O morto atrasado para o enterro: sobre um conto de Sigismund Krzyzanowski
Por Joaquim Serra
“É sempre a
mesma coisa: primeiro você visita os amigos, depois – quando os cortejos
fúnebres os levam – você visita seus túmulos.” É assim que o narrador de “A
décima terceira categoria da razão” começa sua história. E é em uma das visitas
do narrador ao cemitério que ele encontra um velho coveiro a quem dará voz.
Mais a frente, explica ele que o tal coveiro já não pertencia a nenhuma das
doze categorias da razão de Kant, mas sim à décima terceira, “uma espécie de
alpendre lógico, mais ou menos apoiado no pensamento objetivamente
obrigatório.”
Para
conquistar o acesso à tal categoria, o narrador dá ao velho um cigarro que o
faz soltar a língua explicando as diversas pousadas para os mortos. Quando fala
do canto dos oradores o coveiro começa a confirmar aquilo que dizem sobre ele:
“os oradores, é sabido, assim que escurece, começam a falar todos ao mesmo
tempo. Às vezes você passa perto do canto deles e escuta uns cochichos de
dentro da terra. É melhor ficar longe”. São prolixos como foram em vida.
Diante da
relutância do interlocutor em acreditar naquilo que dizia o velho coveiro, este
o convida para ver uma cova aberta. “Aquele lá engoliu uma pá de terra e ficou
de boca fechada. Já outro desassossegado durante muito tempo me deu um
trabalhão”. Com isso o coveiro introduz a espantosa – porém, para ele, a
natural – história do morto que não podia ser enterrado e tudo começa com uma
fuga. A explicação do morto para a fuga tem um quê do humor gogoliano: “o
caixão balançava tanto nos buracos da estrada que a tampa saiu do lugar. Pela
fresta eu vi uma luzinha me chamando. Eu pensei: é a última, não haverá mais”. É assim que o morto vai bater na casa do velho
coveiro.
Depois de
convencido, o morto volta para o enterro, mas chega atrasado para a cerimônia.
Vai bater na casa do velho novamente que, resignado, aceita-o em sua casa. Ao
buscar ajuda para o morto que a essas alturas já tem o corpo duro e gelado, a loucura
parece ser só do velho: “chegamos ao escritório. ‘Aconteceu isso e isso’,
contei, mas os funcionários caíram na risada e disseram, como o senhor há
pouco: ‘Perdeu o juízo, vovô’”. Com os membros rígidos, o morto é colocado pelo
velho em um bonde, e a confusão se forma agora que o objetivo do velho é conseguir
que seu novo colega seja enterrado. No pendular ébrio do morto, ele acaba sendo
colocado em uma fila: “foi um pouco mais fácil: eu coloquei ele de pé na fila –
quando o da frente avançava, o de trás empurrava. Estava funcionando bem.”
A história
do morto faz o velho desnaturalizar um outro lado burocrático, a falta de
empatia daqueles que não o ajudam e são descritos a certa altura como
mortos-vivos. O morto causa espanto assim como a aparição absurda da velha na
novela homônima do soviético Daniil Kharms (sobre a qual ainda falaremos aqui
no blog). Além do choque da própria história, há também uma paródia da
racionalidade que sugere o título, que pode ser entendida como uma leitura do
período soviético.
As histórias
de Sigismund Krzyzanowski são daquele tipo que não se para de ler pela audácia
cômica do enredo, pelo absurdo lógico das ações, feito o que acontece na
trajetória dos dois Ivans – um que tem a cabeça parecida com um nabo virado
para cima, e o outro como um nabo virado para baixo –descritos por Gógol na
novela A briga dos dois Ivans. Os personagens de Sigismund são compulsivos,
quando não querem ser enterrados, podem querer morder os próprios cotovelos, o
que altera profundamente a vida social, a economia e a política – e até a moda
–, em “O cotovelo que não foi mordido”.
A leitura
dos contos pode despertar o leitor para o desfecho de uma das histórias daquele
narrador poderoso – que sabe que a estória é só estória –, o alter ego do
húngaro Dezso Kosztolányi (1885-1936), Kornél Esti que, depois de narrar uma
intrigante anedota em “O dinheiro” diz: “é interessante o
bastante? Suficientemente absurdo, inverossímil e inacreditável? Suficiente
para enfurecer aqueles que procuram na literatura motivações psicológicas,
significados e sentidos morais? ”
Notas:
* Os livros
citados neste texto são: O marcador de página e outros contos, de Sigismund Krzyzanowski,
traduzido direto do original russo por Maria Aparecida Pereira Soares, e O
tradutor cleptomaníaco e outras histórias de Kornél Esti, de Dezso Kosztolányi,
ambos publicados pela Editora 34.
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