Enseio

Por Guilherme Mazzafera



Há algo de instigante na saborosa percepção de Otto Maria Carpeaux (1999) sobre o grande poeta francês François Villon: dono de uma vida das mais desregradas, na qual se misturam toda uma variedade de petit crimes, impropérios e violações (pode um assassino escrever um bom poema?), sua lavra de versos é uma das poesias mais ordenadas e conscientes de que se tem notícia. Haveria, em tal fenômeno, um secreto jogo de compensações em que, à vida fragmentada, contrapõe-se a ordenação possível da arte. Separados por um século, a escrita de Montaigne talha caminho semelhante, embora oposto – o retiro determinado para sua biblioteca para pensar, refletir e escrever constitui um prolongado memento mori que, em diálogo profundo com as vozes do passado, encontra seu caminho pela expressão sincera e cuidadosa de uma verdade pessoal que, mediada pelo critério da razão, se expõe como inédita perspectiva autorizada.

A dimensão ordenadora da escrita, que para alguns pode constituir seu verdadeiro fim, resvala sempre em sua (in)capacidade de efetivar-se. Pode a escrita ordenar o que, na vida, fatalmente se separa? A essa pergunta a literatura regionalista, em sua inerente assimetria de vozes, procurou responder à luz de uma contínua readequação de perspectiva, em que gradualmente o falar pelo personagem rústico foi cedendo passo ao falar com ele, tendo em obras de profunda ressonância ético-estética como Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, algumas de suas vitórias íntimas mais expressivas.

A possibilidade de ordenar os eventos, destecer os fios e aplanar as ranhuras em busca de um sentido transmissível que o ofício literário permite (ou impõe?) não se exerce sem o jugo coercivo do irreparável. O escritor inglês Ian McEwan cria, em Reparação, uma protagonista que procura, pela escrita de um romance (que é o romance que lemos), expiar a ferida que não fecha, ocasionada por um ato infantil, mas consciente, sucessão de equívocos vertidos em interpretação cabal, de consequências destrutivas para sua família. Perto do fim, a narradora reconhece que, uma vez estabelecidos no campo do verossímil, a manipulação dos eventos que sua voz autorizada permite não refreia a impotência constitutiva à própria forma:

[...] como pode uma romancista realizar uma reparação se, com seu poder absoluto de decidir como a história termina, ela é também Deus? Não há ninguém, nenhuma entidade ou ser mais elevado, a que ela possa apelar, ou com que possa reconciliar-se, ou que possa perdoá-la. Não há nada fora dela. Na sua imaginação ela determina os limites e as condições. Não há reparação possível para Deus nem para os romancistas, nem mesmo para os romancistas ateus. (McEwan, 2011)

Entra em conflito aqui a poiesis do romancista, que decide tudo e que, sobre cada detalhe, impõe sua autonomia, e a experiência do ensaísta, forma cuja origem indissociável do pensamento filosófico como experiência de si nos faz remeter à sua própria etimologia enquanto esboço, tentativa. Mais do que isso, como lembra Adorno (2003), o ensaio se compõe in medias res, no meio das coisas, da vida que pulsa e cujo fecho não lhe cabe determinar. No entanto – como um romancista que procura controlar os efeitos dos prolongamentos e suspensões sobre o leitor – omiti deliberadamente o final do excerto de McEwan, que aqui se recupera: “Desde o início a tentativa era inviável, e era justamente essa a questão. A tentativa era tudo.” Um romance, como gesto e realização, também se ensaia.

Escrever, verbo intransitivo: ele escreve, dizem. A pergunta seguinte, que impinge a transitividade, é justamente sobre o que se escreve. Como mostra toda a história das literaturas, um tema não faz o poeta, mas, sim, a forma, entendida como inseparabilidade entre o viés, a perspectiva adotada (o como se escreve), e sua materialização em linguagem, o estilo (o como se escreve). E estilo, lembra-nos mais uma vez mestre Carpeaux, é a escolha do que deve perecer. Pois escrever, muitas vezes, não é colar palavras e entrelaçá-las sintaticamente, mas, antes, eliminar seus nexos autárquicos, retornando à intransitividade do verbo que se expressa por si.

Escrever é difícil, dizem. E é mesmo. Eis o enseio (ensaio como anseio ou, reverso da medalha, o anseio como ensaio?) supremo: tornar a escrita ato contínuo à vida. Escrever, mais que ordenar, é criar veios comunicantes em nossa enseada particular. A coisa mais próxima da vida (2017), belíssimo título da belíssima coletânea de ensaios de James Wood, resume perfeitamente nosso enseio: a literatura (e o ensaio enquanto sua matriz constitutiva, diríamos) não como simulacro ou reflexo do real, mas como algo outro que, sem se converter em substituto, oferta a proximidade afetiva, a cumplicidade secreta que nos faz sujeitos capazes de saborear – saber é sabor – a vida ela mesma.

Referências

ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: Notas de literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Editora 34, 2003.
CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios reunidos – Volume I (1942-1978). Rio de Janeiro: Topbooks; UniverCidade, 1999.
MCEWAN, Ian. Reparação. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
WOOD, James. A coisa mais próxima da vida. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: SESI-SP Editora, 2017




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