Toni Morrison, sua voz continua na / com sua obra
1993 foi um
ano emblemático para a Academia Sueca. Uma mulher negra que escreveu sobre
minorias deixou alguns dos nomes mais quistos pela crítica, como Thomas Pynchon
e Philip Roth, foi a ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura. De Klerk e
Mandela dividiram o Prêmio Nobel da Paz. Isto é, duas figuras fundamentais do
fim do apartheid e uma romancista de excelência da literatura
afro-americana foram reconhecidas pelos lugares mais importantes da história numa única ocasião, como se um acerto de contas vindo tarde demais. O que não é o caso: sabemos um pouco sobre as lutas, sobre a grandiosidade de seus feitos. Se existiu acerto de contas foi com as condições que os modelos sociais ditos em voga têm imposto no longo de nossa história; um embate cruel e totalmente fora do esperado padrão de humanidade. Dos escritores de posição semelhante à de Morrison, James Baldwin e Richard
Wright já haviam morrido e Ralph Ellison, sempre lembrado como o mais
interessante dos quatro, publicara apenas um romance. A escritora, seis; mas, já era
uma das figuras públicas mais notáveis e relevantes nos Estados Unidos.
Toni Morrison,
como sublinha Winston Manrique Sabogal em texto sobre a escritora no jornal El
País, “colocou os estadunidenses brancos e negros em frente ao espelho da
verdade sobre a qual o país havia se erguido: raça, escravidão e a memória que
em sua narrativa confluem como uma só luta insone em busca da identidade e da
integração da cultura afro-americana.” Seu primeiro romance The Bluest Eye
[traduzido no Brasil como O olho mais azul], publicado em 1970, não
provocou grande entusiasmo entre a crítica, mas os livros seguintes foram um crescendo
contrário a essa condição de estreante. Em 1981, quando havia publicado Sula
(1974) e Song of Solomon (1977) [Canção de Solomon] e Tar Baby, o
jornalista do The New Republic Thomas LeClair disse que o povo
estadunidense finalmente havia encontrado nela “sua nova voz” – a de uma avó
contadora de histórias. A Academia Sueca, mais tarde, parece ter feito eco a
essa observação, uma vez que lhe concedeu o galardão por “sua arte narrativa
impregnada de força visionária e poesia, ela oferece uma pintura viva de um
aspecto essencial da realidade americana”.
Em 1987,
publicou Beloved [Amada], seu romance mais importante – assim é sempre
apresentado. Sabe-se que uma série de situações ajudaram essa condição: a obra então não recebeu nenhum dos prêmios nacionais mais importantes no seu país, o
National Book Award e o Critics Circle, o que levou o Times a publicar
uma carta assinada por cinquenta escritores que se queixavam da falta de
reconhecimento da escritora preterida do momento. Parece que dessa atitude
surtiu algum efeito: meses mais tarde, recebeu o Prêmio Pulitzer.
Segundo
Valeria Luiselli em texto na revista Letras Libres, “com algumas poucas
exceções, os romances de Toni Morrison são uma variação do mesmo tema: a
escravidão, a relação com os antepassados, do poder entre homens e mulheres,
mulheres e mulheres, a maternidade, a feminilidade, a opressão das mulheres”. E
acrescenta que “as personagens pertencem quase sempre à comunidade
afro-americana, ou são marginais ou párias brancos de algum tipo”. Mas, “ler
Morrison exclusivamente pela chave da literatura de minorias seria o mesmo –
guardadas as devidas proporções – que pensar a obra inteira de [Gabriel] García Márquez
como mera alegoria nacional do Terceiro Mundo. Do mesmo modo, criticar Morrison
pela eleição de seus temas principais seria como desacreditar Faulkner por
retratar o sul dos Estados Unidos ou a Coetzee ou Gordimer por escrever sobre a
África do Sul. O ponto não é a eleição do tema mas a maestria com a qual um
escritor consegue converter qualquer tema num tecido literário interessante.”
Assim,
pode-se dizer que Toni Morrison passou para a história da literatura não apenas
por ser a primeira mulher negra a receber o Prêmio Nobel, mas como uma
escritora que não utilizava de atalhos para dizer sobre o poder destruidor do
racismo, do machismo e dos ódios gratuitos, que, se no contexto da sua obra
respondem pelo seu país, não deixam de, fora daí, dizer sobre nossa condição. E
essa condição universal atende pelo nome de afro-americano. Numa entrevista
publicada em 1993 na The Paris Review, ela diz que quer escrever como
Ella Fitzgerald ou Nina Simone cantam: vozes distintas, mas, antes de tudo,
inconfundivelmente afro-americanas. E os seus primeiros romances são de uma
escritora em busca de uma dicção; Morrison busca produzir, nos ritmos e
cadências de sua prosa – diz Valeria Luiselli –, a musicalidade particular da
fala dos afro-americanos. “Morrison é uma escritora que tem perfeita
consciência de seu lugar na enunciação. Isto é, sabe o lugar a partir do qual e
para quem escreve”.
Por essa
mesma razão, e é ela própria quem observa num dos ensaios de Playing in the
Dark, se distanciou explicitamente de Wright, Baldwin e Ellison: eles, diz,
escreviam pensando num público leitor branco. Ela se afirma, sem titubeios, que
a voz de seus romances é de uma mulher e negra e escreve ficção
para a aldeia, a tribo – Harlem ou uma comunidade negra em Ohio ou Kentucky.
Conseguiu isso desde seu primeiro romance a até The Origin of Others [A
origem dos outros, tradução livre] – uma compilação de conferências editada em
2016 e seu último livro em vida.
A determinação da voz e do público justifica, assim, a reiteração
temática, que, nos dizeres de Sabogal, diz “sobre a raça e a tendência do ser
humano à criação do outro, a identidade própria e inevitável que os outros
criam sobre cada indivíduo.” Já em O olho mais azul, sublinha o crítico,
“se encontra todo o futuro de sua obra criativa e intelectual ao contar a
história de uma menina negra que quer ter os olhos azuis devido à força dos
estereótipos redutores de seu entorno e a exclusão da sociedade.” O
interessante é que mesmo essa geografia pré-determinada não terá confirmado em
empecilhos para a expansão de sua obra. A autora está entre os poucos
escritores que tiveram o privilégio da admiração do público e da crítica.
Além dos
romances citados até aqui, Toni Morrison escreveu Jazz (1992) e Paraíso
(1997), que forma com Amada uma trilogia e são romances que apagaram
todas as dúvidas sobre a maestria da sua escrita e literatura; uma década mais tarde reapareceu escalando
degraus mais criativos em obras como Amor (2003), A Mercy (2008),
Voltar para casa (2012) e Deus ajude essa criança (2015). Onze
romances ao todo, um par de livros infantis e quatro de ensaios.
“Quero
descobrir uma verdade sobre a vida cotidiana dos Estados Unidos, a vida dos
afro-americanos vivendo num contexto histórico crítico que se tem silenciado”,
afirmou a escritora numa entrevista ao jornal El País em 2013. E
acrescentou: “As nações gostam das histórias sobre a pátria porque oferece
segurança às pessoas. A realidade é uma triste verdade onde temos muito que
ocultar e temos vergonha. E meus livros busco fazer isso a partir do lado do
colonizado. O que faço é renovar os curativos para que se veja a cicatriz da
sociedade, a realidade. Não preciso ter medo de olhar o passado porque só assim
se sabe quem somos”.
Ana Llurba,
num texto para a revista Letras Libres diz que a imagem de Toni Morrison
foi repetida até ao cansaço: caminhando com Angela Davis pelas ruas de Nova
York nos anos setenta como se fosse duas Black Panthers; celebrada por Oprah
Winfrey nos anos noventa; ovacionada pelo presidente Barack Obama nos anos
dois-mil; citada por Beyoncé na abertura de seu documentário recente – Homecoming.
“Mas, como a clássica releitura do mito grego proposta por Hèlène Cixous em O
sorriso de medusa, a repetição até ao cansaço de sua efígie pode provocar
um efeito diferente a quem se anime em ler sua obra. Igual à interpretação
feita sobre a temível Medusa pela filósofa argelina, Morrison não converte em
pedra tudo o que toca mas o dissolve pelos ares com a força alquímica de seu
longo riso, uma careta amarga, uma cicatriz de ferida aberta. Se em seus onze
romances plasmou com fidelidade não-documental, mas sim literária a luta pelos
direitos civis e a árdua luta dos afro-americanos por um lugar para sua
história de sofrimento e exploração com um sorriso amargo, essa ferida aberta
que é a história do país mais poderoso do mundo, não podemos resumir o poder de
sua narrativa na ideologia de sua escritora. Há algo mais que salta em sua
literatura. Uma fúria implícita, um excedente indomável que, tal como nessa
constelação de autores afro-americanos como Maya Angelou, Zora Neale Hurston,
Alice Walker ou James Baldwin, mexe em nossa aspiração a algum tipo de
reconciliação racional e nos mantém nesse lugar incomodo e desassossegante que
só os bons escritores nos levam e nos abandonam para que possamos
compreendermos suas implicações sozinhos.”
Não é
repetir-se muito que Toni Morrison nos deixou um rico legado – literário e com
sua história vida. Na adolescência trabalhou como doméstica e viveu uma
infância pobre. Filha de um trabalhador braçal e uma dona de casa, nasceu em
Lorain (Ohio) a 18 de fevereiro de 1931 e foi batizada como Chloe Ardelia
Wofford. Eram quatro irmãos. E desde cedo lhe encantava ouvir as histórias
contadas por sua avó; narrativas envolvidas por superstições, lembranças sobre
seus antepassados, as aventuras que haviam levado eles aos Estados Unidos. Como
pano de fundo dessas histórias estavam o drama de ser negro num país que até o
presente não conseguiu resolver a crise racial, a econômica dos anos trinta e
as primeiras circunstâncias da Segunda Guerra Mundial.
Foi na Universidade
de Howard de Washington onde passou a se chamar Toni. O nome apareceu de uma
forma derivada de seu segundo batismo na Igreja Católica aos 12 anos: Chloe
Anthony. Em 1953, concluiu sua graduação em Filologia Inglesa e em 1958 se casou
com o arquiteto jamaicano Harold Morrison. O casamento durou até 1964 e ela
ficou com seus dois filhos em Siracusa. Já nesse tempo começou a trabalhar para
a editora Random House, a partir de onde iniciou um trabalho de visibilidade
das literaturas escritas por negros no seu país. No final dos anos sessenta se
mudou para Nova York como editora pelo mesmo selo.
Seu grande
ano foi 1970 quando viu publicado seu primeiro romance no qual havia trabalhado
desde o final dos anos cinquenta. “E a partir daí começou a contar a vida de
sua raça e de seu país inevitavelmente entrelaçada numa viagem eterna pelas
suas raízes; para isso, evocou a voz de sua avó, tanto nas histórias e suas
preocupações como em sua dicção. Uma literatura de prosa limpa e precisa com
uma grande vivacidade oral”, observa Sabogal. Por tamanha autenticidade, o
universo criativo de Morrison não se esgota na sua morte, neste 5 de agosto de
2019; a falta deixada por sua voz continua na / com sua obra.
Ligações a esta post:
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