Serotonina, de Michel Houellebecq
Por Pedro
Fernandes
Michel
Houellebecq é, sem dúvidas, um dos romancistas contemporâneos com melhor faro
para dizer sobre o longo período de intermitência para o fim dessa civilização.
Não são poucos os escritores que ocupam esse lugar, mas o francês tem uma
vantagem própria: está entre os mais originais pela precisão com que consegue capturar
no interior da volubilidade ou da multiplicidade das questões o ponto fundamental
capaz de nos colocar frente a frente com a versão mais amarga e cruel de nós
mesmos. Por essa razão, sua obra é sempre de inquietação e marcada por uma
leitura que coloca todo o projeto civilizatório, sobretudo o estágio vigente
cujas provas estão por toda a parte, em suspeição. Ou melhor, o compreende como
o maior dos nossos fracassos e a pior das nossas covardias. Fracasso porque nem
mesmo toda beleza do que criamos é capaz de vencer o mal e a barbárie que
praticamos; covardia, porque, apesar de sabermos as soluções para o mal e a
barbárie, continuamos repetindo os mesmos erros, às vezes de maneira melhor aperfeiçoada
que noutro tempo.
Serotonina
não foge à regra. Ou melhor, se desfaz da exceção ao constatar nossa
própria condição de limitados e incapazes frente aos problemas do mundo. Alguns
leitores poderão perceber que na atmosfera carregadamente sombria e
intempestiva dessa narrativa paira algum veio de esperança. Mas, não. No deserto,
nem tudo que reluz é água. Este é um romance sobre a incerteza de encontrarmos
uma alternativa capaz de nos reabilitar enquanto humanidade. Situa-se, assim,
na zona próxima onde repousam obras como Ensaio sobre a cegueira, de
José Saramago. Muitos leitores reparam na condição da personagem da mulher do
médico de não cegar e sua posição no mundo de trevas brancas um fio de luz, uma
espécie de alternativa ante a perdição da civilização, mas não é. Ela apenas se
apresenta como o fim total da humanidade porque através dela descobrimos que sozinhos
não somos capazes de reinventar o curso das coisas, e o pior, o espírito de
coletividade que alguma vez se mostrou uma utopia do possível, respira com
grandes dificuldades.
Essa é a
constatação de Florente-Claude Labroust construída através de uma interrogação a
certa altura de seu périplo: “quem era eu para pensar que podia alterar alguma
coisa no curso do mundo?” A pergunta se coloca a partir de sua leitura um tanto
apartada acerca do motim idealizado por pequenos produtores rurais da cadeia de
laticínios numa ocasião quando a França precisa, por determinações dos modelos econômicos
vigentes, ampliar as sanções contra a produção interna para garantir os pactos
comerciais com outros países. Entre os rebeldes, está o amigo desde o tempo de
faculdade, Aymeric, um camponês fracassado em todas as frentes da existência:
os negócios da fazenda rendem apenas trabalho e a mulher de sua vida fugiu para
a Inglaterra com um pianista levando os filhos. A revolta, portanto, se oferece
não como a única manifestação de impulso para a existência e sim de alternativa
para o inevitável fim.
O reencontro
entre os dois amigos se produz, assim, em situações parecidas: Florence trocou
uma carreira mais ou menos estável no Ministério da Agricultura, quando parecia
ser cada vez mais impossível continuar trabalhando de alguma forma em nome dos
produtores internos, por um estágio de intermitência assumido não por essa
decepção profissional e sim pela descoberta de que estava envolvido numa
relação tóxica com uma japonesa possivelmente interessada tão-somente no seu
patrimônio. O protagonista e narrador encontra como solução cumprir o destino
forjado por outras milhares de pessoas de seu tempo: desfazer-se de sua vida
corriqueira e não deixar rastros para as figuras sem importância de seu
convívio. Entregue à sua própria solidão, decide, como alguém à beira da morte,
restabelecer o contato apenas com aquelas personagens sobre as quais acredita
haver deixado alguma coisa por resolver. É quando reencontra Aymeric e tenta de
alguma maneira estabelecer uma alternativa capaz de salvar o amigo do abismo
como não deixar que as trevas do fim traguem de vez sua própria existência de
isolado do mundo. Bom, mas isso, perceberá o leitor, não são positividades, apenas
influxos de esperança, essa sombra manifestada nas situações mais improváveis.
Mas entre uma centelha e uma chama sobra uma extensão variável, o suficiente
para não vigorar esse sentimento duradouro recorrente na maioria das pessoas.
Esse
interstício para os possíveis últimos dias é continuamente alimentado por
Captorix, um suposto remédio milagroso receitado por psiquiatras capaz de reintegrar
os indivíduos à ordem comum do mundo. O milagre é suposto porque trata-se de
uma droga que ao ativar a produção de serotonina ao mesmo tempo que propicia
uma sensação de bem-estar no indivíduo lhe corta totalmente a libido; em alguém
condenado à solidão, o apagamento do desejo sexual, transforma-o totalmente num
sujeito intermitente mais próximo às variações de humor, como ansiedade e
depressão – trânsito que a narrativa, como se fosse uma caixa de ressonância,
consegue apresentar pela própria superfície da escrita.
Os
reencontros, possíveis ou não, são atravessados pela memória do passado e uma
contínua reflexão sobre como seria sua vida se em momentos específicos não
tivesse escolhido, por vergonha ou incapacidade, o caminho que privilegiava exclusivamente
sua própria condição. Esse périplo, entretanto, não tem nenhum interesse de
desfazer o passado, afinal Florence tem ciência – ou pelo menos descobre sobre
essa impossibilidade – tampouco se afirma pelo clichê de construir um novo futuro.
Trata-se apenas de uma constatação e uma alternativa de conviver com seus
próprios e indestrutíveis fantasmas. Reside aqui juntamente com as tentativas
possíveis de fazer-se vivo o que talvez leve os leitores a admitir certa
esperança nesse homem-intermitente – o que é, repetimos, em se tratando de um
escritor perfeitamente integrado ao fim do longo tempo das Luzes, pura
imposição, que, aliás, só reforça nossa incapacidade em admitir nosso fracasso.
Essa certeza
é dada ao leitor à medida que atravessa a narrativa e percebe todo itinerário
da personagem como um calvário. Labrouste chega a assumir certo traço cristão
ao se compreender enquanto mártir, o herói cuja destituição é integralmente
alimentada por um mundo cada vez mais perverso ao privilegiar o indivíduo sobre
o coletivo. Obviamente que não se deixa passar nenhuma possibilidade de redenção.
Integralmente distante de qualquer indício da cultura cristã, o que se
prevalece é tão-somente a condição histórica da morte em vão do homem porque o
outro já não está ou nunca esteve marcado pela integração entre os da espécie. Isto
é, repousa aqui, o pleno estágio de abandono e desamparo representado pela
expressão interrogativa de Jesus à hora de sua morte que é a reapropriação do mesmo
drama de destituição do paraíso – estágio e drama que nos define enquanto
humanidade.
Todo o
niilismo de Michel Houellebecq não se mostra, entretanto, enquanto um projeto capaz
de oferecer a dose de cicuta que nos arrebate de nossa própria miséria. É uma
análise precisa – cirúrgica, diríamos – acerca de um modelo de civilização que,
negando todas as possibilidades de humanização, repisa, em falso, no seu
oposto. Todo escritor é homem entre os homens e, como tal, deve revelar o que
homem é para outros homens. Este parece ser certo princípio que rege o trabalho
do escritor francês. Ao menos é o que se revela no suplicante desfecho de Serotonina.
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