Quiasmo Malcolm-X: a tópica negra do descobrir o ouro
Por Wagner Silva Gomes
Quem pega um
exemplar do último livro do autor capixaba Marcéu Rosário Nogueira, lançado
pela editora BOLEKAJA (2019), lê em sua capa frontal de cor marrom, com letras
grandes em negrito, o nome “Ação Dão”. A contracapa, de mesmo estilo, traz o
nome “Cor Podre”. Há um estranhamento imediato no entendimento de que o nome do
livro não é “Ação Dão” e a contracapa não é apenas uma frase mostrando o
conteúdo do livro. Então, ao abrir o livro o escancarando, num ato luxurioso
que a quem não o tratou com afeto pode causar um incômodo de repugnância (é
amor ou estupro, se o seu olhar for colonial), como quem o coloca em uma copiadora
para imprimir ou escanear, se surpreende com o nome verdadeiro do livro Coração
Podridão.
Detalhe, no
poema OLHARmaTOCAdorDIZsó, o M, que pode ser de Machado de Assis, que traz em
sua biografia o registro de ter trabalhado com impressões de textos em uma
copiadora, onde aprendeu muito lendo os livros, diz ele em uma de suas crônicas
alhures, os versos "memórias póstumas/ a p o d r e c i d a s/ que refletem
o que/ eu viveria/ o vácuo/ de tua voz/" (p. 61) mostram um cenário em
que a voz do colonizador que não se importa com a historicidade da cultura do
negro, ex-escravizado, é o que faz se criar um vácuo de memória que ao não ser
lembrada e cuidada apodrece, apodrecendo consequentemente a história do país, a
construção da forma de vida de um povo plural também na igualdade de direitos,
que deveria fazer valer seu modo de vida acolhendo verdadeiramente etnias
múltiplas, principalmente as basilares indígena e negra, que ainda hoje só
falam depois de mortas se se considerar os genocídios de comunidades indígenas
e de negros pelas periferias.
Daí adiante,
quem lê os poemas e observa versos como “e pingava minha língua/ capenga/ ao
chamar/ teu nome/ na madrugada/ de mad rogada/ sou paisagem/ dragada/ sou
passagem/ rasgada/ gadara/ ardida/ entre/ os passos/ que posso dar/ (p. 12-13), começa a perceber que há mais sentidos na capa, ou melhor, há nela de
início uma falta de representação, pois a ação não pode ser dada (“Ação”, “Dão”),
é preciso que o sujeito aja sobre a paisagem e nela exerça sua forma de fazer e
se fazer o lugar.
A cena
remonta ao período da colonização do Brasil em que os escravizados foram
trazidos forçosamente da África no século 16 e assim permaneceram por três
séculos de escravidão (1550 - 1888). Há um homem negro que atravessa o mar
salivando enlouquecido (mad) de fome e clama para que haja naquele sentido vão
para ele um lugar onde “minhas lágrimas”,
“a tinta/ do meu sangue/ ex/ cor/ r/ ia/” onde possa dar vez a uma paisagem
étnica. Conhecendo ou não sobre o oriente médio surge no embaralhar da língua
do negro o trunfo no meio na frase “rasgada/gadara/ guardada”, com o qual o
sujeito fará da cidade autônoma localizada no sudeste do mar da Galileia, onde
na época de Jesus viviam os não judeus, um lugar de resistência ao que está posto.
Assim antes de ter significado Gadara é o que guarda um nome, um sentido, uma
ação, surgida do ato violento.
O poeta e
agitador cultural Márceu Rosário Nogueira, integrante dentre outros do coletivo
Poesia Inútil, traz no seu nome a própria paisagem (mar e céu), um objeto
religioso e uma árvore que é provinda do nome de uma família portuguesa que
escravizou as pessoas de etnia negra. Marcéu faz do seu próprio nome um eixo
entre a paisagem de África e a paisagem do novo mundo (o Brasil colônia – que ainda
assombra a nossa etnia). O rosário na mão de Márceu poderia ser um facão usado
na capoeira maculelê, poderia ser a rosa do povo, de Drummond, mas antes, do
seu povo, poderia ser o que se transforma durante a leitura do livro: um cordão
feito do quiasmo (a cruz de cristo, que nas mãos de Marcéu se torna a cruz de
Malcolm-X) das palavras Cor – Ação/ Podre – Dão uma embaixo da outra, formando
o X: Cordão Ação Podre. Cordão esse que é coração difícil de se livrar das
impurezas devastadoras do agronegócio: “meu peito/ em acúmulo/ de
espinhos/ cravados/ pela linda/ rosa/ repleta (do mesmo R de rosa)/ de
agrotóxicos” (p. 60).
Dessa
maneira, o aprendizado, que virou uma tópica negra, provindo da ação do
Malcolm-X nos Estados Unidos, que relata em sua autobiografia que mudou o seu
nome por não querer mais usar o nome de origem colonial e sobrenome provável de
uma família colonial, fez com que o autor aqui estudado não use o seu nome
completo na orelha do livro e nem na identificação editorial do nome do autor.
Na verdade ele usa o nome Marcéu, que não é um nome, é uma paisagem, já que é o
esquecimento de um nome retomando mais a sua ação, assim como nos diz o
filósofo Nietzsche em A genealogia da moral sobre a importância em
se esquecer o nome para dar vazão à ação sem entraves.
Em um dos
poemas do livro Marcéu diz sobre o seu cordão limpo da prata mais reluzente da
dignidade negra tirado do ocultismo e conceptismo barroco das cidades
brasileiras construídas por mãos negras com ouro e prata em meio a toda podridão
colonial já no título sinestésico que mistura as sensações de ver ouvir e sentir “Estourolho do peito”: “corro
eu mas/ permaneço estático/ me estico ao máximo e me sinto um inseto/ não há
contrapartida/ de volta tu não se estica/ passagem só de ida” (p. 55-56).
O cordão de
Marcéu seria ostentação se não houvesse tanta podridão que ainda nos faz coçar
o peito sob efeito do inseto colonial que ainda nos corrói. De onde nascerá a
rosa do cordão, senão do pingente, rosa do povo, que trabalhou nas minas
durante a extração colonial de ouro, prata e pedras preciosas, perdurando no
garimpo de meados do século 20, e depois nas várias barragens, inclusive as que
se romperam na última década no país (a exemplo das de Mariana e Brumadinho)
por ação do enriquecimento devastador dos milionários donos das mineradoras do
país: "estouraram/ dez barragens/ em meu peito/ escorrendo pelos meus
olhos/ tristeza lama e esterco" (p. 55).
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Marco Antonio Barreto