Trazidos pelas águas da dor: o mar de sentimentos em “Todos os santos”, de Adriana Lisboa
Por Flaviana
Silva
“A tragédia
que vivemos naquele domingo de Todos os Santos, André: como sacudir dos nossos
passos as sombras daquilo?”
(Adriana
Lisboa, Todos os santos)
Alguém estava
atento ao perigo naquele dia da festa de Todos os Santos e avisara para as
crianças que elas não deveriam entrar na piscina depois do almoço. Entre os
variados barulhos da festividade, Mauro deve ter ouvido o recado, mas nem só de
alertas são regidos os dias, não é mesmo? As vezes a morte não deixa tempo para pensamentos complexos. O menino foi
direcionado para o fim de sua história em um tempo curto, sua morte foi seguida
de pânico. O que fazer diante da partida de um garoto tão único? Sua irmã
Vanessa assiste à cena sem conseguir se movimentar; ela não consegue entender
por que a sua família está sendo atingida em pleno dia de comemorações, o fatídico
dia que ficará registrado em suas memórias para sempre.
Vanessa e
André são amigos de infância, as vezes são quase irmãos e na vida adulta
tornam-se amantes. Ela não consegue parar de pensar sobre o dia em que perdeu o
seu irmão e ele que estava presente no momento de dor
ainda não é capaz de conversar sobre os detalhes do acontecido, mesmo depois de
muitos anos. O que une as famílias dos dois jovens é o luto, o irremediável, a
saudade.
Adriana Lisboa nasceu em 1970
no Rio de Janeiro e já publicou variados romances, entre eles Sinfonia em
branco; Todos os santos reitera a narrativa sobre
dramas familiares indissolúveis ou mal-resolvidos. Aqui, a temática da relação entre
irmãos é exposta com uma grande sensibilidade, um tema que é determinante no romance anterior, também resenhado para o Letras.
Em Todos os santos Isabel é
irmã de André, mas sente atração pela amante de seu irmão. No meio de toda a
dor que envolve as personagens, nota-se a fragilidade das relações. Este é um romance curto, mas que registra em profundidade as dificuldades entre os laços
familiares. Suas personagens buscam refúgio entre si
e parecem se afastar ao mesmo tempo. É um dilema de contrastes. Após a morte de Mauro, a família de Vanessa
não consegue mais se relacionar e passa a viver em lugares diferentes: a jovem
decide viajar com seu amigo André pesquisando sobre aves migratórias para
tentar fugir das memórias que machucam, entretanto, migrar para longe delas é
algo impossível.
É importante
destacar que a história é narrada de Vanessa para André; apesar dele já saber de todas as aventuras que vivenciaram juntos, ela compõe as descrições em detalhes para ele. Textualmente, a personagem ouvinte está
ausente e não responde a essas interpelações, mas o leitor consegue ir
decifrando os segredos que existem entre eles. Sendo assim, cabe analisar que a
solidão é um elemento determinante de todo o romance. No próprio ato narrativo
podemos perceber que a ausência de André referenciada nas reflexões de Vanessa.
A morte de
Mauro no início da história envolve segredos que justificam alguns detalhes
importantes da trama; o leitor pode perceber que nesse romance Adriana Lisboa
deixa sua marca sensível no que se refere a uma escrita cheia de oscilações,
cortes de passagens, primando pela dúvida sobre a veracidade de
possíveis acontecimentos. O romance tem uma linguagem simples e um tema
complexo; escrever e ler sobre o luto é encarar monstros pessoais que sempre
permanecem em nosso ser, escondidos.
Perder
alguém amado é como cair em um abismo sem retorno. O ritmo dos dias de Vanessa
e de seu pai Jonas são guiados pelas lembranças do que eram antes da morte de
Mauro e do que poderiam ter sido no futuro, perder alguém amado é ver a vida se
esvaindo de uma única vez e não conseguir recuperá-la nunca mais. O Rio de Janeiro
é exposto como o lugar da alegria e da cultura no dia de todos os santos, mas
também é o lar que guarda a dor; daí que, voltar à cidade, é sempre retornar para o dia
da morte de Mauro. Assim, a noção de casa no romance não é de conforto, mas de
lugar de angústia.
O sentimento despertado na casa de Clarice e
Maria Inês em Sinfonia em branco tem grande proximidade com esses sentidos de solidão
e tristeza no romance agora lido; quando Clarice viaja para a cidade grande e passa a morar com sua
tia Berenice, ela procura esquecer os traumas causados pela relação com sua
família em seu lar afetivo. Passados alguns anos, em seu retorno para a casa da
infância, ela encontra seus maiores medos, todas as suas mágoas estão
escondidas naquele espaço.
A relação
entre todas as personagens desse romance é regida por uma constante fuga. A
narradora reflete sobre a vida de Isabel e sobre como ela estava fugindo de seu
passado, o reencontro do trio da infância (Mauro, Vanessa e Isabel) representaria
um retorno aos traumas do passado. Sendo assim, cabe observar a passagem que a
narradora reflete sobre essa problemática.
“Mas quem fugiria do quê? Nós dela, ela de
nós, nós três do Mauro e sua memória que o tempo só fazia reestruturar de um jeito
esquisito? Dos nossos pais e suas novas alianças, que não eram as que
desejávamos? Uns dos outros, sem saber como ou para onde? Diáspora nossa.
Pequeno núcleo explodindo, e as partículas lançadas em todas as direções.”
(p. 62)
Esse é um
romance sobre partidas constantes de pessoas que não sabem sair do lugar sem
levá-las consigo; os leitores sensíveis com certeza vão gostar de reencontrar a
escrita delicada de Adriana Lisboa. A obra Todos os santos não é tão enigmática
como o branco da Sinfonia mas é incrível perceber que Vanessa tem a mesma
reflexão arrebatadora de Clarice; ambas fogem das mesmas ondas assustadoras: as
memórias, a dor. O dia da tragédia marcou a vida das personagens no romance e o
vazio que ficou após ele permaneceu para todo o sempre.
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Todos os santos, Adriana Lisboa
Alfaguara Brasil (2019)
152 p.
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