Um homem fiel, de Louis Garrel
Por Pedro
Fernandes
“Todas as
famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira.” A
frase de Liev Tolstói em Anna Kariênina bem poderia servir de epígrafe
ao filme de Louis Garrel. Se não é a família o tema principal de Um homem
fiel, esta não deixa de se constituir em parte importante da narrativa. E o
imbróglio amoroso, tal como no romance russo, não deixa de incluir segredos,
desencontros e morte. Porque a história é outra, os contextos também, a peça de
Garrel lida com a volatilidade das relações num universo de pesada atmosfera em
suspense, uma vez que as razões possíveis e não esclarecidas da morte rondam toda
a tessitura da trama.
Logo à
entrada da narrativa fílmica o espectador é confrontado com uma dupla
revelação: Marianne, figura que recupera algumas características das
personagens românticas pelo tom ambivalente entre a candura e a malícia,
anuncia a Abel que está grávida e o filho não é dele e sim do amigo em comum, Paul.
O envolvimento da personagem que divide a cena como protagonista dessa
narrativa desenvolveu-se à surdina e alcança nessa cena de limite trágico: Abel
precisa aceitar as duas situações com uma terceira: a decisão da namorada em
deixá-lo para ir viver e com o amante.
Ao longo da
narrativa é possível estabelecer algumas possibilidades para esse
instante-limite, isto é, a escolha de Marianne por ir dividir sua vida com
Paul. É que Abel, apesar de bom homem e sedutor, preenche o papel dos tipos de
pouca iniciativa, presos à sua própria rotina, ao seu trabalho como jornalista,
sem se interessar por quaisquer perspectivas de futuro. Apesar de encontrarmos
com a presença de Paul, essa conjetura não deixa de ser possível pelas
observações dessas características da personagem. Se não isso, ainda é possível
ir à simbologia impressa no nome dessa personagem, que numa evocação do mito
bíblico é aquele de tons e expressões cordeiras.
A situação não
finda aqui. Quase dez anos depois, os dois, Abel e Marianne, têm a
possibilidade de apostar outra vez no enlace amoroso devido a morte repentina
de Paul. Nessa altura, passa a figurar na narrativa, o possível filho do casal
desfeito pelo tiro do destino e aqui se instaura a ordem das suspeitas: sagaz,
isolado e extremamente criativo, o menino tece considerações suspeitas em torno
da morte do suposto pai. O que se observa em diante é uma complexa trama que
ao invés de responder às suspeitas que se armam prefere deixá-las todas integralmente
presas à ordem da suspeita ou à resolução indireta.
O motivo
principal para a variedade de fios soltos parece se resumir exclusivamente a um
ponto específico: Louis Garrel está interessado em contar sobre a volubilidade
do amor e expor a teia de poderes envolvidos nas relações alimentadas por essa
força. Nesse ínterim não deixa de zelar pelo princípio segundo o qual todas as
famílias guardam seus segredos e esses, pela sua própria natureza, são
impenetráveis. O valor disso é ainda outro: o que dá fôlego às existências é a
não-resolubilidade das situações.
Uma
variedade de clichês que costumeiramente envolvem as histórias de amor desde
sempre é propositalmente subvertida pelo cineasta francês. Se aqui se preserva
pelas vias tortas um ideal de fidelidade igualmente preso aos limites da
obsessão – Abel nunca deixa de amar a Marianne – se desfaz a ideia da mulher fixamente
submissa a essa ordem. Embora essa personagem masculina não se desfaça das
tonalidades de natureza machista, uma vez que seu comodismo inspira não a condição de à espera do tempo e sim do que carrega a certeza de ser o centro dos amores por atraídos, esforça-se por fugir desse estereótipo,
afinal, Abel encarna muito mais uma espécie de protótipo à mercê dos humores
femininos. A certa altura, por exemplo, Marianne, assegura o lugar de Abel na vida
de Ève, a irmã mais nova de Paul, quem guarda toda sorte de interesse nele. Incentivado
pela companheira, Abel atende aos desejos, agora, das duas mulheres.
Pelas
pequenas entradas nesses movimentos de idas e vindas amorosas, o espectador é enredado,
vê-se, por uma teia que é cíclica, a da ascensão e desfazimento do amor. Tal
compreensão se não responde pela força desse sentimento e suas pulsões, porque
sua natureza é inapreensível, oferece-nos uma leitura extremamente consistente
sobre a volubilidade do amoroso. Este não é uma condição de felicidade dos
amantes que vivem tudo com certo desinteresse e pura resposta às pulsões do
corpo, outra das desconstruções operacionalizadas por Garrel.
A presença
da morte assoma ainda outra constatação: que o amor, no seu sentido de fidelidade, impresso no título do filme, só é possível na ausência; que a ausência é
assim o nó do novelo que é a própria trama dessa narrativa. Assim, é
significativa a cena final, quando as personagens que se acreditam enredadas
pelo mesmo homem, Abel, são levadas indiretamente pela mão do filho de Marianne
ao túmulo de Paul.
A beleza de Um
homem fiel está na variedade de questões suscitadas pelas situações
construídas pela narrativa. A atmosfera da nouvelle vague é um charme a
mais e oferece ao espectador, pela maneira como se distancia dos entornos para
se centrar apenas na questão crucial da narrativa, uma história que se pretende
uma parábola sobre o amor. A brevidade da história requer outro movimento, o de
aprofundamento nas situações e sua variedade, como se estivéssemos diante de um
conto revestido de caminhos variados que confluem para uma moral: o amor é a
força capaz de colocar todos em profunda relação, mas não combina com eternidade,
tampouco com a fidelidade que a cultura romântica quis impor. Aí reside a toada
da infelicidade das famílias, como prenunciava Liev Tolstói, cada uma à sua maneira.
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