Do porquê sou professor e não “ensino” gramática
Por Rafael Kafka
Uma das
coisas mais curiosas com que me deparo em meu cotidiano de professor há dez
anos são as pessoas as quais pensam poder me dizerem como devo fazer meu
trabalho. Não há mal algum em opinar sobre qualquer assunto e a carreira de
educador deve ser a mais aberta possível para debates sobre metodologia e
currículo. Todavia, fico impressionado com a quantidade de pessoas que se
sentem no direito de proferir este ou aquele juízo sem ao menos se prontificarem
a criar um arcabouço teórico mínimo, o qual garantiria um debate ético, limpo e
com objetivo construtivo. Dentro desse mal maior há outros menores.
Percebo que
pessoas ligadas às áreas de ciências humanas e de linguagem sofrem mais com
isso. Professores de ciências exatas e naturais ainda contam com o estatuto de
“científico” a seu lado e sofrem, ao que me parece, menos questionamentos no
tocante ao que ensinam e como ensinam. Humanidades e linguagens parecem o tempo
todo serem confundidas com meras opiniões e palavreados cheios de enrolação e
qualquer um se sente no direito de dizer como se trabalha as mesmas de uma
forma mais efetiva.
Nesse
contexto é que surgem opiniões bizarras como os projetos de escola sem partido,
algo por si já garantido pela constituição federal em seus princípios de
pluralismo de ensino, mas que em sua tautologia se mostram como mais um
instrumento de controle da carreira docente em sua capacidade de promover o
debate. Curioso é que muitas vezes as visões reacionárias no tocante a um
ensino limpo de opiniões políticas vem de próprios membros de uma carreira tão
perseguida quanto a de professor. O mais curioso é que essas visões podem vir
de companheiros os quais se colocam na mesma posição política que a nossa,
mostrando que muitas vezes visões acerca dos fatos sociais podem estar
profundamente ligadas a tripés existenciais.
Falo isso
pensando em uma cena vivida por mim nessa semana e que ainda mexe com meu fluxo
de pensamento. Sem entrar tanto em detalhes, penso na fala de uma colega de
trabalho que em dado momento de uma conversa em grupo disse-me que preciso
focar em aulas de gramática, pois alunos de uma dada série – os sextos anos –
possuem profundas dificuldades para se expressar “direito”. Tentei manter um
debate acerca das diretrizes de ensino nos quais me baseio para dar minhas
aulas, profundamente interdisciplinares e dialógicas, mas recebi alguns
xingamentos básicos como “ridículo”, “enrolão” e meramente focado em ensinar
marxismo a crianças, que até hoje quando ouvem essa palavra me perguntam o que
é isso, comunismo e afins, sinal de que falo bem mal do dito conteúdo.
Ensinar
gramática para muitas pessoas garante a expressão correta e profunda da língua
portuguesa. Há colegas que ainda acreditam piamente que uma boa aula de
gramática normativa é o suficiente para jovens falarem bem e se expressarem de
maneira correta, como se a linguagem humana fosse um punhado de filtros a
dizerem qual o caminho deve ser seguido para se obter sucesso comunicativo.
Ledo engano.
Quando criança,
por mais amor que tivesse por meus professores de língua portuguesa, pouco
aprendi de gramática. Eu rendia bem mais nas aulas de história e geografia, por
exemplo, pois eram matérias de leitura e debates políticos interessantes,
debates relevantes para entender a realidade ao meu redor e me fazer entender
fatos sociais como a pobreza e suas consequências. Eu pegava os livros
didáticos pela falta de livros em casa devido à pobreza de minha família e lia
os textos e aprendia demais com eles, inclusive os de língua portuguesa, que
pouco ou nunca eram usados em sala pela professora, que preferia encher o
quadro com regras gramaticais maçantes que demorei anos para entender e porque
precisava dar aula.
Havia também
as salas de leitura das escolas onde estudei, nas quais pegava livros que lia,
relia, deixava pela metade e aprendia estruturas sintáticas que usava em meus
textos de redação e depois em meus poemas de modo a adaptar a minha linguagem
aos novos achados que fazia.
Quando
estudei a gramática gerativa de Chomsky na faculdade, mesmo que de forma
resumida, pude entender que nós imitamos aquilo que ouvimos, nossa leitura de
mundo molda a nossa comunicação. A linguagem reside em nós e nós a
desenvolvemos em contato com o outro. Um ambiente de leitura garante o contato
com diversos outros e seus modos de uso da língua. Não à toa, quando
encontramos uma criança cuja linguagem é a violência provavelmente teremos em
casa uma família que se comunica dessa maneira com aquele aprendiz.
A leitura me
fez uma pessoa melhor, pois me ajudou a entender diferentes formas de ver a
realidade. A leitura me ajudou a melhorar meu domínio da norma culta da língua
portuguesa e entender a diversidade da linguagem humana e da língua brasileira,
em especial. Aprendi realmente não haver o falar errado, mas um falar que
indica questões identitárias profundas. Alunos de sexto ano que não conseguem
escrever de acordo com a norma culta indicam problemas de alfabetização bem
sérios e a alfabetização não se dá nesse nível de ensino. Esses problemas de
escrita provavelmente são encontrados em diversos adultos os quais tiveram
dificuldades em sua alfabetização e se tornaram analfabetos funcionais pela
falta de acesso à leitura.
Desse modo,
é uma visão assaz limitada creditar a solução da alfabetização ao ensino da
gramática normativa. E isso se torna mais grotesco quando temos uma pessoa não
formada na área defendendo essa visão sem leitura das diretrizes curriculares e
uma pessoa que trabalha na educação e é conhecedora de tantos julgamentos
injustos que nós recebemos pelas mazelas da sociedade as quais devemos
enfrentar com tão poucos recursos e tamanha vulnerabilidade.
Esse diálogo
me deixou irritado e deprimido por alguns momentos. Nos dias seguintes, segui
trabalhando a gramática textual que sempre trabalhei com meus alunos, levei
textos para ler com eles, exibi filmes e pedi a eles que se expressassem de
forma oral e escrita. A educação para mim não é apenas o ensino de regras, mas
um debate constante sobre a realidade vivida usando a língua portuguesa, a
redação e a literatura. Todo esse embate me fez pensar no porquê escolhi ser
professor e acredito que a resposta siga sendo a mesma de uns doze anos atrás.
Ser
professor me faz contar histórias todo dia e nenhuma aula minha é igual a outra.
Há dias mais rápidos, outros mais lentos, mais quietos, mais bagunçados, mais
fluidos e mais travados. Há dias de alegria e de tristeza, de memórias boas e
ruins. Mas sempre há o novo e posso usar tudo em sala para discutir com meus
alunos e com eles sempre aprendo, desde a importância de um abraço até o quanto
é legal se perder horas a fio na leitura de um livro. Meus alunos me fazem
aprender que um dia enfrentei as mesmas dificuldades deles e que ir à escola
para mim era um imenso esforço, o qual valia a pena porque nela eu poderia
socializar e ter um alívio da vida opressora que eu levava, além de aprender e
ser um pouco mais livre.
Um pouco
desse ânimo se perdeu nesse ano por conta de um leve adoecimento e esgotamento,
porém ele tem crescido novamente nos últimos tempos graças a maiores cuidados
comigo mesmo. E de alguma forma ser chamado de ridículo em um debate que
deveria ser de ideias e embasado me fez ver que estou no caminho certo de uma
resistência por meio da práxis docente humanizadora e libertadora. A
consciência disso tem me feito dormir bem à noite e me levado empolgado ao
trabalho todas as manhãs.
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