Joseph Conrad no coração das trevas (Parte 1)
Por
Rafael Narbona
Joseph Conrad na icônica ilustração de Ralph Barton, 1923. |
Coração
das trevas apareceu em 1902. Uma estadia de seis meses no Congo dizimado na
época pela ganância de Leopoldo II da Bélgica inspirou Joseph Conrad, um
oficial da marinha mercante britânica, a escrever um pequeno romance que inclui
uma versão sombria sobre a natureza humana e uma reflexão sobre o mal a partir
de uma perspectiva metafisica e simbólica. Coração das trevas não é um
romance histórico e sim uma poderosa metáfora que transcende as épocas
revelando as limitações da linguagem e da inteligência humana para expressar a
complexidade do mal. O ódio ao outro, ao marginalizado, ao diferente, nasce de
um impulso sombrio que Freud considerava um elemento essencial de nossa vida psíquica.
Não surpreende
que Francis Ford Coppola tenha se inspirado no trabalho de Conrad para recriar
a crueldade da guerra em Apocalypse Now (1979), mostrando que a violência
homicida obedece a certos lugares da política e da história, mas, em último termo
brota de um impulso irracional, atávico, primitivo, que revela não apenas nosso
parentesco com supostos deuses, mas com o mundo animal. O mal transborda da
razão e só pode ser expresso numa palavra: “horror”. É o incompreensível, o inexprimível
e talvez o imperdoável, pois atenta contra o humano, despersonalizando suas vítimas
e negando-lhes o direito de ter um nome e uma identidade.
Anos de
formação
Józef Teodor
Konrad Korzeniowski, de origem polonesa, tornou-se Joseph Conrad após uma
infeliz infância e tumultuada juventude. Embora Berdyczew, sua cidade natal,
agora pertença à Ucrânia, na época, estava sob domínio russo. Apollo, o pai de
Józef, pertencia a uma pequena nobreza rural. Seu patrimônio era escasso e
nunca escondeu seu desdém pelo dinheiro. Polonês nacionalista radical, acreditava
que a independência devia estar ligada a uma profunda transformação social que
contemplasse entre outras conquistas a reforma agrária. Por isso era militante na
ordem Vermelha, oposta à ordem Branca, que pretendia restabelecer o regime feudal.
Poeta,
dramaturgo e tradutor para o polonês de autores como Vigny, Shakespeare, Heine,
Victor Hugo e Dickens, sua beligerância política lhe custaria o exílio e a miséria,
um destino que condenava toda sua família. As penalidades afetaram a saúde de sua
companheira, Evelina Bobrowska, que morre aos 32 anos de tuberculose. Apollo
morreu quatro anos depois e foi enterrado na Cracóvia. Em sua lápide foi
gravado uma emocionada inscrição: “Apollo Nalecz Korzeniowski, vítima da
tirania czarista. Nascido a 21 de fevereiro de 1820. Morto a 23 de maio de
1869. O homem que amou sua pátria, trabalhou e morreu por ela. Seus compatriotas.”
O funeral convocou uma multidão. Trabalhadores, mulheres e crianças saúdam a
passagem do féretro com respeito, humildade e fervor patriótico. Tempos depois,
Conrad escreveria: “Foi uma manifestação do espírito nacional”.
Józef, que
tem só doze anos, fica sob a tutela de seu tio Tadeusz, irmão de sua mãe.
Tadeusz é um rico proprietário de terras que custeará seus estudos e lhe
dedicará sincero afeto. A trágica história de seus pais converte Józef num jovem
conservador que repudia o radicalismo revolucionário e não guarda quaisquer ilusões sobre
a independência da Polônia. Mas isso nunca aplacará sua hostilidade pela Rússia,
que se estende aos seus escritores, com exceção de Turguêniev, e se afasta
esteticamente de romancistas como Tolstói e Dostoiévski para construir uma sensibilidade
de estilo à Flaubert. O escritor francês será um dos mais admirados por Conrad,
até o ponto de alguns críticos destacarem que da sua emulação nasce sua vocação
literária.
Depois de
estudar em Lvov e na Cracóvia, Józef comunica ao seu tio a intenção de seguir
carreira na marinha. No futuro se dirá que sua paixão pela geografia e os
romances de aventuras ambientados em mares distantes atuaram como principal
motivação na escolha, mas há outra razão mais prosaica. Viajar por destinos exóticos
era uma forma de escapar da reclusão forçada no exército russo por um período de
vinte e cinco anos. A Rússia empregava essa medida para com os filhos dos inimigos
políticos a fim de mantê-los sob o controle militar.
Contrariando
o tio, Józef se muda para Marselha e aprende francês frequentando os cafés onde
se reúnem poetas, exilados, boêmios e lobos do mar. Participa de uma expedição
para entregar armas aos carlistas, seduzido por sua condição de causa perdida
e, posteriormente, embarca no Mont Blanc, navio que realiza a rota para a
Martinica. Mais tarde, viaja a bordo do Saint-Antoine, que percorre as costas
da Colômbia e da Venezuela. No retorno, contrai várias dívidas de jogo no
Cassino de Montecarlo e tenta se matar com um tiro no peito. Por sorte, a bala
atravessa o corpo sem afetar qualquer órgão vital. O tio Tadeusz paga a dívida
e lhe escreve: “Você não é um mal rapaz, apenas é extremamente sensível, orgulhoso
e meio irritante”.
Józef volta
a embarcar novamente, desta vez no Mavis, um navio à carvão com destino a
Constantinopla e que finaliza sua rota em Lowestoft, na Inglaterra. Quando pisa
na terra britânica pela primeira vez não sabe nenhuma palavra de inglês. Novas viagens
em barcos mercantes britânicos fizeram com se familiarizasse com a língua e o transformam
no “polaco Joe”. Passa nas provas para ser oficial de segunda categoria e usa o
dinheiro do soldo com jogatina, readquirindo novas dívidas. Forja um naufrágio
para que seu tio Taduesz o ajude novamente. E o inusitado é que o inventado
pela sua imaginação aconteceria algum tempo mais tarde. O Palestine, onde exercia
atividades como segundo oficial, naufraga em 1897. O “polaco Joe” assume o comando
de um bote salva-vidas com treze marinheiros e consegue chegar à costa de Muntok,
na ilha Bangka, ao sudeste de Sumatra, onde é recebido por uma silenciosa
multidão. A experiência o inspira a escrever “Juventude”, um conto onde aparece
pela primeira vez a personagem de Marlow, um experiente marinheiro que afirma: “Há
viagens que parecem destinadas a nos mostrar o que é a vida: são, portanto,
como um símbolo da existência”.
Viagem ao
Congo
Em 1886
obtém a nacionalidade inglesa e é aprovado nos exames da marinha mercante. A partir
de então, assume-se como Joseph Conrad. É o primeiro polonês que consegue esse
título na marinha britânica. Sua nova nacionalidade não é um gesto de
oportunismo, mas uma confirmação de sua ideologia conservadora: “A Inglaterra é
a única barreira frente às pressões das infernais doutrinas nascidas nas
periferias do continente”. As vivências de sua infância o marcaram de forma irreversível,
despertando-lhe uma total recusa contra o pensamento revolucionário. Considerará
que o anarquismo é uma das piores pragas de seu tempo e nunca simpatizará com
os movimentos de trabalhadores.
Nos anos
seguintes viajará por Java, Singapura, Madagascar. Em 1889, obtém pela primeira
vez o comando de um navio. Trata-se do Otago, um barco de 345 toneladas. Nas
ilhas Maurício, admira-se da colônia francesa por sua elegância e modos aristocráticos.
Seus colegas, entretanto, não o apreciam muito. Chamam-lhe depreciativamente de
“o conde russo” devido ao uso habitual de um chapéu-coco e uma bengala com detalhes
em ouro.
Seu primeiro
romance, A loucura de Almayer, é publicada em 1899. O crítico Edward
Garnett logo aprecia seu talento e aprova a publicação do manuscrito. Depois de
conhecê-lo pessoalmente e iniciar uma duradoura amizade, Garnett escreve: “Nunca
vi um homem tão completamente másculo mas de sensibilidade tão feminina”.
Apesar do apoio de Garnett, Conrad acumula sérias dúvidas sobre sua carreira
literária: “Acredito que não voltarei a escrever – confessa ao amigo. É provável
que volte ao mar”. Sua carreira como marinheiro mercante também não é tão certa.
Aos trinta e quatro anos não conseguiu um posto estável e só foi capitão do
Otago. O feito, entretanto, não o orgulha porque só foi nomeado devido uma fatalidade:
o capitão morreu a bordo e não existia na ocasião outro oficial.
A sensação de
estagnação o leva a viajar ao Congo. Graças ao seu tio Taduesz, oferecem-lhe substituir
o capitão dinamarquês Johannes Freiesleben, que havia perdido a vida nas mãos dos
nativos. Assina um contrato de três anos com a Société Anonyme Belge, mas não demora
a descobrir que quase todos os europeus retornam ao continente muito antes de
morrerem de febre ou disenteria. A 12 de junho chega a Boma e embarca para
Matadi, percorrendo quarenta milhas do rio Congo. Em Matadi conhece o irlandês
Roger Casement, caçador, explorador e diplomático. Inteligente e sensível,
Casement lhe revela a situação dos congoleses, explorados até à morte pela coroa
belga. Qualquer gesto de protesto se castiga com mutilações, açoites ou mortes.
Nenhuma lei protege a vida dos negros, que podem ser assassinados impunemente. A
posteridade estimará que os crimes cometidos constituem um autêntico genocídio
com duas milhões de vítimas. Em seus Diários, Conrad anotará que
Casement, com quem conviveu durante duas semanas, era o homem mais
extraordinário que havia conhecido na África.
De Matadi
viaja a pé até a Kinshasa numa caravana com trinta carregadores congoleses que lhe
relatam todas as condições desumanas de trabalho. Em Kinshasa, discute com seu
superior hierárquico, um empresário chamado Camille Decommune, com “um olhar
tão cortante e pesado como uma navalha”. O homem lhe repete várias vezes sua
frase favorita: “O homem que vem aqui não deve possuir entranhas” e lhe comunica
que só será capitão mas o segundo a bordo do Roi des Belges. O barco no qual deveria
comandar está quebrado e sua missão será buscar o agente comercial Georges
Antoine Klein, que se encontra gravemente doente.
O Roi des
Belges está sob mando do dinamarquês Ludwig Koch e possui uma tripulação
formada por treze africanos, alguns canibais. Transportará quatro passageiros,
entre eles, o próprio Decommune. O barco perfaz o rio Congo até às Cataratas de
Stnaley. Conrad pôde comprovar com seus próprios olhos o grau de barbárie dos
colonizadores que justificam tudo alegando que são agentes da civilização branca,
cristã e ocidental. O capitão adoece durante a travessia e Conrad assume o comando
do barco temporariamente. Georges Antoine Klein morre durante o trajeto de
volta. Se disse que Klein e Arthur Hodister, um aventureiro que participa da expedição e que mais tarde será
devorado pelos canibais, serviram de modelo para Kurtz, mas se acredita que a
figura mais influente para construir a personagem foi Eduard Schnitzer, médico,
poliglota, explorador, militar e cientista.
Conrad
rompeu seu contrato e voltou para a Europa com as sequelas da malária que o
acompanharia para o resto de sua vida. Só permaneceu seis meses e alguns dias no
continente africano, mas havia enfrentado um horror moral que não estava nem nas
suas piores expectativas. Horrorizado, escreve um artigo intitulado “Geography
and Some Explores”, onde afirma que a colonização do Congo é “a mais vil rapina
que já desfigurou a história da consciência humana e da exploração geográfica”.
Numa conversa com Edward Garnett, confessa que a experiência o fez mudar a
vida: “Antes do Congo eu era apenas um animal”.
Sua revolta
moral não o fará menos conservador. Em 1916, se recusa a assinar um manifesto
internacional em favor de Roger Casement, condenado à forca pelo império britânico.
Casement apoiara os nacionalistas irlandeses na luta pela independência. Os
serviços secretos ingleses haviam publicado falsos diários que apresentavam
supostas aventuras homossexuais de Casement. Esses dados conseguiram levantar
uma enorme antipatia na opinião pública e o silenciamento de muitos
intelectuais. É inevitável pensar em Émile Zola, que se tornou famoso com seu
artigo “Eu, acuso...”, proclamando a inocência do capitão Dreyfus, mas se negou
a assinar uma petição de indulgência em favor de Oscar Wilde, condenado a dois
anos de trabalhos forçados por sodomia. Conrad escreveu Coração das trevas
influenciado por Casement e por todos aqueles que erraram pelo continente africano,
buscando glória e riquezas e só encontrando a cobiça, a hipocrisia e uma pavorosa
crueldade.
Leopoldo II
era o proprietário de uma gigantesca companhia que explorava o Congo como se uma
propriedade particular. Os nativos eram obrigados a entregar algumas cotas
abusivas de borracha, marfim e resina de copal. Controlava-os com métodos policiais e
militares, amputando deles um pé ou uma mão quando entendia que a produção era
muito baixa. Queimavam as aldeias que se rebelavam e exterminavam suas populações.
As expedições de castigo eram verdadeiros atos de genocídio que arrasavam povos
inteiros. Leopoldo II se tornou num dos homens mais ricos de sua época e o
Congo perdeu a metade de sua população em apenas duas décadas, segundo o
historiador Adam Hochschild, que pesquisou sobre o limite das atrocidades em
sua obra King Leopold’s Ghost [O fantasma do rei Leopoldo]. Mark Twain afirmou que o número de
vítimas oscilava entre cinco ou oito milhões, mas seu comentário é meramente
especulativo, mas o que se sabe é que a matança alcançou proporções desconhecidas
até então. Conrad experimentou a urgência de romancear sua experiência, lançando
luz sobre o horror no que se tornou um dos grandes clássicos do recém-nascido
século XX.
* Este texto
é uma tradução de “Joseph Conrad en el corazón de las tinieblas”, publicado
aqui em El Cultural.
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