Queda e ascensão de William Stoner
Por Steve
Almond
Porque
autores labutam amiúde na obscuridade, e porque quase todos a creem
injustificada, a história da ressurreição crítica e comercial de Stoner
(Rádio Londres, 2015) tem sido repetidamente invocada como artigo literário de
fé. A saga reafirma com força aquela voz petulante dentro de todo escritor,
aquela que insiste que publicar é no fim meritocracia, que a posteridade não se
refere a tendências editoriais, orçamentos de propaganda ou hype. Emily
Dickinson enviou seus pequenos épicos sombrios a um mundo que os considerou
pouco mais que pássaros estranhos. Herman Melville acreditava que Moby Dick
seria sua conquista definitiva e ficou aturdido quando o livro pavimentou sua
descida ao esquecimento. O Grande Gatsby foi refugado por anos como obra
menor. Segue o baile.
É também
importante, e curiosamente inspirador, reconhecer o estado em que John Williams
se encontrava quando escreveu Stoner. Como documenta Charles Shields em
sua nova e escrupulosa biografia, The Man Who Wrote the Perfect Novel: John
Williams, Stoner and the Writing Life [O homem que escreveu o romance
perfeito: John Williams, Stoner e a vida de escritor; sem tradução brasileira],
Williams não estava exatamente no topo das listas. Embora tivesse dois romances
em seu nome, mal era conhecido no interior do firmamento literário.
Seu primeiro
romance, Nothing but the Night [Nada além da noite, sem tradução
brasileira], foi publicado pela Swallow Books, uma pequena editora de Denver
administrada por aquele que seria seu mentor, Alan Swallow. Swallow julgou o
manuscrito “chato” e “um tanto excessivo”. O próprio Williams ficaria
acabrunhado com o livro anos depois.
Seu segundo
romance, Butcher’s Crossing [publicado com o mesmo título no Brasil pela
Rádio Londres em 2016], saiu por uma editora maior, a Viking, em 1959. Narra a
história de um desistente de Harvard que viaja ao interior rural do Kansas nos
anos 1870 e embarca em uma catastrófica caçada de búfalos – Cormac McCarthy via
Emerson. O New York Times julgou-o um western malogrado que
“contém pouco interesse e se move como se rebocado por uma lesma em uma lagoa
de melaço.”
Quando
Williams lançou seu terceiro romance, seu terceiro casamento gorara, suas obras
anteriores não eram mais impressas, e a Fundação Guggenheim lhe negara o
pedido. Sua agente, Marie Rodell, não estava otimista quanto ao manuscrito
inicial de Stoner. “Posso estar totalmente errada”, escreveu ela, “mas
não vejo isso como um romance com alto potencial de venda”. A maioria dos
editores que receberam o romance concordara. Um deles referiu-se a Stoner como
um “personagem pálido e cinzento”.
*
Há um certo
número de escritores que teria capitulado em face de tanta má repercussão. Eu,
por exemplo. Se tivesse recebido tal prognose de Rodell, teria contra-atacado
com um bilhete contendo linhas semelhantes a estas:
Querida
Marie,
Stoner
é chato, você diz? Este foi meu palpite também. Felizmente, em rascunhos
anteriores, fiz o professor estrangular sua esposa e espancar seu rival
acadêmico com o fólio original de Os contos da Cantuária. Ele também
decapitou a babá porque ela testemunhou um dos assassinados. Então ele rapta
sua filha e eles partem em uma farra criminosa que os conduz do Missouri às
terras ermas de Dakota do Sul, onde ele encontra um xamã dos povos nativos, que
Stoner mata e come. Isso ajuda?
Steve
Entusiasmado
como estou por ter iniciado o pouco promissor subgênero da Stoner fanfic,
mantenhamos o foco: a fé de Williams jamais vacilou. “Bem, eu não tenho ilusões
de que [Stoner] será um ‘best-seler’ ou coisa do tipo”, disse ele a sua
agente. “A única coisa de que tenho certeza é que é um bom romance; em tempo
poderá ser visto até como um substancialmente bom.”
Como sugere
esse bilhete, Williams tinha o temperamento oposto de sua criação ficcional: um
egotista e hedonista devotado que usava echarpes e era obcecado com sua
reputação. Shields descreve como Williams postava-se em lugar conspícuo no
departamento de Inglês da universidade que lecionava toda vez que um de seus
romances era lançado e esperava as congratulações dos colegas. Eles raramente o
faziam.
Imaginando
essa cena, sinto uma pontada de piedade por Williams. Mas é claro que Williams
era carente. É claro que possuía um grande ego. De que outra forma teria
suportado os revezes que sofreu? De que outra forma teria convertido as dúvidas
que o mundo lhe penitenciara em estímulo criador?
*
Estas não
findaram com a publicação de Stoner em 1965. O livro recebeu poucas
considerações positivas, vendeu alguns milhares de cópias e desapareceu das
vistas do público. Uma das menos conhecidas indignidades sofridas por Williams
foi a de que o romance escrito por seu grosseiro cunhado fora publicado um mês
antes do seu e vendera o dobro de exemplares. Como predisse Rodell, Stoner
provou-se lamentavelmente fora de sintonia com as sensibilidades dos leitores
americanos.
Exceto que
frases com a anterior são pura besteira. Não há algo como “as sensibilidades dos
leitores americanos”. É um daqueles termos inventados por pessoas do mercado
editorial para fingir que têm alguma noção de quais livros irão vender. Eles
não têm.
Certamente
há autores de marca com quem se pode contar para vender livros que desfrutam de
apoio promocional massivo, e livros que recebem resenhas tresvariadas, e livros
que respondem diretamente a crises culturais específicas. Não há dúvida, por
exemplo, de que uma obra como a coleção de contos de James Baldwin Going to
Meet the Man estava destinado a receber atenção em 1965, uma vez que
imagens de policiais do Alabama batendo em manifestantes pelos direitos civis
em Selma estavam espalhadas pelas telas de televisão em todo o país. Tudo isso
contribui a curto prazo.
Mas para uma
obra literária perdurar, algo de mais precisa acontecer. Leitores precisam
desenvolver sentimentos pelo livro. Precisam tornar-se obcecados daquele modo
peculiar que os convence de que outras pessoas têm que ler o livro. Esse tipo
de evangelismo é essencial por conta do tempo e atenção que um romance exige.
Nesse sentido, Stoner desfrutou de uma enorme vantagem que ninguém
previu. A saber, suas preocupações – o poder redentor da literatura,
integridade pedagógica, a academia como refúgio – estavam dirigidas às pessoas
mais propensas a se tornarem leitores apaixonados e críticos influentes.
*
Não digo
isso para diminuir Stoner. Williams não escreveu o livro para alcovitar
professores adjuntos de olhos sonhadores como eu. Ele emergiu, organicamente,
de suas preocupações como aluno e professor de literatura. Mas é também
verdade, e não inteiramente fortuito, que Williams foi um pioneiro no mundo dos
programas de escrita criativa, mundo que se expandiu exponencialmente ao longo
das últimas décadas.
Há agora
mais de mil programas destes nos Estados Unidos, todos repletos de aspirantes a
escritor que se digladiam para veicular os prazeres da leitura a graduandos
desinteressados, produzir uma obra original, e lidar com rivalidades, tal como
William Stoner.
Além disso,
cada pessoa que se inscreve nesses programas, tal como Stoner, descobriu na
literatura uma força capaz de colocá-los em contato com suas vidas interiores.
A ascensão da cultura diplomada1 – tão frequentemente vilipendiada
pelos autointitulados comissários da criatividade – redunda em um movimento
massivo de pessoas que foram em busca de si mesmas.
Os absurdos da
vida no campus inspiraram um grande número de romances cômicos (Lucky Jim,
Ruído Branco, Moo, Straight Man).2 Mas há
também apetite por livros que retratem a dignidade da academia e celebrem a
vida da mente. Tais motivos zelosos podem soar ultrapassados em um mundo
assolado pelos prazeres protetivos da ironia e da sátira. É assim também que
muitos de nós nos sentimos. Stoner é um dos poucos romances que honra
nosso idealismo.
*
Basicamente,
Stoner tornou-se o Velvet Underground dos romances. Como famosamente
gracejou Andy Warhol, essa banda tinha apenas 300 fãs, mas todos deram início a
bandas. Muito poucas pessoas sabiam da existência de Stoner quando
publicado. Mas, destes, um número surpreendente eram escritores ou críticos, e
praticamente todos se tornaram defensores apaixonados.
O membro
detentor da patente do que podemos chamar O Culto de Stoner foi Irwing Howe,
que mencionou o livro no The New Republic apenas um ano após sua
publicação. “Dada a quantidade de ficção publicada neste país anualmente,
parece inevitável que a maior parte dos romances sejam ignorados e que, entre
estes, uns poucos devam ser, todavia, obras de distinção”, observou Howe. “Stoner,
livro que recebeu muito pouca atenção quando apareceu vários meses atrás, é,
creio, uma dessas obras: sério, belo e comovente”. Em 1973, o crítico C. P.
Snow começou sua resenha da edição britânica com a pergunta que todo stoneriano
devotado já se fez: “Por que este livro não é famoso?”
Uma das
curiosidades desta saga é que o próprio Williams, um ano antes, vencera o
National Book Award com Augustus (Rádio Londres, 2018), seu relato
ficcional da vida do primeiro imperador romano. Ele dividiu o prêmio com John
Barth. De todo modo, a edição americana de Stoner estava fora de catálogo.
Em 1981, o
escritor Dan Wakerfield fez uma longa apreciação de Williams na revista Ploughshares,
e trabalhou obstinadamente para convencer outro editor a republicar Stoner.
Eventualmente, o diretor de uma editora universitária na Universidade de
Arkansas, Fayetteville – onde Williams fora passar seus últimos anos –,
concordou em republicar o romance. A edição relançada estava fora de catálogo
quando chegou às minhas mãos uma década depois.
O padrão se
repetia. Escritores continuavam a escrever louvores, livreiros especializados
não conseguiam manter o romance em estoque, e eventualmente um deles mencionou
essa singularidade ao editor da versão impressa do New York Review of Books,
que relançou o livro em 2006. O historiador literário Morris Dickstein
reacendeu o interesse com um texto no Times ungindo Stoner a
“romance perfeito”. Rapidamente, romancistas proeminentes do Reino Unido como
John McGahern, Colum McCann, Ian McEwan e Julian Barnes estavam celebrando Stoner.
Se o destino
de Stoner nos Estados Unidos redundou em uma série de fogueiras, na
Europa o livro deu início a um incêndio, saltando da lista de best-sellers de
um país para o outro, Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Países Baixos. É
genuinamente desconcertante que a história de um sossegado professor vivendo no
interior dos Estados Unidos no meio do século XX iria se tornar sensação na
Europa. Mas vou evitar fazer grandes e tolas generalizações sobre como os
leitores europeus são mais sofisticados que os americanos. Posso apenas
especular.
Talvez a
filiação apaixonada a um romance viralize de modo mais fácil em países menores.
Talvez os leitores europeus tenham encontrado em Stoner um afastamento
vibrante da imagem norte-americana mais comumente veiculada no exterior, a de
homens em busca da glória por meio de ação incansável, expansão violenta e
egoísmo compulsivo. Talvez eles tenham sido seduzidos por um herói que rejeita
a guerra em favor da devoção monástica a manuscritos medievais. Talvez na
sóbria dignidade de William Stoner eles tenham encontrado a tremulante brasa de
um iluminismo norte-americano. Seja com for, os europeus compraram mais de um
milhão de cópias.
*
Recomendei Stoner
incessantemente desde a primeira vez que li. Anos atrás, eu impingi o livro
sobre duas jovens escritoras com quem acabara de fazer uma leitura, embora
impingir não capture propriamente o espírito de súplica envolvido. Um mês
depois, uma me escreveu confessando que começara a ler Stoner, mas
abandonara o livro, pois tinha se metido em uma grande briga com o namorado e
ler o livro era mais do que ela podia suportar. Um segundo comentário chegou
poucos dias depois, informando-me de que acabara Stoner. “Ele meio que
me destruiu”, disse ela. “Mas também me fez sentir – e isso é um pouco difícil
de explicar – que eu precisava ser destruída”. Nunca mais soube da outra
escritora. Um tempo depois, descobri que havia se tornado agente literária.
Na primeira
discussão em um grupo de leitura sobre Stoner que conduzi, um ex-colega
meu de Boston College apareceu de um modo um tanto inesperado. Era um professor
de literatura já de idade que eu imaginava indiferente a romances modernos.
Sentou-se em silêncio até o fim da noite, quando, com certa cerimônia hesitante,
sacou do bolso interno do paletó um recorte de jornal já desbotado.
Disse-nos
que fora um dos poucos críticos a resenhar Stoner quando publicado e que
havia descartado o romance como árido e não original, obra menor. Lembro-me
dele mirando perplexo o recorte, como se fosse uma adaga sangrenta que se
materializara em sua mão. “Não consigo imaginar o que estava pensando”, disse
suavemente. “Creio que era um homem jovem, enciumado daquela realização.”
Em outro
grupo de leitura, desta vez um grande e lubrificado com vinho, um homem se
levantou para dirigir-se à sala. Estava em um estado de elevada indignação; as
bochechas de um vermelho bramoso. “Por que devo ler sobre esse perdedor?”,
inquiriu ele. “Ele se recusa a lutar por seu país. Seu casamento é um pesadelo.
Ele é assediado no trabalho. Ele nunca faz nada.”
Uma incômoda
mortalha desceu sobre a sala, quebrada por um segundo homem que observou,
tranquilo, mas com não menos emoção, que sentia estar lendo sobre sua própria
vida, e que William Stoner bem poderia ser ele.
Ambos os
homens diziam isso, creio. É o sentimento de implicação – do romance expondo os
recintos inexplorados da individualidade, revelando-nos a nós mesmos – que
causa nos leitores tais reações extremas.
*
Aqui nos
Estados Unidos a última medida de relevância cultural é a versão Hollywoodiana.
Assim, sinto-me no dever de informar que um time de cineastas está no processo
de transformar Stoner em filme. Casey Affleck estrelará. Joe Wright (que
adaptou Orgulho e preconceito, Desejo e reparação e Anna
Karenina) irá dirigir. Ethan Hawke é um dos produtores executivos. Estou
certo de que todos os envolvidos farão o seu melhor para honrar o livro.
Se der
fruto, o filme será visto por dezenas de milhões de americanos. Mesmo se apenas
uma pequena fração buscar o livro, Stoner irá se tornar relevante – na
medida em que um romance pode ser relevante nestes dias – e terá completado sua
peregrinação da obscuridade à adulação popular. William Stoner, ou um reluzente
fac-símile seu, aparecerá no Oscar. William Stoner terá um time publicitário,
festa pós-premiação e brindes exclusivos.
Estou dando
duro aqui para não ser um idiota. Mas é uma trilha íngreme. Porque muito do que
torna um livro sagrado é o simples fato de que você cria o filme na sua cabeça.
Sua imaginação faz o serviço de todo aquele trabalho sindicalizado presente na
lista de créditos. Você pode falar sobre o filme com outras pessoas mais tarde.
Mas você viu um filme diferente em um cinema diferente, no qual você se senta
só consigo mesmo.
O cineasta
certo entenderá isso. Na verdade, o cineasta certo o fez. Seu nome é Vernon
Lott. Eu o conheci uma década atrás, quando estava lecionando na Universidade
de Idaho, em Moscow. Vernon, que morava por perto, convidou-me a tomar parte em
um documentário que ele estava fazendo sobre má escrita, da qual sou um
praticante assíduo e defensor convicto. Após a entrevista, Vernon, que parecia
ter dezenove anos, perguntou se eu poderia recomendar livros sobre boa escrita.
Não apenas recomendei Stoner como disse que ele deveria fazer seu
próximo filme sobre o livro.
Poucos anos
depois, Vernon me escreveu para informar que estava fazendo um documentário
sobre Stoner. Tinha minhas dúvidas se isso iria acontecer, já que sua
página no IMDB lista “zelador” na categoria outros serviços. Mas ele
eventualmente apareceu na minha casa com uma pequena equipe para gravar meu
zeloso desvario.
O filme
resultante, The Act of Becoming [O ato de tornar-se; sem versão
brasileira], tem uma hora de duração. Consiste em uma dezena de escritores, críticos
e editores encarando uma única câmera e falando sobre Stoner, como
descobriram o livro, por que ele se tornou tão importante para eles. Há longas
tomadas da prosa em si, e o pulsar ocasional de música eletrônica.
No final do
filme, Lott mostra cada um dos seus documentados momentos antes do início de
nossas entrevistas filmadas. Lá estamos sentados encarando a câmera, inquietos,
olhando para os lados, sorrindo nervosamente e piscando, lambendo os lábios.
Estes retratos excruciantes preenchem a tela por dois minutos inteiros. Eles
conseguem dizer que cada ser humano, se ousarmos ver de perto, vive em meio ao
tumulto. Vernon conseguiu fazer um filme que captura o triunfo artístico de Stoner,
que não é apenas o que testemunhamos da vida de William Stoner, mas o que
testemunhamos de nossa própria vida.
Notas
1 O autor se
refere à obtenção do diploma de Master of Fine Arts (MFA), uma pós-gradução
“criativa” vinculada ao universo das artes e, no caso específico, à
proliferação acadêmica dos cursos de escrita criativa.
2 Romances de Kingsley Amis, Don DeLillo,
Jane Smiley e Richard Russo, respectivamente. Apenas os dois primeiros
possuem edição brasileira: Lucky Jim (Todavia, 2019) e Ruído branco
(Companhia das Letras, 1987).
* Tradução
livre de Guilherme Mazzafera do artigo publicado originalmente aqui no Literary
Hub em 29 de agosto de 2019.
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