Festa no covil, de Juan Pablo Villalobos



Por Pedro Fernandes

Juan Pablo Villalobos. Foto: Andreu Dalmau


Festa no covil foi o romance de estreia de Juan Pablo Villalobos. Publicado em 2010 e dois anos depois traduzido no Brasil. Essas informações, apesar de encontradas em qualquer lugar na web, são aqui recuperadas por algumas razões e a principal delas diz respeito à maturidade literária de um escritor logo na sua primeira aparição; isso não é um fenômeno inédito – novidade é se sustentar no mesmo ponto alto de estreia – mas é, cada vez mais, algo raro e incomum boas estreias. Adam Thirlwell, num texto que foi incorporado à edição brasileira como um dispensável posfácio, ressalta a distinção de Villalobos no interior de um cânone literário formado nos países da América espanhola e designado pelo escritor britânico como narcoliteratura, isto é, uma literatura interessada no universo do narcotráfico. O romance, segundo ele, se insere ainda no âmbito da ficção experimentalista. É possível entender essa leitura se considerarmos como paradigma casos como o de Cervantes e o seu Dom Quixote, uma novela que, do interior das novelas de cavalaria é e não é uma novela de cavalaria; Festa no covil é e não é narcoliteratura. Mas, todas as designações são sempre complicadas.

O natural é que toda obra interessada em merecer o designativo de literária – e não é possível se desfazer do valor embutido nesse termo – ofereça-se como novidade, no sentido de propor alguma distinção entre o usual, no amplo universo das criações. Isto é, compreende-se que a intenção de Thirlwell seja essa, mas simplesmente qualificar Festa no covil como um romance experimental, sobretudo depois de atravessarmos toda a narrativa (a isso servem os posfácios, para pós-leituras), é cair numa obviedade e por isso que sua resenha pouco acrescenta ao livro, isto é, não estabelece o papel esperado de um posfácio. O que parece fundamental é compreender quais os aspectos capazes de constituir um valor literário de uma obra, ou, se pensarmos na necessária relação entre obra e leitor, o que fará essa obra se oferecer entre as fundamentais à formação de um considerável universo de leitura de um leitor. Ao ressaltar isso ampliaremos o valor da estreia de Juan Pablo Villalobos.

Festa no covil desafia os limites mais complexos de construção de uma narrativa. É um relato contado em primeira pessoa e esse ponto de vista é o de uma criança. E, apesar de alguns escritores, como Sebald, dizerem que o narrador onisciente padrão é um tanto farsesco e fora de moda, é ainda a melhor maneira de se contar uma história quando o escritor tem forte tendência para a ação e se é imaturo no trabalho de condução das rédeas da imaginação. Isso não quer dizer que uma narrativa em terceira pessoa seja mais simples que uma em primeira. Henry James, mestre na construção dos pontos de vista, por exemplo, consegue a façanha de nos contar uma história em terceira pessoa e mesmo assim nos oferecer o contato com a confusão mental de sua personagem; exemplo recorrente é Pelos olhos de Maisie.

Um escritor que se propõe construir uma narrativa em primeira pessoa precisa adotar integralmente um ponto de vista alheio ao seu, o que significa dizer, utilizar com propriedade a linguagem do outro. Sem isso, a narrativa está fadada ao fracasso porque rompe com um fator crucial para a existência da ficção, o verossimilhante. A ruptura com a verossimilhança é, aliás, o erro mais recorrente entre escritores estreantes. No caso de uma narrativa com narrador protagonista é suposta a linguagem, o estilo e os instrumentos de percepção, como sublinha originalmente James Wood no seu indispensável Como funciona a ficção; é original, no caso da obra do tipo que vimos conceituando, a que é capaz de não deixar sobrar nem na superfície, nem nas camadas mais profundas da narração a tensão entre essas três dimensões que se resumem no estilo do autor e no estilo da personagem.



Daí porque Juan Pablo Villalobos demonstra uma maturidade de domínio do princípio narrativo porque nos convence com uma narrativa pelo ponto de vista de uma criança e contada em primeira pessoa; se isso não fosse o bastante, o universo ao qual sua personagem pertence não é o cotidiano, mas o particular mundo do crime. Tochtli é um pequeno príncipe herdeiro do narcotráfico e ele nos conta sobre seu mundo em três partes: seus gostos nada usuais nessa fortaleza de muitos quartos e alguns segredos onde vive recluso com o pai e os empregados; a viagem de fuga do México à Monróvia onde fica por algum tempo sempre alimentado pela ideia fixa de completar seu minizoológico com um hipopótamo anão da Libéria; e sua obsessão com a cultura dos samurais japoneses, adquirida pelos filmes do gênero vistos repetidas vezes, bem como a conquista de acesso a uma parte significativa do mundo privado do pai.

Reside aqui, o que Thirlwell designa como experimentalismo: dentre as narrativas que tratam sobre o universo do narcotráfico, esta não se propõe ao aventuresco, aos trânsitos econômicos, aos tons policialescos, às traições etc., embora tudo não deixe de se apresentar ao longo da história. Isto é, não encontra o leitor com um mundo que se distingue e se isola do cotidiano apesar de não o ser instalado nele e tampouco convencional. A imaginação da criança interfere esses limites e nos oferece uma realidade corriqueira, marcadamente inocente, e ao mesmo tempo bárbara e cruel. Administrar essas dimensões díspares capazes de nos oferecer uma leitura inusual de um mundo singular é outra das qualidades que ressaltam a complexidade no interior da aparente simplicidade da narrativa de Festa no covil.

Isto é, esse romance nos oferece um mundo disfarçado e cabe enumerar algumas circunstâncias reveladas na própria tessitura da diegese que justificam isso: a principal delas é a apresentação desse universo à parte e integrado ao mundo comum, um reino onde o rei cumpre zelosamente todos os desejos do príncipe herdeiro; Yolcaut é apenas um senhor de mentirinha desse palácio, do qual só resta seu machismo como um imperativo e domínio das relações e do imaginário do filho, tal como se demonstra na sua recusa de ser tratado por Tochtli como pai; a fortaleza desse mundo só se justifica pela aparência, uma vez que fora daí o mundo que se degenera, entrevisto sempre pela televisão, diz respeito às próprias fundações desse império; e é na rotina impassível dos dias que o próprio Tochtli investiga e elabora uma posição de revolta contra Yolcaut manifestada na greve de voz praticada contra os da casa. Tudo isso ganha força ainda maior quando descobrimos que o próprio romance se oferece como uma aparência, já que essa narrativa esconde e revela um mundo nada inocente.

Festa no covil é ainda uma fábula em disfarce extremamente rica sobre um poder oculto mas que determina todas as forças de gerência social. Na reapresentação de uma personagem que o narrador tinha em conta nas suas dúvidas sobre quantas pessoas realmente integravam seu universo de conhecimento, ele recupera uma que não podemos deixar perdida no rico universo oferecido por Juan Pablo Villalobos com este romance. “O Paul Smith é o sócio do Yolcaut nos negócios com o país Estados Unidos e tem o cabelo muito estranho” – observa o narrador. “Além de pôr em dia seus negócios, quando o Paul Smith está aqui sempre tem festa. Nessas festas o Paul Smith vai muito ao banheiro. No começo eu achava que o Paul Smith tinha a bexiga pequena, mas aí o Miztli me contou um segredo, falou que era para usar cocaína. A cocaína se usa com o nariz e escondido, no banheiro ou dentro de um closet. Por isso que é um ótimo negócio, porque é secreto.”

Além da ironia que se desprende dessa personagem – não se observa em nenhuma outra ocasião no covil a menção sobre o consumo de drogas, o que parece ser uma feroz observação contra a hipocrisia estadunidense que se coloca sempre na condição privilegiada sobre os do país vizinho na guerra contra o tráfico – a situação revela o lugar obscuro de uma das forças motrizes do capital. E não é apenas o princípio econômico o que aí se revela. Outra das figuras que mantém trânsito livre pelo reino de Yolcaut é El Gober, “um homem que teoricamente governa as pessoas que moram num estado. Mas o Yolcaut diz que El Gober não governa ninguém, nem mesmo a puta da mãe dele.” À economia se junta também a política, outro animal que se refestela com os mesmos soldos, algo que terá sido observado e descrito zelosamente em obras como Zero zero, de Roberto Saviano. Assim é que a inocência infantil é, na verdade, um poderoso instrumento de revelação sobre a ordem social, o que facilmente coloca Festa no covil na lista das alegorias sobre o mundo contemporâneo.

No extenso jogo de aparência e verdade no qual se funda e se oferece este romance, é preciso voltar uma vez mais ao narrador. Tochtli – o menino que dentre os gostos esdrúxulos preserva o interesse pelas palavras, o que não apenas justifica sua condição de autor desse relato aparentado com o estilo da narrativa escolar como o coloca numa condição superior a do seu mentor, Mazatzin, um escritor frustrado traído pelos seus mentores e portanto sempre descrito por Yolcaut como profundo desconhecedor do mundo e assumidamente um disfarçado no clã de Yolcaut –, Tochtli assume vários disfarces ao longo de sua narrativa. A marca dessa condição que permite ser o que não é designa-se quase sempre por sua mania pelos chapéus: com os sombreiros, a princípio vê-se como um charro e desiste depois de descobrir que os charros têm certa tendência maricas e ele é muito macho, incapaz de praticar as lamúrias de amor que vê nos charros na televisão; com chapéus de detetive lança-se a investigação sobre os segredos do próprio pai; na Libéria, com chapéus de safári, participa na caça aos hipopótamos anões; com o chapéu de mágico, consegue raptar a arma pequenina das balas minúsculas com a qual comete seu primeiro crime; e, não com só com chapéus, mas com um roupão, assume-se um samurai, o guerreiro invencível. Quer dizer, essa personagem finda por oferecer continuamente, no lugar ocupado nesse reino e na encenação aí desempenhada, um destronamento da hierarquia e do poder, e é assim que se oferece enquanto ironia sobre seu próprio mundo e sua ordem.

Essa contínua intervenção de um imaginário infantil constitui certa inocência do mundo; é uma percepção igualmente aparente, visto que, confiamos nesse lugar do infante e apoiamo-nos ainda na sua total falta de moral ou ética sobre as coisas. Mas, não esqueçamos que o universo de Tochtli é continuamente invadido pela barbárie: nos filmes que vê, nos noticiários televisivos que, paulatinamente, naturalizam o horror e no seu cotidiano. A execução de um periquito com a arma furtada ao pai é vivenciada pela criança como uma banalidade ou a reprodução em miniatura de uma recorrência corriqueira dos da casa. Tanto que não é a morte da ave que interessa ao pai, mas como o filho conseguiu a arma para o crime e depois de descobrir trata de desviar a culpa de si e de Tochtli para Miztli; nem mesmo a figura mais lúcida nesse reino, Mazatzin, vê no gesto do aluno um mal ou uma culpa. Talvez isso seja a força mais contundente do relato: o desvio de olhar a violência.

Quer dizer, a ingenuidade como esse narrador vê o mundo e as coisas é o principal dos disfarces em Festa no covil; ele próprio se descreve como o dono de uma inteligência fulminante. Por isso, entre a fantasia se revela o peso sinistro de banalização do mal. Aqui, poderíamos citar várias situações apresentadas na narrativa, incluindo a morte do periquito, mas observemos outra ocasião, quando no discurso narrativo aparenta uma especulação ingênua e, em contraste, o crime banal irrompe com uma força ainda maior que o realismo do horror; o narrador assiste ao noticiário sobre a morte de um mulher devorada pelos tigres do zoológico de Guadalajara: “A mulher devorada era a diretora do zoológico e tinha dois filhos, um marido e um prestígio internacional. Bonita palavra, prestígio. Falaram que podia se tratar de suicídio ou de assassinato, porque ela nunca entrava na jaula dos tigres. Nós não usamos nossos tigres pros suicídios nem pros assassinatos. Quem faz os assassinatos são o Miztli e o Chichilkuali, sempre com orifícios de balas. Os suicídios eu não sei como a gente faz, mas não é com os tigres. Nós usamos os tigres pra comer os cadáveres. E para isso também usamos o nosso leão.”

Por fim, podemos situar, num retorno à compreensão desse romance como o maior dos disfarces, a inadiável festa no covil. Atravessamos toda a narrativa e não encontramos quaisquer festas, ainda que Tochtli descreva a existência delas nas visitas de Paul Smith. Mas não são essas as festas que interessam ao narrador. A festa que não assistimos está no porvir: depois de receber as cabeças dos hipopótamos anões da Libéria empalhadas, anuncia-se a coroação dos dois bichos, isto é, do que restou deles. Ironicamente, como tudo nesse romance, os dois animais foram batizados de Luis XVI e Maria Antonieta. As duas personagens derivadas do universo imaginativo e obsessivo de Tochtli pela execução com guilhotina desenvolvida pelos franceses não são meras aparições gratuitas na narrativa. A execução do imperador francês e da rainha constituiu-se um ponto alto da Revolução Francesa e assinala a libertação do país das mãos de um governo que, preso às suas próprias ganâncias e no luxo, esquecia-se de suas fragilidades internas.

O covil escapa ileso às denúncias de Mazatzin, mas, resistiria, num futuro, às forças fracas do obsessivo Yolcaut que protege ao filho de todas as situações externas do mundo? E quando se romper os limites de compra da liberdade de Tochtli – restaria algo desse império? Parece interessante recuperar aqui essa passagem no fim do romance: depois de verem um filme falsificado de samurai que termina com numa cena em que um samurai precisa, pelo código de honra, degolar o melhor amigo, Yolcaut diz para o filho “a coisa mais enigmática e misteriosa”, depois de apresentá-lo ao quarto das armas: “– Um dia você vai ter que fazer o mesmo por mim”. Resta não acreditar que o fim do império de El Rey se dê pela honra como supõe sua educação; não com o filho que tem. Melhor acreditarmos no seu destino pelo destino de Luis XVI e Maria Antonieta. É o fim de todo reino encastelado nos seus próprios limites.


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Festa no covil
Juan Pablo Villalobos
Andreia Moroni (Trad.)
Companhia das Letras, 2012
96p.


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