que tomava um rumo equivocado, com a convicção de que a fidelidade
à alta cultura era um ativismo em si. Com centenas de entrevistas e quase cem
imagens, este é o primeiro livro que tem como fontes os arquivos privados da
escritora e várias pessoas que por muito tempo não se manifestaram sobre
Sontag. A tradução de José Geraldo Couto sai pela Companhia das Letras.
Uma disputa
de poder entre a convenção política e o submundo das travestis paulistanas é o
centro deste romance altamente profético e atual.
Estamos em
2009. Lula segue no auge do poder, o Brasil compõe o grupo dos BRIC e os poços
do pré-sal começam a jorrar otimismo. Em uma mansão no interior de São Paulo,
durante os feriados de Páscoa, seis políticos e empresários bem-sucedidos se
reúnem para articular a criação de um novo partido. Usando a estrutura partidária,
esses homens almejam acesso fácil aos cofres do Estado, com um olho no porvir
alvissareiro. Sonha-se com aquilo que finalmente vai se tornar real: a idade de
ouro do Brasil. O encontro tem tudo para dar certo, não fossem dois
imprevistos. Primeiro, a visita de um ex-capitão do exército, que os colocará
em xeque. Depois, a entrada em cena das Afrodites da Pauliceia, trupe de
travestis exuberantes. Sob o comando da veterana Vera Bee ― professor
universitário durante o dia, que à noite se monta e fornece cocaína à clientela
―, elas são convidadas para alegrar o final dos trabalhos. Nas noites de
excesso que se seguem, os antagonismos se acirram. O poder, disputado a ferro e
fogo, apontará para um caminho tragicômico, em que não há heróis, nem inocentes.
O Brasil vai acordar do seu sonho esplêndido. A idade de ouro do ouro do
Brasil é o novo livro de João Silvério Trevisan pela Editora
Alfaguara.
Com a
reedição dos dois romances distópicos de Ignácio de Loyola Brandão, Global
Editora reúne numa caixa trilogia do escritor
A caixa
resulta da surpresa do próprio autor que disse constatar, ao final da concepção
de seu último livro, lançado em 2018, Desta terra nada vai sobrar, a não
ser o vento que sopra sobre ela, sua ligação natural com seus
desconcertantes Zero e Não verás país nenhum. No
primeiro os ministérios da Educação, Cultura, Direitos humanos e Meio Ambiente
foram extintos. As escolas foram abolidas. A política, matéria rara, se tornou
líquida. Coexistem 1.080 partidos. E ninguém governa verdadeiramente. Uma nação
moderna, mas arcaica. Zero é um livro que assombrou o Brasil
durante a ditadura militar e continua fascinando as novas gerações pela ousadia
e pelas inovações. E, Não verás país nenhum é um romance que tem 20
anos e continua a ser vendido como se tivesse sido lançado agora, pela sua
atualidade. Ele fala do futuro que já está acontecendo. Romance policial, de
aventuras, de amor. Ficção científica, documento sobre o meio ambiente. A
chamada trilogia distópica foi reunida numa caixa pela Global Editora; mais uma
oportunidade de contatar a genialidade do trabalho criativo de um dos mais
importantes e inventivos escritores brasileiros da literatura contemporânea.
Nova
tradução do livro que “inventou” a celebração do Natal como a conhecemos hoje
Incapaz de
compartilhar momentos de amizade e de compreender a magia do Natal, Ebenezer
Scrooge só encontra refúgio na riqueza e na solidão. Até que, num 24 de
dezembro, recebe a visita do fantasma de Jacob Marley, seu ex-sócio falecido há
sete anos. É ele quem avisa a Scrooge que mais três espíritos o visitarão para
lhe dar a chance de mudar seu triste fim e ser poupado de vagar a esmo
depois de morto, como Marley. Assim, o Fantasma dos Natais Passados, o Fantasma
do Natal Presente e o Fantasma dos Natais Futuros levarão o protagonista para
uma viagem no tempo, mostrando-lhe que a generosidade é sempre a melhor
escolha. Um dos livros mais carismáticos da literatura inglesa, Uma
canção de Natal tem tradução de Rodrigo Lacerda e sai pela Penguin /
Companhia com as ilustrações originais de John Leech.
Nesta
surpreendente reunião de aforismos, o poeta das sete faces subverte de A a Z a
ideia de “máximas” e define conceitos tão variados como amor, Deus, governo e
infância.
Lançado
originalmente em 1987, este volume reúne verbetes que, em ordem alfabética,
elencam assuntos dos mais diversos diante do olhar aguçado de um dos nossos
poetas fundamentais. Em O avesso das coisas, Carlos Drummond de Andrade
compila, numa espécie de dicionário, suas próprias e idiossincráticas
definições para cada palavra, convidando o leitor a “repensar suas ideias”. O
resultado é um conjunto de aforismos perspicaz e extremamente bem-humorado.
DICAS DE
LEITURA
1. Úrsula,
de Maria Firmina dos Reis. Na sexta-feira, 11 de outubro de 2019, foi
aniversário de 194 anos da escritora considerada a primeira romancista
brasileira. A data foi lembrada por um Doodle do Google. Segundo Helô D'Angelo
em artigo na revista Cult, a escritora fez desse romance “algo até
então impensável: um instrumento de crítica à escravidão por meio da
humanização de personagens escravizados”. Tancredo e Úrsula são jovens, puros e
altruístas. Com a vida marcada por perdas e decepções familiares, eles se
apaixonam tão logo o destino os aproxima, mas se deparam com um empecilho para
concretizar seu amor. Temos um romance de feições ultrarromânticas em que essa
dimensão crítica sobre o triste contexto histórico aí se infiltra no continuum
da narrativa. No período posterior ao hiato das publicações dessa obra, o
leitor tem agora a possibilidade de encontrar várias edições no mercado: no ano
passado as Edições Câmara editaram o livro em formato digital, disponível
gratuitamente em várias plataformas, incluindo a Amazon; o movimento foi
produto da edição impressa da PUC-Minas um ano antes e seguiu-se pelas editoras
Zouk, Taverna e Penguin/ Companhia das Letras. Esta última realizou a mais
completa edição com estabelecimento do texto, rica introdução e
contextualização histórica, frutos do trabalho de Maria Helena Pereira Toledo
Machado e Flávio Gomes, autor que assina uma cronologia sobre a escritora.
2. Volante
verde, de António Ramos Rosa. Noutra ocasião recomendamos o primeiro título
editado pela Moinhos, que trabalha para trazer a nós a obra desse importante
poeta português. Este título está entre os mais significativos da sua vastíssima
obra. São 100 poemas de 15 ou 20 versos, o que revela um desejo de unidade
formal em sua concepção, sendo, portanto, fundamental seu entendimento como
conjunto, fruto de uma mesma janela da extensa experiência poética de Ramos
Rosa. Numa recensão crítica de Cristina Almeida Ribeiro para a prestigiada
revista Colóquio / Letras aquando da publicação do livro em Portugal, se
lê que esta é uma obra que “retoma o acto fundador, mas sempre provisório, que
tem marcado toda a obra do poeta: partir do nada, deixando-se trabalhar pelo
silêncio; dizer o princípio, para o instaurar; rodear-se dos elementos
primordiais, construindo um espaço habitável; identificar-se com ele e
descobrir em seguida o corpo feminino – tal é, em síntese, o caminho que leva à
harmonia e ao conhecimento”.
3. Don Juan
(narrado por ele mesmo), de Peter Handke. A obra do escritor Prêmio Nobel
de Literatura 2019 até a manhã do dia 10 de outubro de 2019 circulava despretensiosa
nas prateleiras dos sebistas – muito de seus romances foram trazidos para o
Brasil pela Editora Rocco no final dos anos 1980; já à noite nada mais se encontrava
disponível na Estante Virtual e o pouco que restou, um ou outro exemplar, quadruplicou
de preço. Bom, enquanto as editoras não compram essas traduções antigas ou
contratam novas traduções, o leitor curioso, que ainda não conhece a obra do
galardoado pode recorrer ao catálogo da Estação Liberdade – a editora que mais
publicou os livros de Handke nos últimos anos e que se prepara para trazer
inédito ainda neste ano. Neste livro aqui recomendado, um cozinheiro solitário
e ocioso, ávido leitor, decide, em meios a leituras de Racine e Pasal, largar
os livros. Essa sua imprevista decisão coincide com a igualmente repentina e
abrupta aterrissagem de Don Juan no jardim do albergue onde ele vive, nas
ruínas do monastério de Port-Royal-des-Champs, na França. Não um Don Juan
qualquer, mas o próprio Don Juan, a figura legendária cujas aventuras já foram
contadas e recontadas e que Peter Handke decide ambientar definitivamente na
contemporaneidade.
BAÚ DE
LETRAS
1. A obra de Chico Buarque é sempre motivo de interesse entre as publicações disponibilizadas no blog Letras in.verso e re.verso. Para se ter uma ideia disso, o leitor encontra aqui resenha sobre cada um dos seus romances e este especial que editamos na semana de celebrações pelos seus 70 anos.
2. A ideia da Global Editora em reunir três dos principais romances de Ignácio de Loyola Brandão sob o epíteto de distopias é certeira. Aproveite a ocasião para reencontrar a leitura de Pedro Fernandes sobre o recente Desta terra nada vai sobrar a não ser o vento que sopra sobre ela, até agora, um dos textos mais acessados do ano aqui no blog.
3. E, para dizer que não falamos sobre o acontecimento da semana, indicamos esta post com uma lista que traz dez filmes que levaram o Prêmio Nobel de Literatura.
.........................
* Todas as informações sobre lançamentos de livros aqui divulgadas são as oferecidas pelas editoras na abertura das pré-vendas e o conteúdo, portanto, de responsabilidades das referidas casas.
Comentários