Witold Gombrowicz e a arte de morder a realidade
Por Mary Carmen Sánchez Ambriz
Em seu
Diário, Witold Gombrowicz apresentou uma síntese de seu plano de trabalho para
Cosmos, seu último romance, publicado em 1967. Aí, ele deixa claro que é um “romance sobre a formação da realidade”, e enfatiza: “Será um
tipo de romance policial”. É importante destacar essa comparação porque
o romance tem sido definido como uma história policial – possivelmente por fins comerciais –quando, na realidade, é um pouco mais complexo. Ele continua: “Ritmos furiosos,
abruptamente acelerados, de uma Realidade desencadeada. E isso explode.
Catástrofe. Vergonha. A realidade que de repente transborda devido a um acontecimento excessivo. Criação de tentáculos laterais… de cavidades escuras… de rupturas
cada vez mais dolorosas”.
Mas dizer
que o último romance que Gombrowicz escreveu é um romance policial é limitar-nos a
uma visão fragmentada da trama e não procurar mais considerar outras
possibilidades. Como é esse Cosmos que ele descreve e por que se apega
tanto à abordagem da história dessa maneira? O que o romance representa na
narrativa de Gombrowicz? Pode-se considerá-lo um inovador? Por quanto tempo vale o que conta?
Para falar
sobre o Cosmos primeiro devemos levar em
consideração o que o romancista entende por realidade; isto é, a exploração da
psique humana levada ao limite do absurdo. Porque Gombrowicz, talvez pensando
em Beckett, atribui uma categoria de arte a uma linguagem e uma estrutura que se
revolta contra critérios arraigados na literatura: abre os limites do romance
restringindo-o a espaços sem pontos de referência, restritos à asfixia. Então,
círculos concêntricos devem ser considerados, que são reduzidos à medida que
seu próprio trabalho evolui; tudo isso matizado com a estética da ruptura, o
caos. “A realidade que de repente transborda devido a uma situação excepcional. [...]
A ideia gira em torno de mim como um animal selvagem”, ele escreve em seu
Diário.
O romance se
assemelha a uma música em espiral, uma exploração que indaga no meio de um mar
de possibilidades as situações que vêm acontecendo. Malcolm Lowry gostava de repetir uma
frase de Baudelaire: “A vida é uma floresta de símbolos”. Essa ideia
também pode ser aplicada ao universo gombrowicziano – o pardal, o graveto, o
gato, Ludwik, o padre. Wittgenstein afirma que os limites do mundo são os
limites da linguagem.
Em Cosmos, Gombrowicz, como Dante, inicia sua jornada
imaginária perdida em uma selva sombria – alegoria da vida, das dificuldades e das tentações. Mas aqui a escrita atua como em Virgílio, será seu guia e rota de saída
nos intrincados labirintos pelos quais ele vagueia. Ele consegue transcender
graças à sua prosa e sua paciência duradoura, uma vez que teve que se
comprometer várias vezes com o trabalho de reescrever o livro – não menos que Ferdydurke.
Desse
bildungsroman surreal que é Ferdydurke, que o fez coincidir com Piñera – outro
autor contestatário, viajante e transgressor como ele – houve quem criticou a
tradução¹, por exemplo, Ernesto Sábato e Arturo Capdevilla. No entanto, Ricardo
Piglia argumentou que a versão argentina do Ferdydurke é “um dos textos
mais exclusivos da nossa língua”.
Ao longo dos
anos, Witoldo, como seus amigos argentinos o chamavam, teve a cumplicidade de
Piñera e Piglia, com quem ele compartilhava preocupações literárias. Ricardo
Piglia adverte em Respiração artificial que Borges é o melhor escritor
argentino do século XIX, uma afirmação que pode ser medida com outra de suas
opiniões coletadas em Formas breves: “Arlt, Macedonio, Gombrowicz. O romance
argentino é construído sobre essas cruzes (mas também com outras intrigas).” A
verdade é que, como Piglia apontou várias vezes, a literatura argentina oscila
entre Borges e Gombrowicz, embora o escritor polonês tenha se incomodado com o
fato de Borges expressar categoricamente que não gostava de Ferdydunke e que
era previsível como esse romance terminaria.
De fato, Gombrowicz foi se forjando
como uma das grandes referências para que os escritores argentinos pudessem
dizer, pela boca, longe de Borges ou mesmo próximo, “matem Borges”, uma frase que ele tornou memorável quando perguntado o que era necessário fazer na Argentina para que adquirisse maturidade literária. Essa insinuação foi
feita antes de partir para a Polônia, depois de passar vinte e quatro anos no
exílio na Argentina. Na verdade, Gombrowicz nunca optou por ter uma residência
conosureña, ele visitou a Argentina porque foi convidado para a viagem
inaugural de um transatlântico e a invasão alemã da Polônia, desencadeadora da
Segunda Guerra Mundial, o surpreendeu durante essa viagem.
A
animosidade entre Borges e Gombrowicz nos lembra uma relação semelhante entre Gabriel García Márquez e Fernando Vallejo, que não perdeu a chance de comentar que a
literatura colombiana tinha romances melhores do que “Dois anos de
férias”, título com que se referia a Cem anos de solidão. Vallejo, sempre
contundente, irônico, crítico, incisivo como uma faca recém-afiada, é autor de
alguns ensaios sobre García Márquez: “Cursinho de orientação ideológica
para García Márquez” e “Um século de solidão”.
E a partir
da solidão de Macondo – vista como uma cidade marginal – passamos à solidão em Cosmos, que também é uma constante na vida de Witold e Fuks, o par de amigos
que decide se afastar de suas respectivas ocupações e ter tempo para viver no
campo, onde serão hóspedes de uma família atípica. Aí eles encontram dois
fatos que chamam sua atenção: um graveto suspenso por um arame e um pardal sem
vida, pendurados da mesma maneira.
A família
que os hospeda é formada por um casal, sua filha Lena e marido, e uma
sobrinha, Katasia, que tem a boca deformada. Essa característica peculiar se
torna uma obsessão de Witold – a personagem – até que ele descobre – através de
uma fotografia de anos atrás – que a garota não nasceu com esse defeito nos
lábios, mas é o produto de um acidente. E desde que ele obtém essas
informações, não insiste mais na ideia de acreditar que viu a boca de
Katasia e a boca de Lena se unirem de uma maneira perturbadora. Ele descreve esse
defeito físico como “uma curvatura do lábio superior que saltou ou
escorregou como um réptil”. Depois, concentra sua atenção nas mãos da bela
Lena e do marido e, a partir dessa fixação, elabora um retrato de suas
personalidades e vida íntima. Nas circunstâncias, sem uma explicação aparente,
acrescenta-se que o gato de Lena, Dawidek, aparece enforcado no mesmo local em
que o graveto estava com o arame e o pardal.
Witold – o alter ego do narrador – começa a se sentir atraído por Lena e, para chamar sua
atenção, ele usa a dor provocada pela morte de seu gato. Witold não pode possuir o
corpo de Lena, mas ele consegue possuir sua dor, um sofrimento irreparável que
se soma aos eventos estranhos. A história continua e há outra vítima: depois do
gato, agora um homem aparece enforcado.
Intenso,
inovador, sórdido, irônico, repetitivo, simultâneo, criativo... sombrio, esse
é o Cosmos que Gombrowicz projeta. A receita palito mais pardal, mais gato e
humano produz inquietação e explora a teoria do esperpento delineada por
Valle-Inclán. Que tipo de ser humano poderia pensar a série de associações e
perguntas que apenas causarão mais incerteza? Trata-se da visão de um autor à frente no seu tempo e, por esse motivo, pouco entendido. Sua narrativa não é
convencional. Não é apenas baseado em descrições, mas no que pode estar
acontecendo na mente das personagens, como se fossem novelos emaranhados, então
você deve se aprofundar em cada um dos fios que o levam a algo fora do comum.
Nesse sentido, abre um leque de possibilidades que lembram os romances A irmandade da uva e Los Angeles Road, de John Fante. Os habitantes deste Cosmos,
talvez como Arturo Bandini, a personagem de Fante, parecem ser leitores de
Nietzsche, Schopenhauer ou Spengler.
Cosmos,
como outros livros do autor, foi pouco valorizado na época. Tanto o romancista
quanto seu trabalho eram vistos como esquisitos. Foi até depois de sua morte, quando ocorreu uma reavaliação de sua narrativa, quando alguns jovens com
pretensões de serem os novos Baudelaire chegaram às letras com ar furioso,
talvez apenas para homenagear o que o escritor polonês havia feito anos atrás.
Se os romances da literatura policial são como o que Gombrowicz expressa em
Cosmos, deve-se notar o encanto da sutileza em cada uma das pesquisas que se
desenvolve; sem dúvida, uma grande contribuição para o gênero.
Dizem
que Witold Gombrowicz escreveu para jovens e para a posteridade. “Seu
trabalho – sombrio, sonâmbulo e extravagante – foi a reencarnação de sua
própria personalidade”, diz Enrique Vila-Matas. É possível que toda a sua
narrativa remeta a um chamado que pode ser resumido da seguinte forma: a
arte de morder a realidade.
¹ O texto se refere à tradução do livro na Argentina realizada no mítico Café Rex de Buenos Aires em colaboração com vários escritores argentinos chefiados pelo cubano Virgilio Piñera [N.T.]
* Este texto é uma tradução de “Gombrowicz y el arte de morder la realidad”, publicado aqui, em Letras Libres.
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