As lembranças do porvir, de Elena Garro
Por Pedro
Fernandes
Nenhuma
história se constitui episódio isolado, nem mesmo uma ordem de acontecimentos
pode ser lida como independente de uma consciência total. Assim é que todo fato
é apenas parte de um todo, incompleto sem a visão desse todo, tal como sublinha
criteriosamente Caio Prado Júnior. “Incompleto que se disfarça muitas vezes sob
noções que damos como claras e que dispensam explicações; mas que não resultam
na verdade senão de hábitos viciados do pensamento”. A história é constituída
de microfragmentos dispersos por entre os escombros a partir dos quais, dos
mais vistosos e visíveis se constrói uma versão que se quer verdadeira e
oficial. Ao ficcionista resta, além dos restos mais visíveis, o grão escondido.
E com este escondido, muitas vezes o casual, é capaz de iluminar todo um
universo e atribuir melhor sentido e significação às verdades estabelecidas.
Entre esses artesãos do acaso encontramos Elena Garro.
As
lembranças do porvir constituem uma pequena centelha do complexo universo
ficcional dessa escritora mexicana ela própria marcada pela força atroz dos
silenciamentos impostos pela história oficial. É possível que, se ela tivesse
tomado para si o rótulo com o qual toda uma geração de escritores ficou
universalizada, talvez figurasse oficialmente na história da literatura
latino-americana como a estrela feminina solitária no Boom. Mas, Elena Garro
foi melhor que isso: soube-se inovadora, recusou os rótulos e fez da sua obra
um ponto de referência para o qual todos os leitores do futuro não podem mais
desprezar porque constitui o centro de um sistema em torno do qual gravitam todos
aqueles que ganharam dessa estrela seu brilho artificial. Não é o caso de
desfazer do rico universo fabulado pelos integrantes desse grupo latino-americano,
mas uma maneira de compreendê-los devedores da voz que tentaram silenciar e não
conseguiram.
Assim é que
podemos ampliar a imagem descrita acima: a obra de Elena Garro – e da qual se
destaca o romance de 1963, seu primeiro título nessa forma da prosa – se
constitui a gênese do que comercialmente se determinou como Boom
latino-americano. Este não foi um movimento literário, mas uma excrescência na
história da literatura, impulsionado pelo crescente interesse pelas fabulações
da América Latina numa ocasião quando a literatura do Velho Continente apontava
claros sinais de desgaste e crise criativa, seja pelas manipulações a toda
forma dos protocolos realistas, seja pelas efemeridades das vanguardas e suas
inoperâncias. Assim, a posição adotada por Elena Garro foi diversa: resistência
aos rótulos mas sobretudo resistência política contra um sistema que sempre
tratou com indiferença o que elegeu como periferia do mundo. Sua atitude muito
significa porque encontra respaldada no universo ficcional que engendrou:
estava motivada não pelo presente, mas por um porvir. Significa ainda um
respeito bastante caro à tradição e suas origens, uma vez que compreendia o
realismo mágico, categoria que deu forma ao Boom, enquanto uma cosmovisão indígena.
Apropriar-se disso como acontecimento extraordinário nascido pela literatura
significa, portanto, a manutenção da mesma ordem de apropriações indevidas
exercidas a largo pela colonização.
As
lembranças do porvir voltam ao contexto da Guerra Cristera, um levante popular
contra as leis anticlericais impostas pela Constituição Mexicana de 1917 que
resultou numa repressão do Estado sobre a Igreja Católica desenrolada entre
1926 e 1929; e oferecem um alargamento da história a partir do qual se possa
antever um futuro em que o desfecho dos episódios sejam outros e não a vitória
do Estado autoritário. Mas, este não é um romance histórico: os acontecimentos
são fixados pela ficção apenas para servir de elemento sobre outras questões aí
recuperadas e cuja relação se impõe pela reiteração da violência. Isto é, o
interesse da romancista é compreender as entranhas do conflito, as complexas
relações situadas na sua base, a pedra fundamental quase sempre esquecida pela
história oficial, bem como conhecer as determinações que se perpetuam continuamente,
como as ondas de um sismo, nas relações sociais séculos depois do estopim. Ou
ainda, como se formam, do conteúdo histórico, os mitologema de um povo. Assim é
que o tempo juntamente com o narrador formam duas categorias que rompem com os
princípios realistas da narração e modificam todo o trabalho de figuração narrativa
que acompanha desde os pequenos motins entre o Estado e os indígenas, reanimando
a memória do sangrento processo de colonização, à explosão da Guerra Cristera
interior da qual Ixtepec, a cidade-espaço dos acontecimentos na narrativa, se
apresenta como um núcleo de resistência.
O tempo na
narrativa é fixo, uma nebulosa através da qual apenas as ações se movimentam não
como um contínuo e sim como um jogo de acréscimos por sobreposição, uma
engenhosidade que permite reunir em anos séculos de história de um povo. E os
dois fios que animam essa estrutura se designam pela violência e pela fantasia
– este como a alternativa, o possível, frente à onipresença do primeiro. Ou
ainda, resposta da ficção sobre o conteúdo da história, esta unidade igualmente
violenta se pensarmos que a vilipendio dos acontecimentos, à medida que se
mostra parcial e particular, é também um gesto todo ele vestido de violência. Quem
desfia esse extenso novelo marcado por pontas múltiplas é um voz coletiva que
se mostra ora como as vozes dos habitantes de Ixtepec, sobretudo os
marginalizados, ora como a voz do próprio povoado, como se este assumisse (e assume)
o papel de personagem situada num tempo todo feito de ruínas reanimasse os
tempos que se lhe passaram e o que deles restaram como memória, gesto criativo
que encontraremos em Pedro Páramo de Juan Rulfo. Não podemos deixar de
perceber ainda essa voz como a de Isabel, figura-pilar, envolvida numa
tessitura místico-amorosa, que deita seu olhar pétreo sobre as ruínas dos
passados de Ixtepec.
Assim é que,
cada situação apresentada neste romance funciona ora como ordem da narrativa
ora como significação autêntica resultando na multiplicidade de possíveis oferecida
por toda história, sobretudo na primeira parte, uma vez que na segunda é
possível vislumbrar certa unidade cronológica dos acontecimentos. Vale mencionar
aqui parte do desfecho do imbróglio amoroso entre o General Francisco Rosas,
autoridade máxima de Ixtepec que mantém, juntamente com outros militares, o Hotel
Jardín (note a ironia que se reveste o sobrenome dessa personagem e o espaço mais
recorrente de sua presença) como um cativeiro, Julia, e o forasteiro Felipe
Hurtado. Quando todas as forças do ciúme obnubilam os sentidos de Rosas,
alimentados pelo pensamento lascivo e pelas injúrias levantadas pelos do
povoado, incluindo as provocações de uma das mulheres que dividem o hotel com
Julia, atiça-se o fim trágico dos amantes. Elena Garro explora minuciosamente a
psicologia das personagens oferecendo uma imagem própria sobre as condições de cada
uma delas e dos limites alcançados pela situação. A única maneira de melhor
visualizarmos é suspender por um instante essas notas e deixar que fale a
própria narrativa; assistimos a ocasião quando Hurtado se entrega às forças de
Rosas:
“O jovem
levantou os ferrolhos, tirou as trancas, abriu o portão e saiu. Dom Joaquín ia
segui-lo, mas então aconteceu o que nunca me havia acontecido; o tempo parou de
repente. Não sei se parou ou se foi embora e só caiu o sono: um sono como nunca
me havia visitado. Também chegou o silêncio total. Não se ouvia sequer o pulso
do meu povo. Na verdade não sei o que aconteceu. Fiquei fora do tempo, suspenso
em um lugar sem vento, sem murmúrios, sem barulho de folhas nem suspiros.
Cheguei a um lugar onde os grilos estão imóveis, em atitude de cantar e sem
nunca haver cantado, onde o pó fica no meio de seu voo e as rosas paralisam-se
no ar sob um céu fixo. Ali estive. Ali estivemos todos: dom Joaquín junto ao
portão, com a mão ao alto, como se estivesse fazendo para sempre aquele gesto
desesperado e desafiante; seus criados perto dele, com as lágrimas no meio da
face; dona Matilde benzendo-se; o general montando Norteño e o Norteño
empinado com as patas dianteiras no ar, olhando com olhos de outro mundo o que
se passava neste; os tambores e cornetas em atitude de tocar alguma música;
Justo Corona com o chicote na mão e o chapéu de lado; Pando em sua cantina
quase vazia inclinado sobre um cliente que pegava umas moedas prata; as
Mantúfar espiando detrás de suas sacadas com caras pálidas de medo; e com elas
os Moncadas, os Pastranas, os Olveras, todos. Não sei quanto tempo andamos
perdidos nesse espaço imóvel.”
A suspensão
dos sentidos conduz a narrativa para outro tempo, aquele que prefere oferecer uma
alternativa frente ao horror. O que o narrador constrói aqui é uma tela feita
com palavras: uma cena realista carregada de todos matizes singulares que a
colorem. Mas essa descrição abre uma fenda na história capaz de transformar o desfecho
desse episódio em mito ou lenda. Se Julia prefigurava a encarnação de feminino
responsável pelo mal, a ruína e a desgraça do mundo, isto é, o mito do pecado
original, lhe é oferecida pela ficção (afinal é esta a tela que se pinta) uma
redenção que não está ao alcance do senso comum, nem no reino dos poderes constituídos.
Esse mesmo gesto se repetirá com sua sucessora involuntária Isabel.
Essa
passagem para um tempo outro se mostra como uma ressalva do valor da imaginação
sobre o vivido e está espalhada por toda a narrativa de As lembranças do
porvir: como nas breves e poucas noites de teatro na casa de dona Matilde,
situação que é uma lufada de ar fresco contra atmosfera pesada da violência
administrada pela música igualmente violenta e endurecedora da banda militar. Fora
da obra, nós leitores assumimos a figura de coadjuvantes num jogo de encaixe em
que a parte seguinte deixa de existir a parte anterior. Esse trabalho de
manipulação só alcançará novo fôlego com Gabriel García Márquez ou mesmo,
antes, com Juan Rulfo. Há uma passagem da narrativa, agora com o estopim da
Cristera, que diz muito nesse jogo proposto pelo romance: “E nem sequer
olhávamos para as janelas do Comando Militar onde os militares estavam nos
vigiando; o general e seus assistentes eram nossos presos.” Oferece-se aqui uma
inversão de papéis e de posições; e é isso o que na prática se executa com o
romance de Elena Garro. Uma a uma as situações-limite ganham contornos fora da
realidade exequível, reafirmando o poder da ficção contra a usura da violência.
A fenda na
história sustentada exclusivamente pelo poder da palavra arranca outra dimensão
excepcional em As lembranças do porvir: não se trata de uma negação da
história (do contrário, ela aparece aqui tomada das mesmas cores com que se
tingiu), mas se prevalece uma renovação da narrativa ficcional enquanto alternativa frente aos
silenciamentos, à opressão da gente simples, a violência sistêmica contra tudo
o que não respira ao mando de uma só consciência, que, por ser consciência e
fadada a reentrâncias diversas está sempre capaz de atentar contra si mesma,
como é o caso da violenta morte de Damián Alvarez, membro do comando de Rosas
assassinado por Justo Corona devido aos ciúmes deste com sua cativa Antonia. Num
mundo abafado pelas forças da censura e da cesura, o único escape para não
perecer, é a saída pelo extemporâneo e essa saída só se oferece por alguém que tenha
pela história a capacidade de subverter seus ângulos, qual o narrador que
transforma a cena dos habitantes de Ixtepec sitiados em guardas dos sitiadores.
Ou o louco Juan Cariño, que encarna o papel de presidente do povoado e se diz
fazer frente aos desmandos de Rosas e guardião das palavras. Esse tratamento da
narrativa oferece-se ainda por outra via de subversões, como a reiteração do
elemento feminino tornado aqui em presença singular e significativa.
Se deixarmos
de lado a personagem de Francisco Rosas, quem por fim se desconstrói como um
incapaz de gerir suas próprias forças, veremos em Ixtepec a figuração de um
matriarcado. Elena Garro evidencia uma recorrência nos contextos mais tomados
pelas necessidades, quando os homens são obrigados a buscar fora uma
alternativa para a família ou mesmo nas situações de imperativo da violência,
quando eles, os motivadores do embate, são também os primeiros a perecerem. Cada
casa nesse povoado é reconhecida por suas matriarcas: dona Matilde, dona Lola,
dona Elvira, para citar algumas das mulheres que conduzem a ordem em situações
de ausência de seus maridos ou na presença impotente desses. Esse povoado é das
ordens patriarcais em crise.
Embora toda
a violência e vilania operadas contra as mulheres seja ainda produto de elevados
graus de machismo, sexismo e misoginia, aqui essas mazelas integram um
corolário diverso e complexo de naturalização da violência. A reiteração do
feminino num romance que se opera como uma alternativa sobre o histórico sopesa
ainda outros papéis fundamentais das mulheres: reside nelas toda resiliência de
Ixtepec para o não-apagamento da própria história e o protagonismo frente a um
mundo vilipendiado pela dor ao mesmo tempo que sua condena. Não se trata,
portanto, pura e simplesmente elevação do feminino o que o romance pratica;
Elena Garro nutre-se da consciência que, independente, da condição histórica
dos indivíduos, todos são criaturas humanas e estão suscetíveis às situações
mais impossíveis de se justificarem pela razão simplista. Vale mencionar o
episódio de quando um grupo significativo de mulheres propõe uma noite de
celebrações aos militares. O interesse levado ao fracasso é possibilitarem um
plano de salvação pela igreja do povoado, o padre e o sacristão. Ao passo que
esse instante é produto de uma engenhosidade subversiva significa também a
total condenação da pequena paz vivida em Ixtepec. Mas, o plano abortado
resulta exclusivamente da intervenção de uma delatora, reafirmando um princípio
discutido por Simone de Beauvoir segundo o qual, o opressor não seria tão forte
se não existissem cúmplices entre os oprimidos.
Se a
história que essas lembranças recuperam é outra, o porvir, é também
observada desde outro ponto de vista, aquele que continuamente tem sido
marginalizado e silenciado em nome de uma verdade fabricada por uma ordem que
se quer exclusivamente masculina. O jogo ficcional é em nome da razão e não da
força. Assim é que se opera sempre o sub-reptício como alternativa de
desbaratamento da ordem. A própria narrativa corrobora com isso, por sua
posição sub-reptícia para com a história ou pela externalização numa sentença
exemplar de Juan Cariño – o louco mais lúcido nesse carretel de
ensandecidos: “Meu jovem, vocês têm a força mas não têm a razão. Por isso
querem nos culpar de seus crimes. Querem ter motivo para nos perseguir”; a fala
se refere contra o capitão Flores, quem, a mando do general, vai à casa das cuscas
La Luchi a fim de descobrir alguma pista do paradeiro do corpo do sacristão, assassinado,
e do padre.
Portanto, nas
presenças femininas se organizam toda sorte de papéis: da opressão às
resistências. Julia, a cativa de Francisco Rosas, é figura emblemática na
narrativa porque encarna todas as dores, pessoais e coletivas, mas não se rende
a elas. Privada da liberdade, é vista por todos como a maldição de Ixtepec; acreditam
que a violência comandada pelo general, marcada pela aparição repentina de
enforcados pelas árvores do povoado, não é parte intrínseca do poder e da usura
do homem, mas pura vingança pela desfeita que a amante faz dele. Mas essa
personagem não esgota sua existência na condição de oprimida, desafia o próprio
sistema que lhe foi imposto ao decidir pedir pessoalmente pela vida de Hurtado
numa visita ao forasteiro. É singular como a narrativa observa as estratégias dessas
mulheres insubmissas no interior do patriarcalismo: Isabel é a que se recusa,
por um amor infantil com irmão, a se casar, porque nutre, contraditoriamente,
por Julia certa inveja da sua condição, depois, na mesma situação de cativa,
procurará demover o general do assassinato do irmão; dona Gregória, chamada por
Rosas para cuidar dos ferimentos de Julia depois de lhe bater num acesso de
ciúmes, aconselha à jovem a ministrar em segredo um composto de ervas capaz de apagar
a virilidade do capitão – outro dos momentos mais sinceros da narrativa porque é
uma situação que se reveste de um sentimento dos mais puros de irmanação do feminino
– e se torna amiga de Isabel, em quem acredita numa redenção milagrosa da
dependência amorosa que nutre pelo cativeiro; enquanto outras encontram na fé
uma alternativa que as apaguem para os olhos dos homens.
As
lembranças do porvir formam um romance inesgotável. Elena Garro, reanima
vivências a partir de núcleos marcados por fabulosas e destemidas figuras e compõe
um mural rico e complexo sobre as lutas e os cotidianos de qualquer parte
marcados pela opressão, pelo ciúme, pela gana de mandar e pela sede de
violência. Prova ainda como os frangalhos da história e o escondido formam
parte maior no interior das verdades estabelecidas, uma vez que, a
autenticidade desses registros ficcionais funciona melhor que quaisquer
registros desencantados da história. Logo, este é um dos grandes feitos
editoriais recentes no Brasil, como se ressaltou na lista de melhores de 2018
na categoria prosa deste blog; e, além de tudo, a obra de Garro – até então
totalmente desconhecida entre nós –, se revela como a verdadeira precursora das
principais características que formariam todo um período de grandiosa riqueza
para a literatura latino-americana. Reaviva-se, assim, um brilho que a história
oficial quis apagar.
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