Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
Por Pedro
Fernandes
Os
espectadores que acompanham o trabalho de Kleber Mendonça Filho desde O som
ao redor, seu primeiro trabalho de maior projeção, encontrarão em Bacurau,
projeto que remonta segundo o cineasta a 2009, uma leitura que amplia
sua exposição acerca dos complexos e das complexidades do Brasil. Embora seja
uma produção dirigida a quatro mãos, nota-se alguns elementos fundamentais da
estética do cineasta de Aquarius: as relações de poder numa sociedade em
transição outrora marcada por cisões de classe, a revisitação a certos lugares
de uma memória tocada por ventos quase saudosistas de um passado irrepetível ou
o exame sobre alguma questão acerca de nossa identidade nacional cujas respostas
tardam chegar devido ao nosso interesse de preservação da aparência e adiamento
das soluções.
O tema de Bacurau
nos remete para o triste passado colonial, não especificamente no
sentido histórico, isto é, não é este um filme cuja narrativa remonta o período
de intervenção portuguesa no Brasil, mas se apropria das marcas aparentemente
inexistentes (só aparentemente) herdadas desse passado. A principal delas, o
silêncio imposto (e também autoimposto) acerca da violência de ordem diversa
que representou a colonização e que aprendemos desde cedo com resignação a
aceitar como uma pacífica e necessária situação imposta pelo destino.
Não é
preciso ir muito longe: o texto que nos é apresentado como certidão de fundação
do nosso país foi escrito por obra do colonizador e, por uma variedade de
conveniências, apresenta-nos um povo dócil, facilmente domesticável e capaz de
aceitar pacificamente uma cultura e um modus vivendi integralmente centrado
em valores totalmente desconhecidos, ou pelo menos destituídos de valores dos
comuns aos que aqui viviam. Nesse texto-documento nada se sabe realmente dos
povos autóctones, tampouco se nota o impacto que foi a invasão europeia, razão
porque, essas questões, mais de cinco séculos depois, resultam compreendidas por
um ponto de vista não totalmente nosso; este país não foi somente herdade
portuguesa, tampouco concluímos o nosso processo de independência e,
internamente, muito falta para a destituição total das marcas desse passado tão
profundamente enraizado nas relações sociais.
Bacurau
reconstrói esse mito de fundação do Brasil sem persistir na versão que curiosamente
nos leva a aceitar como possível (e natural) a violência que nos impõem e a repudiar
a violência capaz de nos salvar. Quer dizer, este é um filme acerca dos nossos
colonialismos vigentes. E, como é sempre possível em se tratando de uma obra de
ficção, a narrativa fílmica encontra uma alternativa interessante: ao mesmo
tempo que nos expõe, vira pelo avesso nossa condição de homem cordial,
estabelece uma saída lúcida para nossa indignação tão facilmente manipulável, à
querência dos poderes dominantes, para o lado impróprio. Sobre isso, basta
olhar um pouco ao nosso redor, para o nosso fatal destino ao longo de séculos
de expropriação dos chamados donos da História sobre a gente iludida pelo dogma
da resistência, o termo que volta atualmente, das reverberações de luta, mas
que agora continua de alguma maneira a responder pelas mesmas forças da gente
pacífica.
E, porque o
termo apareceu na discussão, vale sublinhar o que muito se tem repetido: que o
filme de Mendonça Filho e Juliano Dornelles é sobre a resistência de um povo. Mas
não é. Pelo menos, não no sentido utilizado por esse tempo, quando resistir se deixa
impregnar de uma intransigência cômoda. A alternativa encontrada pela narrativa
fílmica pressupõe uma atitude nascida da indignação que culmina na revalidação
dos sentidos sobre coletividade – duas possibilidades aparentemente negadas no pressuposto
de resistir; duas possibilidades que, na era das virtualidades, parece só se
conseguir pela interferência de uma manipulação alheia, de sistemática psicológica,
por e nesse território que é também nosso social, mas ainda muito nos escapa,
sobretudo, porque é uma zona difusa incapaz de nos expor frente a frente.
Também se
tem classificado Bacurau como uma distopia, o que não é de um todo verdade,
uma vez que tudo no filme conflui para uma saída utópica (a sociedade aí exposta
tem uma consciência que se distingue da alienação que nos governa). O centro da
narrativa é uma comunidade que, depois de um incidente político-eleitoral para
com o candidato à reeleição na prefeitura, se descobre à mercê de uma violência
repentina que pouco a pouco desaparece com seu povo – do mapa, da existência e
da vida. Mas, pela perspicácia do seu povo, Bacurau sobrevive ao fatídico destino
a que está condenada; depois de descobrir a natureza do mal, reencontra à sua
maneira, desfazendo-se do mito do bom selvagem, certo reino de paz, com seus
próprios e naturais conflitos, instante que parecia ser o de antes de se
instaurar o imbróglio narrativo. Foge-se, assim, da impossibilidade de retorno
à ordem coletiva como é frequente nas distopias.
O que não se
pode negar é o lugar paradigmático e alcançado por este filme. Paradigmático
pela destreza dialética em combinar o local e o universal numa mesma ordem. Quer
dizer, a violência e suas relações com o abandono do Estado é, nos moldes como é
apresentada, uma especificidade brasileira, mas numa maior amplitude encontra
ecos na formação desse mesma condição em qualquer sociedade; as nossas questões
coloniais, para recorrer ao tropo narrativo que colocamos em destaque,
também é muito nossa, mas não deixam de servir à leitura sobre outros processos
coloniais tão ou mais violentos que o brasileiro; e, se ainda for necessário
mais um exemplo, a alternativa encontrada pela gente de Bacurau contra o regime
de sequestro que lhe é imposto é uma possibilidade para qualquer sociedade marcada
por essa condição: a história guarda provas diversas sobre isso.
Longe das
associações mais imediatas que se costuma fazer com uma obra cuja história
reaviva nossos dramas mais visíveis, vale chamar a atenção para alguns pontos e
mesmo instantes da narrativa que visam justificar a leitura aqui proposta: Bacurau
como uma revisitação dos nossos colonialismos. É notório que essa comunidade fictícia,
pelo avesso, situa o Brasil sempre apresentado como o civilizado, pungente e
moderno; também o coloca diante de um Brasil profundo, este que só nas últimas
décadas pôde auspiciar uma saída da aniquilação e do esquecimento. Isto é, tudo
aquilo que ousamos negar do país se mostra através dessa de Bacurau.
Assim, sua
posição de lugar fora do mapa, oferece-nos uma variedade de leituras: não é
apenas efeito do sequestro de um grupo de caça estadunidense que anseia transformar
essa comunidade numa savana africana substituindo animais por pessoas; é, ora uma
alternativa narrativa brilhante de universalização da situação da narrada, deslocando
o espaço para o plano do provável mas não do verificável; ora uma revisitação à
noção de selvagem, que é o coração inestimável do Brasil, o outro que ousamos
negar pelas forças diversas de repressão; ora uma revisitação das substituições
de memória praticadas num país que se vangloria de sua própria ignorância sobre
o passado.
Há duas
cenas, das várias marcantes, dispostas logo à abertura do filme: a imagem de
uma escola em ruínas, perene na imagem de um ônibus escolar quebrado à entrada
do vilarejo; e o sepultamento da última matriarca de Bacurau. Essa primeira
morte, a única natural dentre as várias ao longo da narrativa, assinala o fim
definitivo de uma era para a entrada em outra e se mostra como a integração entre
o Brasil profundo o Brasil comum. Mas, essa integração é apenas aparente, pelos
novos comportamentos e pelas possibilidades de participar do contínuo dia da
vida virtual, como tão bem reparou o romance Outros cantos, de Maria Valéria
Rezende. Mas, a cisão entre esses dois países guarda raízes mais profundas que
recuperam as mesmas matrizes do Brasil colônia: o bom selvagem, o incivilizado,
o bárbaro, o lugar fora do mapa, o fim do mundo; e o lugar útil apenas para apropriação
e expropriação.
Vale citar
duas outras cenas, a segunda delas, um dos pontos valiosos do filme: quando
chega a Bacurau os dois forasteiros cariocas à serviço do grupo de caça estadunidense
desfiam uma série de perguntas a uma vendedora numa bodega, perguntam por
produtos facilmente encontrados em grandes supermercados e, para surpresa, têm
tudo ao seu alcance; mais tarde, essas mesmas personagens, depois de descumprirem
o acordado com o grupo e quererem encontrar uma alternativa amigável (o
jeitinho brasileiro) zombam do vilarejo e do seu povo e justificam-se melhores
que eles por serem brancos tais como os estadunidenses ou os europeus. Essa
segunda cena aponta algumas direções – todas elas filiadas às heranças coloniais:
nossa incapacidade de reconhecimento enquanto raça; o discurso que sempre se
quis negar no Brasil, mas desde sempre vigente, de uma supremacia de raça; as
cisões internas cada vez mais destacáveis quando se presenciou uma integração
de Brasis; e a postura clara de um país que não apenas ignora suas próprias
raízes, visto que, está na diversidade de raças e no Nordeste nossas origens. O
desfecho da cena também oferece leituras: é impossível propor uma alternativa
de nação se não se coibir os discursos supremacistas.
E, essa
leitura não ficaria completa sem uma visita, ainda que en passant, à
palavra-título do filme e sua relação com a narrativa. Na primeira cena mencionada
acima, o casal carioca pergunta sobre significado do nome da comunidade. A vendedora
responde que bacurau é um pássaro de hábitos noturnos. Parecerá inusual a ligação
entre o animal e a narrativa – esta parece dialogar mais abertamente com outra
ave, o carcará, uma espécie de rapina, imponente e que se alimenta de animais
vivos ou mortos. Isto é, estaríamos mais próximos do banquete antropofágico celebrado
em Bacurau. Mas, a natureza do carcará difere da natureza do bacurau:
enquanto este é um preparador especializado, aquele se caracteriza como um
generalista e oportunista, qualidades, nota-se, que não condizem semanticamente
com os sentidos propostos pelo filme. No imaginário popular, bacurau é ave
sinistra, preenche um sentido premonitório; ainda, é conhecido popularmente
como Dorminhoco no sul ou Carimbamba no nordeste do Brasil. As evidências estão,
assim, explícitas: um povo que acorda para a luta de seu próprio quinhão. Impossível
não deixar de reparar ainda nesses versos de “Amanhã eu vou”, composição de
Beduíno e Luiz Gonzaga: “Era uma certa vez / Um lago mal-assombrado / À noite
sempre se ouvia a carimbamba / Cantando assim: // Amanhã eu vou, amanhã
eu vou / Amanhã eu vou, amanhã eu vou”. A música dispensa o sentido político
que domina a narrativa fílmica, mas esses versos introdutórios não deixam de lhe
acrescentar sentidos sobre luta e revolução.
É impossível
uma alternativa de nação sem uma libertação dos nossos colonialismos – é a
constatação final de Bacurau. Este é um filme que nos coloca ante o pior
de nós, aquilo que fingimos ou nos recusamos ver e a saída que propõe é
transformar nossa indignação em revolta. Aqui, a produção revisita pontos essenciais
de nossa história marcados pela tentativa de refundação do Brasil, mas todos soterrados
pelos poderes cujas raízes retomam o lugar dos colonizadores. A insurgência de
Bacurau contra a grande cruzada da civilização é um convite: quando o Brasil
deixará de se omitir de sua história, encontrará o eixo que une seu povo e despertará
como nação mais autêntica porque brasileira e não europeia ou estadunidense? A
insurgência de Bacurau recupera o sangue e a memória de todos os que lutaram por
este país – que não foram, é preciso dizer, nenhum dos que passaram pela
cadeira de mando da nação sempre com as mãos sujas de sangue ou os pés
afundados na lama do conivente. A insurgência de Bacurau é uma denúncia sobre a
barbárie da civilização, esta que julga selvagem, imoral e violento tudo que
não respeita seu status quo que é, contraditoriamente, igualmente
selvagem, imoral e violento. Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
recuperam o banquete antropofágico, que é a metáfora mais significativa e fundamental
para o Brasil, sempre, e nos laçam uma centelha. Quiçá tivéssemos alguma
maturidade.
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