Trechos de conversa com Conceição Evaristo
Por Rafa Ireno
Em Abril,
Conceição Evaristo esteve na França para o lançamento de Poèmes de la mémoire
et autres mouvements. Na ocasião, dia 3 de abril, ela deu uma palestra na
Maison de la Poésie, no centro de Paris. A sala estava cheia, pessoas de
diversas gerações e lugares vieram ouvi-la, inclusive, um grupo de estudantes
com a professora do ensino médio, que incluiu em suas aulas de português os
livros de Conceição. Foi uma conversa muito boa! No dia seguinte, durante a
manhã, tive a oportunidade de entrevistá-la. Isso, repito, foi em Abril. Ao fim
de nosso encontro, minha intenção era veicular a entrevista na semana seguinte.
Entretanto, fui chamado por uma mensagem de WhatsApp do meu primo, voltei para
o Brasil. Ainda lembro de ver minha vó sozinha no portão, a frase de Rubem
Braga, que eu analisava naquela época, ecoou: havia morte lá em casa. Então,
parei por um tempo. Na volta, a urgência de outros textos se precipitou e
somente hoje pude escutar este encontro de três meses atrás. O que, vocês podem
imaginar, não é ideal. Não tenho mais os detalhes da conversa na cabeça,
vagamente vejo a sala do apartamento, tinha alguns livros na estante, ela
ofereceu café, eu aceitei, e sentamos para conversar.
Conceição Evaristo. Foto: Rosemay Joubrel |
Uma das
coisas de que eu gostei muito foi a oportunidade de falar de meu processo
criativo, porque, muitas vezes, eu chego em palestras de literatura e as
pessoas falam assim: “fale da condição da mulher negra na sociedade brasileira”
ou “fale sobre racismo no Brasil…” Não precisa eu falar! Isso está no meu
texto, entende? Se esmiuçar os meus textos, nós vamos chegar a isso. Do
processo criativo, da literatura em si, eu tenho muito pouca oportunidade de
falar. E, ontem, eu fiquei muito satisfeita com a conversa por ter a
oportunidade de falar da questão negra, do racismo, a partir do texto. Agora,
sobre o encantamento que eu tenho pela palavra, sem sobra de dúvida, é por
causa dessa origem falante. Na minha casa, a gente fala muito. Minha mãe
falava, apesar também de minha mãe, em determinados momentos, ser uma pessoa
muito silenciosa, muito observadora, pessoa de ficar assuntando a vida. Eu
gosto muito do silêncio, de ficar observando as pessoas, as reações das
pessoas, olhando nos olhos das pessoas para tentar captar e escrever.
*
Há tempos
que uma cena me persegue. Eu trabalhei muitos anos no Morro do São Carlos no
Rio de Janeiro, perto da Praça Onze, fazia parte da pequena África e, tem uns
dez anos, eu vi essa cena: tem um rapaz, bem jovem, que trabalhava para o
tráfico, ele está armado com a metralhadora atravessada no peito, que é uma
coisa comum em determinados locais do Rio. Ele está lá de plantão, em pé
compenetrado no trabalho. De repente, vem uma mulher, também bastante jovem,
com uma criança dos seus três ou quatro anos, andando na direção do rapaz, daí,
tem um momento em que o rapaz abaixa, quer dizer, ele perde a postura de
soldado, a criança vem correndo para abraçá-lo, ele joga a arma para trás, para
ficar mais livre, e abraça o filho. Gente, eu vi aquela cena e ela está até
hoje na minha cabeça. Como escrever aquela cena? Ali, não era um soldado do
tráfico, era um jovem pai abraçando seu filho. Então, como traduzir isso, como
escrever? E como, por exemplo, a minha subjetividade me permite ver essa cena
de uma outra forma, eu vejo ali um jovem pai abraçando o filho. É essa cena que
eu quero escrever! Pode haver uma outra pessoa que vê um menino armado,
irresponsável – como é que vai abraçar o filho com uma arma no pescoço? Pode
perguntar: qual exemplo ele está dando para o menino? Não é o tipo de pai que
pode ter responsabilidade sobre uma criança. Pode pensar que essa criança,
vendo esse pai armado, provavelmente vai ter que exercer o mesmo trabalho. Tem
mil maneiras de captar essa cena para produzir uma escrita, eu produziria essa
– um jovem pai abraçando o filho.
*
Quando eu
faço Ana Davenga, eu já ouvi uma crítica que faço apologia do bandido. Não é
apologia do bandido, entende? É uma outra história. O cara que entra assaltando
no ônibus e que Maria morre por causa dele. Ele não é um bandido… para Maria. É
um homem que ela era apaixonada por ele. Então, essas escolhas de enredo do
texto, como você vai construir essa personagem, o que você quer com essa
personagem, até que ponto a personagem sou eu. E ai, eu acho muito bonito
quando Elza Soares canta “Meu Guri” e ela parece soluçar no final. Se você
escuta “Meu Guri” com Chico, é uma música. Se você escuta “Meu Guri” com a Elza
Soares, é uma outra música! Eu acho que ali a subjetividade de Elza Soares dá
uma interpretação que Chico não dá. Aqui não estou dizendo quem canta melhor ou
coisa e tal. Estou dizendo destas diferenças, que a subjetividade vai marcar.
Coincidência
ou não, digo a Conceição Evaristo, a última peça teatral que vi no Brasil foi Gota
d’água Preta, um texto de Chico Buarque e Paulo Pontes. O espetáculo foi
idealizado e dirigido por Jé Oliveira, justamente, introduzindo corpos negros
no palco, o que deu outra perspectiva, outra problematização para a peça –
construiu-se, uma outra história.
*
Determinadas
experiências que nós passamos, em termos do corpo negro, a gente não tem
palavras para dizer. Eu me lembro muito de Nadine Gordimer, uma escritora
branca da África do Sul; era jornalista, e a família dela sofreu uma série de
sanções e perseguições, porque eles se posicionaram contra o Apartheid, ao lado
dos negros. Foi uma das vozes mais enfáticas contra o Apartheid. No livro,
Gesto Essencial (1988), ela diz, mais ou menos assim, que a primeira coisa que
um branco tem que fazer, se ele quiser realmente se compactuar com a luta
negra, é reconhecer que todo entendimento que ele possa ter do racismo, é um
entendimento mais intelectual. Por exemplo, se ele está com uma pessoa negra,
que é impedida de entrar nalgum lugar, ele vai sentir raiva por causa disso,
vai se emocionar com essa situação, mas há um momento que não vive, que é este
instante exato da dor do corpo negro. Não tem como o corpo dele sofrer essa
mesma experiência de ser interditado. Nadine está discutindo a autoria negra.
Se este corpo leva para o texto essa experiência, traz com ela uma diferença,
que pode até usar a mesma língua, mas a literatura é diferente.
Ela diz
ainda que é preciso também uma honestidade do branco para perceber que há um
momento em que a cumplicidade também não dá conta. Por isso, eu insisto tanto
na questão da subjetividade, que meu texto é atravessado pela subjetividade do
corpo de uma mulher negra.
*
As palavras
não dão conta. De repente, fica um silêncio na gravação, Conceição Evaristo ensina
a importância dos gestos para sua literatura. Ela pega os livros, que estavam
espalhados na mesa, junta os três exemplares nas mãos – são seus próprios
livros traduzidos em Francês – ergue um pouco e ainda segurando os deixa cair
repetidas vezes, usando a gravidade para organizá-los. Enquanto isso, olha para
frente com um olhar desafiador.
Eu gosto
muito e eu sempre fico imaginando algumas cenas que podem ter acontecido.
Lembro muito da história da minha família, trabalhando como empregadas nas
casas de famílias ricas… quantos silêncios essas mulheres negras tiveram que
engolir e quantas coisas elas
responderam pela metade, quantos gestos foram feitos assim rápidos, mas
que demonstravam uma revolta. Este ato comedido é o que lhe permite também
dizer que não está satisfeita. Eu gosto de imaginar essas meias medidas; não é
um gesto completo, mas aquilo ali fala de uma revolta.
Outra coisa
que eu gosto de imaginar muito também: enquanto certa literatura descreve uma
mãe preta passiva, eu gosto de imaginar que essa mulher escravizada dentro de
casa, calada, no silêncio dela, sabia direitinho o dia que o senhor ia para a
cidade e ela de mansinho ia até a senzala e dizia “aproveitem que essa semana o
senhor vai ficar tanto tempo fora e tomem o rumo do quilombo”. Quando eu falo
de novas narrativas, é trazer uma literatura que seja capaz de imaginar isso! E
eu sou capaz de imaginar, porque minha mãe e as mulheres de minha família, anos
e anos, ficaram dentro da casa de patrões, mas, anos e anos também, nos sabíamos
tudo o que acontecia lá dentro. Imagine a arma que essas mulheres têm nas mãos.
Acho que é Lélia Gonzales que dizia mais ou menos isso – que esses trabalhos
subalternizados criaram a oportunidade para as mulheres negras conhecerem muito
mais de perto tanto a fortaleça quanto a fragilidade do branco. Aqui, eu estou
pondo Lélia Gonzales, Luíza Bairros, estou pensando nas experiências da minha
família. Isso deu, talvez, uma perspicácia pra gente conhecer melhor essa
sociedade brasileira.
*
Eu não
tenho a menor sombra de dúvidas que a literatura é uma arma política. Acho que
isso aparece no meu texto quando você pega Becos da Memória (2006), por
exemplo. Nada que está ali é verdade e nada é mentira também; eu falo que são
ficções da memória. Quando a Maria Nova, personagem narradora do texto – e, não
tenho como mentir, meu alter ego desde a infância – diz que sabe qual é a arma que ela vai usar –
é a palavra – ela vai dizer que um dia vai escrever a história de seu povo. A
palavra, ela é uma arma, sim!
*
Logo, em
seguida, parei de gravar. Ainda falamos sobre a necessidade de uma teoria
literária capaz de desenvolver estratégias de análise da literatura
contemporânea afro-brasileira e periférica. Inclusive, a escritora revelou que
tem projetos de, no futuro, publicar seus trabalhos críticos. Ela disse que nós
mesmos devemos criar essas ferramentas teóricas. Eu concordei. Depois, ao ir
embora, recordo ter sentido parte de minhas esperanças renovadas. Apesar do
momento atual do Brasil, Conceição Evaristo existe e escreve frases como esta:
“Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer!” ou poemas
como “Meia Lágrima”, “Todas Manhãs” e “De Mãe”.
O livro Poemas
de Recordação e outros movimentos, lançado no Brasil em 2017, circula agora na França
com a tradução de Rose Mary Osorio e Pierre Grouix. Uma cuidadosa edição
bilíngue, prefaciada por Izabella Borges (a quem agradeço por tornar possível
esta conversa) e com posfácio de Pierre Grouix, pela editora Des
Femmes.
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