Os anos, de Annie Ernaux
Por Pedro
Fernandes
Annie Ernaux. Foto: Ed Alcock |
Annie Ernaux
será sempre lembrada como a escritora da universalização do eu ou a figura que inaugurou,
se não pelo concepção, pela prática literária, a compreensão segundo a qual
somos um produto moldado pela exterioridade do mundo: a história, a cultura, a
economia, a política, a ideologia participam ativamente do que somos e justifica
porque somos. O alcance disso se dá pela sua literatura. Os anos, por
exemplo, se constituem de, e podem ser descritos assim, um conjunto de
reminiscências que evocam desde suas raízes familiares mais próximas até
alcançar o presente, o tempo da narradora. Além da universalização do sujeito
da enunciação, a escritora privilegia um tempo eterno, o presente.
Mas, apesar
de todas as inovações narrativas, digamos assim, esta não é uma obra cujo
interesse é se filiar no acalorado debate (patente sobretudo nos estudos
literários) acerca da condição conceitual de um termo de um todo problemático,
herança do complexo conjunto de desconstruções operadas no interior das
revisões sobre as noções vigentes durante longo tempo da narratologia: a
autoficção.
De toda
forma, da mesma maneira que sempre lembraremos Annie Ernaux por sua posição
inovadora na transformação do eu em elemento universal, também lembraremos sua
literatura com a que demove a autoficção do conceito simplista de confissão por meio do conteúdo ficcional. Ao
destituir a singularidade de sua existência em nome de um universo desfeito de
fronteiras subjetivas (ou limitado apenas pelas linhas de seu lugar) Os anos
também não deixam de problematizar a força subjetiva que antecede a existência
de toda narrativa. Isto é, estamos diante de uma obra que problematiza
indiretamente alguns lugares do debate sobre o modo narrativo ao qual se filia.
Os anos
não constituem obra isolada no tempo; é, sim, produto devedor do cânone
literário francês: balzaquiana pela maneira como observa criteriosamente o
entorno e o desenvolvimento das coisas; proustiana quando transforma a memória em
lugar de experimentação do mundo; beauvoiriana pela formulação da história
entrevista pela ótica feminina e uma compreensão sobre a mulher no interior das
relações familiares, sociais e históricas. Essa última característica demove a
afirmação corriqueira segundo a qual o sujeito forjado pela literatura de Annie
Ernaux é impessoal. Talvez resida aqui outra de suas inovações: a
impessoalidade restringe-se a essa proposital diluição do sujeito enunciativo
que deixa de responder por uma pessoa no singular para dizer sobre um nós coletivo.
Mas, do interior dessa coletividade é um ponto vista eminentemente feminino que
melhor se realiza, claro está, na recepção leitora.
Os registros
reunidos em Os anos são sedimentares. E se colocam como parte de uma
obra gestada e adiada ao longo de uma vida e como resposta aos modelos
literários estabelecidos mas incapazes de alcançar a satisfação da própria
narradora. Isso parece fundamental porque trata-se de uma revelação ao mesmo tempo cara e pura sobre a própria existência da literatura – resultada de uma
condição insaciada com o estabelecido. Ao observar as transformações
passadas pela literatura francesa, decorrente dos trabalhos experimentais de
outros escritores estrangeiros, a narradora se refere a Butor, Robbe-Grillet,
Sollers, Serraute, ícones do nouveau roman, como “autores que queríamos
gostar, mas seus livros não ofereciam a ajuda necessária para as nossas vidas”;
a narrativa deixa entrever, despretensiosamente, seu próprio interesse: “Gostávamos
mesmo dos textos com palavras e frases que resumissem a existência, a nossa e a
das empregadas e dos entregadores do alojamento [...] Precisávamos de palavras
que contivessem em si explicações para o mundo e para as nossas vidas.”
A
impessoalidade de Annie Ernaux, portanto, não resulta numa observação desinteressada
do mundo, de si, e das coisas; esse olhar é, por vezes, compreensivo, irônico, desencantado,
nostálgico até. Ou seja, assume tonalidades variadas, mas de nenhuma maneira se
coloca saudosista ou preso a uma posição específica, libertina ou
tradicionalista. Esse deslocamento de um lugar de origem parece reafirmar que,
independente do passado, o presente se oferecerá sempre como alternativa melhor,
o que foge de toda perspectiva catastrófica sobre o contemporâneo ou o imediato
a ele que parece acompanhar a humanidade. Algo que parece justificar isso se
mostra de maneira mais direta quando a narradora se revê numa fita de vídeo em
que uma aluna confronta-a com a pergunta sobre o tempo de sua idade e ela
responde com a afirmação meio vaga de que as adolescentes de agora têm melhores
condições de serem o que desejam ser do que no passado.
O extenso
painel formado por essa obra de Annie Ernaux se compõe da observação atenta da
narradora sobre os restos de sua presença deixados na história: os registros
fotográficos, as entradas nos diários, gravações em vídeo, o reencontro com
suas afetividades. Esses objetos são suas madeleines; uma vez provadas
arrastam a memória para uma série de resquícios do tempo e uma interpretação
sobre eles. O próprio eu revela-se apenas nesses instantes contemplativos,
quando se deixa observar à distância, mas logo tudo é levado para uma memória,
diríamos, coletiva. E caleidoscópica. A narradora, noutro instante de solta
revelação, apresenta uma sentença capaz de justificar uma compreensão sobre a
natureza da autoficção, ou melhor, da autobiografia (sendo o seu, um discurso do eu): “captar o reflexo da história coletiva projetado na
tela da memória individual”.
Esse
exercício observa a história francesa da libertação de Paris passando por Maio
de 68 e os muitos fantasmas sobre a espera de uma revolução, desejo
continuamente adiado pelas múltiplas seduções impostas pelo capitalismo. O que
espanta ao leitor de Os anos não é a variedade de referências captadas
por essa memória, mas a rapidez como a humanidade passou dos tempos de opressão
e silenciamentos para os tempos de lazer, do consumo e do narcisismo. No mesmo
passo, os grandes problemas sociais continuaram sempre os mesmos e, agora,
talvez pior, uma vez que a sociedade da narradora estabeleceu mecanismos de desinteresse
e distanciamento da história, certo mal que arrasta todos para os individualismos, a indiferença e como eles alguns fantasmas que jurávamos sepultados.
A prisão
numa redoma feita de contínuo presente nos coloca em situações um tanto
complexas: a sensação de involução social, o que nos leva a perder as noções
mais caras de progressão do histórico ao ponto de flertar com as forças mais
obscuras que julgamos inofensivas porque apagadas no inconsciente da
história. Na variedade de críticas oferecidas em Os anos essa talvez
seja a principal, uma vez que estabelece uma compreensão, repetimos, de que só
existimos em relação com os lugares fora de nós. E é dessa inquietação, compreender
pelo mundo, sua condição, que nasce a obra de Annie Ernaux – que às vezes parecerá
um tanto cansativa pela monotonia das observações ou pelas referências
exclusivamente da história francesa, mas nunca desnecessárias: sempre nos
surpreenderemos quando conseguimos por essa teia, de alguma maneira (não
pergunte como), ver a nós mesmos. Feitiços da literatura.
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