Xeque-mate, de Maria Azenha
Por Pedro
Fernandes
Xeque-mate é
uma derivação do termo de origem persa شاه مات (šah mât) e quer dizer “o rei está morto”; a expressão
é usada no enxadrismo para designar o lance em que o rei é atacado por uma ou
mais peças adversárias e cujo resultado é o encerramento da partida. Para dar
mate, o jogador se utiliza de um conjunto mínimo de peças: rei e dama contra rei;
rei e torre contra rei; rei e dois bispos contra rei; ou rei, bisco e cavalo
contra rei. Isto é, trata-se de uma jogada-limite realizada com as peças mais significativas
do tabuleiro. Xeque-mate foi tornada palavra-chave por Maria Azenha para nomear
o conjunto de poemas reunidos pela Editora Urutau; o livro publicado no Brasil
em 2018 é o segundo título da poeta portuguesa que chegou a este lado do
Atlântico – o primeiro que saiu pela mesma casa editorial em 2016 chamava-se A
casa de ler no escuro.
O deslocamento
da expressão se integra aos planos recorrentes da poesia contemporânea de
propiciar, pela reorganização de sentidos, alguma oxigenação à língua. Desde quando
a linguagem se tornou mais afetada pela dimensão pragmática – seja pela sua
transformação em objeto de dissimulação da realidade, seja pela contínua
repetição dos usos atestando um enfraquecimento dos sentidos, seja ainda uma
consciência de dominação de uns sobre outros readequando o mundo e as situações
em favor das forças mais abastadas, talvez a dimensão mais cruel e danosa no
longo processo de disputa de poderes entre uns e outros –, que a tarefa da
literatura e, em exclusivo, da poesia, por sua condição poiesis, se
tornou em renovação de outras formas de habitar o mundo pela linguagem.
Assim é que,
Xeque-mate reanima as forças de sua originalidade e ao mesmo tempo
amplia seus limites semânticos. O primeiro procedimento se justifica pela
posição assumida por Maria Azenha ante a palavra e o mundo criado por ela:
neste livro encontramos a poeta no embate com sua própria estadia enquanto sujeito
de uma tribo e entidade de visão num orbe de cegos. O rei está morto. Mas, qual
rei – Deus, o homem, o poeta? Bem sabemos que este último jamais teve vocação
para rei: é um ente jogado à margem do mundo desde quando um certo grego disse
que a presença do poeta significaria uma ameaça à ordem; restam, nesse
tabuleiro, duas peças. E se encontrarmos com a verdade de que a primeira é apenas
uma criação da segunda pela própria impossibilidade de ser a primeira, conseguiremos
nosso próprio xeque-mate: o homem está morto. Obviamente que não nos referimos a
uma figura individual ou um tipo. Homem designa aqui um modelo de humanidade e
certamente este que foi engendrado pelas forças do Iluminismo.
O tempo de Xeque-mate,
como se prenuncia em A casa de ler no escuro é o pós-humano. Aqui, a
razão foi elevada a enésima potência e, por isso mesmo, terá afetado nossos
sentidos ao ponto-limite de reexperimentarmos o seu avesso: a barbárie. Carlos Drummond
de Andrade designou no seu imprescindível A rosa do povo que o seu tempo
era ainda de fezes, de ferozes padeiros e leiteiros do mal. Atravessamos,
talvez ainda à beira do precipício, novamente ou de maneira nova, esse tempo. A
uns impressiona como toda aquela aurora avistada no nascer desse milênio já foi
tornada em tão pouco tempo em crepúsculo. A noite tarda e é possível que nunca
chegue. É que todo retorno é realizado de uma maneira que já não é o mesmo mas
um outro; o universo feroz onde achamo-nos uns contra os outros não é feito de
escuridão, mas do excesso de luz. Toda banalidade é agora justificada pela exceção
tornada norma ou jurisprudência para a ordem. E quase não mais distinguimos
padeiros e leiteiros. Encontram-nos encalacrados com nossa própria sombra. Com Maria
Azenha podemos designar esse tempo pós-tudo, como a terceira manhã; esse termo
intitula o dístico que abre sua antologia. É aqui que encontramos a primeira expansão
semântica para xeque-mate: um designativo para o tempo em que vivemos.
O poema de
abertura do livro de Maria Azenha finda com um: “Digo-te como a uma criança, vem.”
O convite é de uma voz comparada a de um infante reabilita a ideia segundo a
qual nele e no louco repousam a lucidez do mundo. Essa voz acompanha o leitor
por um extenso e complexo tabuleiro, isto é, nos oferece quase sempre em tom de
revolta uma leitura sobre a terceira manhã. O tempo de xeque-mate é da balbúrdia,
por isso a voz que nele se presta como possibilidade de romper com o excesso é
do barulho, tal como se expressa no poema que dá título à antologia: “Quero fazer
barulho com as palavras! / A vida deste lado é uma ação à distância. / Atenção!
Homens e mulheres! / Não vejo senão objetos com os pés enterrados no chão. /
Quero fazer barulho com tudo o que estiver ao meu alcance. / Esqueçam que estou
aqui com a boca cheia de larvas.” É a condição do poeta o que aqui se expressa.
No universo
de Xeque-mate, o poeta constitui um mundo próprio, entrevisto pelo poema
como feito do resto de tudo; é ele um ente morto, uma voz desagregada tornada
incapaz da simples aventura pelo interior da palavra. Numa terra de cegos ter
olhos não significa ser rei – ainda mais se o que tem olhos é o poeta, o operário
da palavra. No tempo do avesso de tudo, mesmo a palavra foi apagada da sua dimensão
mágica e significativa: “Naveguei vários séculos, criando planos. / Os meus alunos
faziam versos comigo. / Inventámos a assinatura do trovão e a tabuada das nuvens”,
diz; e acrescenta: “Tudo o que tínhamos pela frente vive agora em plena escuridão.”
Nesse tempo pós-tudo, resta ao poeta gritar, barulhar, e dizer as coisas como
elas são, parafraseando aqui um dos versos de conclusão do poema “Xeque-mate”.
Maria Azenha
restabelece aqui uma dupla dimensão da linguagem na poesia. Se o poema pode ser
tomado como objeto autônomo no interior do universo das coisas não é a força que
o anima regida apenas por uma força autotélica. Essa observação construída a partir
da obra ora lida e prenunciada na anterior – referimo-nos, claro está, aos
livros publicados no Brasil – afirma-se como uma resposta da própria poeta contra
certo ceticismo que um leitor desavisado poderá encontrar noutros exercícios de
sua poética, sobretudo aqueles que flertam muito perto com os modelos de
vanguarda nunca abandonados pela poeta de Coimbra. Xeque-mate, por exemplo
está sempre marcado por poemas assim: seja pela proposital contaminação dos usos
corriqueiros da linguagem, sejam as interferências dos estrangeirismos e dos códigos
linguísticos frequentados pelos usuários das linguagens eletrônicas, seja ainda
o apagamento da ordem comum pela descontinuidade da própria língua como se mostra
o poema-limite “Bumerangue”:
Z Y X
W V U
T S R O
P N M W
L K I J H
G F E
D
C V
Z Y X A
Quando
qualquer expressão pode ser decodificada numa consulta ao oráculo de nosso
tempo, o Google, cada um do conjunto de letras que formam as linhas do poema
encontra sentido, em grande parte, múltiplos. E a pluralidade de respostas possíveis
para o enigma findam por oferecer, outra vez, uma leitura desse tempo como um
complexo de aleatoriedades, o que, observada a composição apenas por uma combinação
de letras em maiúsculas somos conduzidos ao princípio de reintegração entre o significante
e o significado tornado em imagem, uma vez que o texto prefigura um conjunto de
forças aerodinâmicas formado pelo objeto designado no título. E afinal reitera a
própria não-forma do objeto designado no título do poema. Quer dizer, mesmo nessa
situação-limite os sentidos que formam o texto poético participam da relação
entre a palavra e o mundo.
Revelador,
nesse sentido é o poema “Repórter local” que sintetiza o trabalho do poeta no tempo
da não-linguagem como “um trabalho moderno de Hércules / através de um específico
repórter local / que se chama Poeta”. O esforço hercúleo do poeta se oferece então
pelo árduo trabalho de reavivar a própria existência e seus sentidos, oferecendo-nos
para os de fora do mundo do poema “bilhetes ao acaso” “com o aviso ‘perigo de
morte’.” A poesia, como toda arte, é
objeto de dimensão variada: bálsamo de nossas dores, granada de nossas
revoltas. Assim poderíamos definir Xeque-mate. O movimento extremo de
jogo de xadrez em que o tabuleiro não difere em nada de nossa vida e as jogadas
os dilemas que dizem dela. Com esses dilemas a poeta compõe uma obra que situa
no limiar. A voz que dá vida a estes poemas tem o fôlego de um grito contra o
pior de nós: é a voz não-alheada a esse tempo de limites, de vícios, de desumanização
desbragada. Uma voz, aliás, que renova um dos valores difíceis de localizar nas
poéticas contemporâneas quase sempre mais fechadas sobre e alheias de uma
condição ética da qual a literatura, como objeto de intervenção nas ideologias
de domínio, não pode jamais se apartar. É que num mundo composto por dois tipos
de circo, o do poeta é o “outro / com / palhaços // a / sério”.
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